Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

O gato

Há muitos, muitos anos, era eu um terrível gaiato quando conheci uma tia-avó paterna cozinheira de profissão numa família abastada e que vivia num volumoso segundo andar na Avenida de Roma, em Lisboa.

Daquela minha parente lembro-me bem de ser gorda, quase redonda muito próxima de um boneco que uma marca de pneus imortalizou. Tinha uma queda especial para a cozinha de tal maneira que nunca tinha necessidade de provar um prato ou a sopa para saber se estava salgada ou insossa. Bastava, para tal, passar a mão sapuda pelo vapor e levá-la ao nariz para perceber como estaria o tempero.

A maioria do tempo a minha tia passava-o entre aquelas quatro paredes forradas a azulejo branco. Quatro não, apenas três já que havia uma que fora substituída por uma enorme marquise. Apenas a um metro do chão estava o que restava da parede... depois para cima uma vitrine imensa.

Quando lá entