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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

O cego!

A madrugada abriu-se com um tapete cinza e uma chuva miudinha que mais se assemelhava a pó muito húmido. No casario apenas a velha padaria comunitária parecia estar acordada dando vazão aos pães e broas. Alguns bolos de leite também!

Um cão ladrou, logo outro devolveu para mais longe outro se intrometer no diálogo canino. Uma gata encostada à parede corria, logo perseguida pelas pequenas e indefesas crias. Diversos galos cantaram e toda a aldeia parecia finalmente acordar para mais um dia de trabalhos e canseiras.

A manhã acordara por fim mas ainda assaz fria, molhada e assolada por um vento que principiava a soprar. No empedrado das ruas podiam-se escutar passos pesados de quem buscava novas tarefas. Na velha igreja tocou o vetusto, mas competente relógio, as horas da vida aldeã que ora se abria para uma normal azáfama.

Ao longe um badalo suou semelhante aos que muitos rebanhos usavam. Na tasca do Ti’Acácio os homens já agarrados a copos de vinho ou aguardente iam discutindo assuntos banais. O badalo repetiu o som para logo um cliente entrar na taberna e anunciar quase com pompa e circunstância:

- Vem aí o cego!

- Outra vez? Ainda há pouco tempo por aqui passou.

- Agora faz a volta de regresso… a ver se abicha mais algum!

Entretanto, da igreja veio o toque a chamar os fiéis para a próxima missa. Pelas ruas estreitas e frias da aldeia vultos negros, encolhidos sob a chuva mudinha encaminhavam-se para mais um culto. A maioria eram idosas, viúvas. Benziam-se à entrada e à saída de igreja, juntavam as mãos em oração, faziam-se de beatas, para ali no adro e após ter terminado a eucaristia desancarem nas costas das comadres.

Assim que o padre abriu a porta do templo logo se sentou o cego num dos degraus e de mão estendida esmolava uma pobre moeda.

- Ajudai o ceguinho, por caridade! – apelava o invisual.

Devagarinho as moedas iam tinindo no fundo da caixa, para ainda antes da missa terminar o pedinte desaparecer, não fosse alguém arrepender-se…

O cego costumava pernoitar na casa do Ti’Bravo, que normalmente lhe dava comida, enxerga e algumas moedas. Certo dia o cego ousou quando estava à mesa:

- Se um dia for para os lados do Chão da Mouca pergunte por mim… teria prazer em recebê-lo na minha humilde casa.

O anfitrião achou estranho o convite, mas respondeu a contento:

- Se um dia a minha vida correr para aqueles lados assim farei. Mas creio que tal nunca acontecerá… É demasiado longe.

A Feira de São Bartolomeu era o centro da região por aqueles dias de festa. Ali chegavam muitos negociantes de cereais, gado, mantas, muitas alfaias e até calçado ou roupas. Já para não falar das  tendas erguidas onde se vendiam vinho e petiscos… Arribava gente de todo o lado, uns a pé outros montados nas suas bestas ou em carroças. Durante uma mão cheia de dias por ali tudo era palco de negócio.

Júlio Bravo fora um dos muitos forasteiros a aparecer na Feira. Adorava calcorrear por entre tendas presas ou redis de gado. Quem o conhecia sabiam-no homem honrado. Muito duro a negociar, quando estendia a mão o negócio não se escangalharia.

Havia algum tempo que o abastado lavrador andava em busca de novas sementes para lançar à terra e daí procurar cereal novo, especialmente pão. Mirando aqui e ali, enfiando a mão nos sacos cheios, estranhava que o centeio fosse todo igual ao seu! Até que encontrou algo diferente. Olhou o cereal, gostou do que viu e acima de tudo sento«iu nas mãos calejadas e experientes e negociou aquele regateando cada quilo e cada tostão. Para finalmente chegar a um acordo. Todavia havia um problema e que se prendia com o cereal pois este estava em casa do vendedor e assim o Ti’Bravo teve de partir para terras da charneca e onde nunca fora. Dois dias de jornada para cada lado seria o que lhe estaria reservado.

Já no regresso e com os animais carregados de boa semente para lançar à terra fecunda desviou-se para ir pernoitar numa aldeia. À entrada do povoado leu: Chão da Mouca!

- Olha… esta não é a aldeia do cego?

Desceu o caminho de terra batida e foi dar ao largo da igreja. A tarde descia já e Bravo entrou na capela pequena. Sentou-se e aguardou pacientemente. O pároco surgiu pouco depois e sentou-se ao lado do forasteiro.

- Boa tarde viajante. A que devo a honra desta visita tardia.

- A sua bênção Padre!

- Deus te abençoe meu filho! – o sinal da cruz desenhado na frente do homem.

- Preciso de descansar. Eu e os meus animais. O senhor deve conhecer alguém que me ajude…

- Claro! A aldeia está cheia de gente boa, mas o João é o melhor homem para tudo isso… Venha comigo!

Saíram ambos e encaminharam-se para o fim da rua que seguia ao lado da capela. A Lua surgia já no firmamento semi-obscurecido. Um enorme portão ferrugento parecia intimidar os intrusos, assim como o ladrar dos cães. Mas o padre empurrou o portão e entrou. Uma alameda ladeada por araucárias acabava na frente de uma casa enorme de dois pisos. O alerta fora dado pelos cães e na varanda surgiu uma mulher magra limpando as mãos ao avental.

- Quem vem aí?

- Ó Etelvina não te apoquentes… sou o padre Horácio com um viajante que necessita guarida por uma noite. Consegues?

A mulher ainda jovem desceu as escadas, beijou as mãos ao Padre e respondeu com alegria:

- Claro senhor Prior. O meu marido João ficará muito contente. Venham, subam!

Escalaram devagar a escadaria de pedra e entraram numa casa enorme, onde nada parecia faltar. Depois:

- Desculpe a desarrumação, mas os miúdos são traquinas.

- Não se preocupe minha senhora. Eu é que peço desculpa pelo incómodo… - atalhou o viajante.

Uma voz pareceu vir do fundo da sala e perguntou:

- Quem está aí?

De uma sala lateral surgiu João. Segurava um pau da mão e que não era nem mais nem menos que uma bengala com a qual tentava adivinhar o caminho. Bravo levou a mão à boca num espanto e voltou a olhar a casa.

- João, sou eu o Prior… e mais um viajante que pretende descansar por uma noite.

- Seja bem vindo forasteiro à minha humilde casa! Sou o João um pobre cego…

- Sei bem quem é… João!

Atento o cego ergueu a cabeça. Por fim disse:

- Eu conheço esta voz! Deixa-me pensar… Já sei Bravo, é o ti’Bravo!

- Eu mesmo! Que grande coincidência!

E um abraço juntou-os.

Entretanto o padre olhava para ambos:

- Mas já se conheciam?

João adiantou-se:

- Claro… é um dos meus melhores clientes e até já dormi na casa dele diversas vezes. Agora é a minha vez de retribuir…

Bravo nada disse. Percebeu logo ali que desconheciam a sua vida de pedinte. Ajudou à mentira:

- Ora bons fornecedores originam bons clientes!

- É isso mesmo! Mas sentemo-nos… A minha mulher irá já preparar algo para comer. Deve estar esfomeado.

- Obrigado João, mas comi ante de virar para aqui. Os animais é que devem ter fome. Se tiver um lugar onde possam pastar…

- Melhor que isso… Ficam no palheiro e será dado uma belíssima ração.

Acomodaram-se todos como podiam e por ali ficaram a conversar. João nunca referiu o que fazia, Bravo muito menos e o Padre falava apenas da sua vida na aldeia.

Aposentos arranjados, animais livres da pesada carga foram todos descansar. Todavia Bravo teve dificuldade em adormecer. Havia ali muita coisa mal explicada e intangível. Custava perceber como um homem com uma casa daquelas andava de terra em terra, às portas das igrejas a mendigar uma moeda.

Na manhã seguinte e não obstante não ter dormido muito bem Bravo levantou-se logo que escutou o primeiro galo a cantar. Lavou-se, vestiu-se e finalmente desceu ao andar de baixo onde fora a sala de refeição na noite anterior.

Daquilo que parecia ser a cozinha escutou barulho e para lá se dirigiu devagar. Etelvina parecia afadigada de volta dos tachos:

- Bom dia Dona Etelvina!

A dona da casa deu um salto assustada para logo se recompor. Por fim cumprimentou:

- Bom dia senhor Bravo. Tão cedo!

- Pois tenho de ir até casa que ainda fica longe.

- E não come?

- Um pedaço de pão e queijo é suficiente.

- Só?

- Chega! Mas obrigado! Tenho mesmo de ir…

- Já vai amigo Bravo?

Era João que perguntava ao aparecer na cozinha.

- Tenho de ir… a sério.

- A minha mulher vai arranjar algo para o caminho…

No momento seguinte Etelvina entregou um bornal ao viajante dizendo:

- Aqui tem… espero que goste.

- Gostarei com toda a certeza. Obrigado pela hospitalidade. Agora vou carregar os animais e vou indo.

- Os animais já estão carregados! – disse a mulher.

Admirado com tanta eficiência Bravo devolveu:

- Não era necessário incomodar-se… Mas obrigado!

Finalmente as despedidas.

Júlio já estava na rua quase a atravessar o grosso portão quando ouviu o seu nome. Parou e olhou para trás vendo a mulher que corria para si.

- Ajude-me, ajude-nos!

- O que aconteceu?

- Por favor fale como meu marido… convença-o… ameace-o… faça qualquer coisa…

Atemorizado por aquele insistente pedido Bravo questionou:

- O que se passa dona Etelvina. Diga-me!

- O meu marido… o João…

- Siiiiiim…

Ela respirou fundo, enxugou as lágrimas ao avental e por fim declarou:

- Convença-o a não cegar os filhos.

Poema cansado!

Nem todas as palavras do Mundo

Diriam o que realmente sinto.

Gosto de sentimento profundo

Nos riscos hoje que aqui pinto.

 

Sinto na noite a companhia

Que não há no dia luminoso.

As palavras saem-me sem linha,

Feitas de um sonho tenebroso.

 

Passa o dia, a madrugada

E olho sereno esta tela

Nada realmente me agrada,

Nem tu, nem eu, nem ela!

 

Soneto IV

Tenho os dias cheios de silêncios

Daqueles que me dói escutar

Tenho os dias plenos de inícios

Que desejo nunca começar.

 

Paira por cima desta cabeça

Uma sentença triste, traída.

Construo meus dias numa peça,

Ainda antes da cortina caída.

 

Olho o horizonte tão vermelho

Cor do sangue me corre adentro

Sentindo o dia esvair-se ao espelho.

 

Não sei onde encontrar o centro

Deste mim tão seco e tão velho,

Quiçá aí fora, talvez aqui dentro.

Poema de resistência e amor

Este poema foi escrito em homenagem a um bom amigo vítima de Esclerose Múltipla, doença da qual viria a morrer. Trabalhámos juntos muitos anos e durante todo esse tempo sempre mostrou uma coragem e uma tenacidade de fazer inveja. Hoje recordei-o e a este breve poema.

 

Por vales de seda e linho,

Desafias um longo caminho…

De dor, de dor.

 

Um trilho ímpio, sinuoso,

Amargo, tenebroso…

E triste e triste.

 

Entre loas de imenso fervor

Há uma história de amor…

E paz e paz.

 

Renasce das tuas entranhas,

Uma aragem todas as manhãs,

De viver, de viver.

 

És a força, o mar e a terra,

Que em ti frágil, encerra…

A glória, a glória.

 

Os teus sonhos brilhantes,

São ósculos de amantes,

Sorrindo, sorrindo.

 

Resistes como um ancião vadio,

À morte num desértico baldio…

Tenaz, tenaz.

 

Coragem é quem vive assim,

Simplesmente tão perto do fim,

E ama e ama.

Os Felícios! #3

Resposta a este convite da Ana

Episódio 1

Episódio 2

Pairava sobre a urbe, naquele Verão inclemente, uma canícula que tudo tisnava. As pessoas fugiam da rua evitando o calor abafado, procurando naturalmente os locais mais frescos. Na precedente semana a chuva caíra a rodos tal qual as invernias. Agora aquele Estio… quase de um dia para o outro!

Felício estava sentado no táxi à sombra de uma vetusta árvore no Príncipe Real ouvindo um posto de rádio que só dava música do toni das “caminetes” e de outras cantores de qualidade duvidosa. Enquanto aguardava algum cliente mais imbecil por andar com aquele calor na rua, enviou mensagens à família via uotessape: sábado praia quem vai?

Durante três dias ninguém respondeu ao táxista. Também não insistiu. Admirou-se, todavia, com a mulher Felícia que andava sempre desejosa de enfiar o traseiro na água do mar. O fim de semana aproximava-se e nem uma mensagem. Até que na sexta feira à noite com todos sentados à mesa (uma raridade) Mário Felício comunica: amanhã folga. Bora ah praia?

O pai responde: imbecil perguntei isso na segunda e ninguém ligou patavina.

A mãe ajuda: eu sozinha também namapetece! Mas se formos todos até faço um arrozito de galinha…

Faltava a resposta de Maria Felícia altamente dedicada a enviar umas parvoíces no feicebuque. Finalmente percebeu a questão e respondeu: zanguei-me com a minha namorada. também posso ir.

Só Felício estava varado! Sem as devidas respostas a tempo combinara uma ida à pesca com uns amigos, para os lados de Peniche e não lhe apetecia estar a mudar a coisa. Respondeu: agora não contem comigo… vou pra fora! Desenvencilhem-se...

Não houve mais respostas de ninguém. Dava a ideia de que a praia… já era. Entretanto a canícula viera para ficar! As noites eram verdadeiros paraísos tropicais, originando que tanto Maria como Mário saíram logo após o jantar para beberem uns copos com os amigos. No entanto cada um seguira para seu lado, só regressando ambos altas horas da madrugada e quase ao mesmo tempo.

Daí terem-se admirado com o movimento inusitado em casa às seis da manhã! Quando entraram deram de caras com um pai hiper-super-maldisposto. A casa estava uma revolução e a mãe Felícia chorava na cozinha.

Mário pegou no telemóvel quase sem bateria e enviou uma mensagem ao pai:

O que se passa?”

“Não tens nada com isso, desempecilha daqui e vai “masé” dormir! Que o teu mal é sono.”

“Isso é que não vou… quero saber porque a mãe está a chorar na cozinha”.

A filha Maria Felícia, entretanto, chegara-se perto da mãe e acariciava-a. Depois pegou no telemóvel e perguntou também ao pai: “que fizeste à mãe?

Não fiz nada! Ela que me desapareceu com a minha bóia talismã da pesca.”

Qual… aquela que está no teu porta-chaves no carro?” – perguntou o Mário Felício.

Felício pára, senta-se no meio da tralha que desarrumou e acaba por dizer:

- Fónix!

Três quadras ao Santo António!

Ó meu bom santo lisboeta

António de teu rico nome

Avia-me aí uma lambreta*

Antes que morra à fome.

 

Brincamos hoje quase todos

Aos bons santos populares

Sob uns resistentes toldos

Há que dar aos molares.

 

Todos os anos tem sido uso

Escrever parvoíce a preceito

Quiçá algo em mor desuso,

Não quero saber. Está feito.

 

* lambreta - cerveja em copo pequeno

O herdeiro!

O vetusto elevador subiu lentamente com um ronco os três andares até que deu um solavanco antes de parar. Orlando fez correr as duas portas de lagarta e saiu para o patamar.

À sua frente a porta que sempre fora de acesso restrito. Unicamente os clientes do pai advogado entravam por ali evitando com isso o acesso à casa. À direita a entrada principal, duas meias portas que só se abriam, ambas, quando entrava algum móvel novo e da qual de aproximou devagar.

Defronte da entrada, de chave empunhada temia ou duvidava, nem sabia bem! Temia encontrar uma casa feita em fanicos e duvidava dos seus sentimentos perante o que iria provavelmente reviver. Vinte anos bem medidos o afastavam daquela, que fora durante muitos anos, a sua residência permanente.

Encheu os pulmões de um ar velho e soprou antes de abrir a porta. Finalmente muniu-se de coragem e introduziu a chave na fechadura, tentando rodar. Mas aquela quase nem se moveu. Recordou então aquele truque que o tio um dia lhe ensinara:

- Quando for assim rodas como se fosse para fechar e depois rodas para abrir!

Para a frente como se fosse trancar para logo rodar para abrir. A lingueta cedeu, deu duas voltas e mais o trinco. A porta abriu e um corredor escancarou-se na sua frente. Um odor pestilento entre humidade, bafio e provavelmente ratos derramou-se pelo patamar.

Orlando pegou num lenço e com ele tapou nariz, boca e finalmente deu os primeiros passos para dentro de um andar onde vivera perto de trinta anos.

Ainda sabia onde se encontrava o interruptor da luz, mas este não fez acender candeeiro nenhum.

- Pois… os mortos não pagam contas…

Devagar penetrou no andar. Era um daqueles apartamentos antigos e imensos com inúmeras divisões, algumas enormes outras mais pequenas, mas quase todas ligadas entre si. Ao meio um corredor para onde desembocavam também os quartos e salas. Assim que se entrava havia à direita um pequeno corredor que dava para a cozinha e a outro corredor que dava acesso à casa de banho e outras divisões.

Ligou a lanterna do telemóvel para ter alguma luz. A primeira coisa que viu foi uma enorme ratazana que calmamente ratava o que restava da passadeira que tapara em tempos o chão do corredor de madeira. Bateu com o pé e o roedor desapareceu do longo espaço. Este apresentava ainda as mesmas velhas mesas de encostar em meia lua e todas elas encimadas por espelhos. No tecto umas lanternas de vidro. Ao fundo uma velha credência onde ainda repousava um velho telefone de baquelite.

Lentamente penetrou mais no corredor e abriu a primeira porta à sua esquerda. Era uma pequena sala de estar atafulhada de mobília. Duas senhorinhas aos cantos, quadros velhos de imagens de pintores clássicos, uma mesa com um bonito tampo em pedra negra e um candeeiro de porcelana também com muitos anos.

Aproximou-se da janela e fez correr os cortinados com cuidado. A luz do dia entrou na pequena sala tornando-se mais acolhedora e dando a perceber a decadência do espaço. Por fim a vidraça… segurou no fecho e rodou-o. Este parecia perro, mas com um pequeno esforço acedeu.

O ar frio daquela manhã entrou na divisão e substituiu o odor pestilento da humidade. Rodou nos calcanhares e ficou na dúvida para que lado ir. Quase sem perceber esboçou um sorriso pelas recordações que aquele apartamento lhe trazia. Tanta correria, tanto grito das empregadas a quem atentava os dias... até que começou a atentar as noites!

Decidiu caminhar por entre móveis, abrindo janelas e reposteiros bafientos e velhos. A luz cinzenta foi invadindo o apartamento dando um pouco de cor a um lugar agora triste e abandonado.

Foi deambulando por entre salas e quartos, camas e sofás até chegar à enorme sala das refeições. Também aqui deixou que a luz plúmbea alegrasse minimamente o recinto. Na parede principal aquela cristaleira enorme recheada de loiça velha como a vida e que fora herança de um tio avô de origem inglesa, exposta por detrás de uns vidro baços.

No tecto o lustre imenso havia perdido o seu brilhantismo de outras noites tal era a quantidade de pó que carregava. No topo um piano vertical Erard em madeira e que a sua mãe adorava tocar. Na mesa no centro da sala destacava-se uma enorme terrina antiga em prata. A acompanhar dois valentes candelabros também de prata mas sem velas. As cadeiras de pau-santo rodeavam a mesa e davam um aspecto organizado. A sala tinha duas janelas altas pelas quais se acedia a um estreito varandim. Entre elas outro móvel onde eram guardados os talheres. Aproximou-se abriu uma das gavetas e logo apareceram facas, garfos, colheres e demais ferramentas todas enegrecidas pela patine.

Nas paredes algumas fotografias que sabiam ser de gente da família, que ele jamais conhecera. Noutro canto um velhíssimo gramofone muito semelhante ao que vira na casa de Gaudi em Barcelona… assim como alguns discos entalados entre o aparelho e a parede.

Abriu uma das gavetas da cristaleira e encontrou toalhas em linho e muitos guardanapos também do mesmo tecido. Pegou num e com perícia bateu com ele no acento de uma cadeira. Uma nuvem de pó envolveu o ar, mas ainda assim suficiente para se sentar. Olhou ao redor e parecia estar numa daquelas divisões de casas senhoriais do século XVIII e XIX.

Era tempo de pensar no que fazer a tudo aquilo. Lembrou-se de um velho amigo que provavelmente o ajudaria a desfazer-se da tralha. Procurou no telemóvel o número e quando o achou ligou-lhe:

- Viva Orlando, há quanto tempo!

- Bom dia Noé! Desculpa a hora quase madrugadora…

- Estás tonto… Pensas que é com o corpo na cama que ganho a vida?

- Imagino que não…

- Conta-me… estás ainda em Barcelona?

- Estou… mas hoje estou por cá!

- Ena, boa… temos de ir almoçar…

- Proponho-te algo melhor… Tu ainda andas no negócio das velharias e antiguidades?

. Ando porquê? Tens algo em mente para comprar.

- Não… Tenho para vender.

- Para vender? Mas o que tens?

- O recheio duma casa!

- Ui… isso pode ser interessante. De quem é a casa?

- Bom… - suspendeu o diálogo – agora é minha! Mas foi dos meus pais!

- Qual? Aquele apartamento enorme…

Nem o deixou terminar:

- Esse mesmo. Está cheio que nem um ovo…

- Ok. Espera aí que tenho de ver umas coisas…  mas posso adiar para mais tarde. Olha vou já para aí. Ainda é no terceiro andar?

- É mesmo… tens boa memória. Mas não toques à campainha porque eu vou deixar a porta encostada…

- Fixe meu, vou já para aí!

Ainda não havia decorrido meia hora quando Orlando começou a ouvir passos no corredor. Deixou-se ficar naquele que fora o seu quarto durante tantos anos.

- Oi Orlando, onde estás?

- Do lado contrário à entrada. No meu antigo quarto!

Noé entrou e olhou em redor e foi dizendo:

- Xiiii, já não me lembrava como isto era…

Aproximaram-se ambos e deram um forte abraço. Orlando convidou:

- Eh pá senta-te que temos de falar sobre tudo o que aqui está - e fez um gesto largo a indicar toda a casa.

- Então vamos lá ver o que há de interessante…

Ergueram-se ambos e Orlando levou-o logo à sala de jantar onde sabia que encontraria as melhores coisas. Aí entrado Noé assobiou:

- Eh pá! Tens aqui coisas muito valiosas…

Orlando continuou no mesmo sentido de tudo vender:

- Como costumas fazer? Peça a peça ou tudo por atacado?

O amigo entretinha-se a abrir a cristeleira para ver as loiças. Depois foi ao móvel dos talheres para logo a seguir abrir a tampa do piano e premiu algumas teclas. Logo saiu um som límpido que fez com que o antiquário fizesse um jeito de aprovação. Só depois de muito pesquisar é que respondeu ao amigo.

- Desculpa não te ter respondido mas estava vidrado nestas coisas… Há aqui muita coisa boa…

- Tens interesse nas coisas?

- Se tenho companheiro. Mas contigo não faço o que costumo…

- Então?

- Queres libertar-te de tudo?

- Claro Noé! Repara… vivo em Barcelona onde sou professor numa Universidade e não estou para levar esta tralha para lá!

- Normalmente quando me contactam ofereço um valor apetitoso, mas muito abaixo da realidade e levo tudo. Na maioria das vezes em duas ou três peças faço o dinheiro investido… Depois tudo o que vender é lucro.

- Não quero saber… Levas tudo isto e pagas-me o que achares justo?

- Mas tu não queres nada daqui?

- Nada!

- Nem o piano? Este vale uma pipa de massa. Ainda por cima a tocar…

- Escuta Noé… Não preciso de nada disto… Leva, vendes e depois dás-me o dinheiro!

- Deixa-me ver o resto da casa.

- Está à vontade…

Noé percorreu todas as divisões, chegando a abrir mais janelas. Orlando ficou na sala a ver o movimento na rua de braços cruzados enquanto de vez em quando escutava um assobio. Finalmente Noé voltou à sala e perante o que vira insistiu:

- Caneco… há aqui muita coisa fantástica.

- Calculo, mas percebo pouco disso!

- Já agora só um pormenor… tu és o único herdeiro, certo?

- O único… ainda não fiz a habilitação de herdeiros, mas como sabes não tenho irmãos e os meus tios nunca tiveram filhos.

- Ok… mas trata disso… Se ficar com isto não quero ter problemas com o fisco ou a justiça.

- Claro… farei tudo como deve ser!

- Quem foi o último a morrer?

- O meu tio Domingos!

- E tudo isto era de quem antes?

- Ora… dos meus avós e depois do meu pai e do meu tio que sempre aqui viveram.

- Ok! Posso comprar tudo isto, mas só depois das coisas legalmente tratadas!

- Muito bem! Esta tarde vou tentar tratar disso. Queres ver mais alguma coisa?

- Não, não… já vi tudo. Vamos embora?

- Vamos!

Percorreram devagar todas as divisões tendo o cuidado de fecharem todas as janelas e encaminharam-se para a saída. Estava Orlando a fechar a porta quando o elevador parou no andar. Admirados ambos aguardaram quem estava a chegar.

Do elevador saiu uma mulher mais arranjada que bonita e que perante os dois cavalheiros perguntou num sotaque bem brasileiro:

- Oi, bom djia!

- Bom dia – devolveram ambos quase em uníssono.

- Chamo-me Cleide e sou a viúva do Domingos! Esta é a casa dele?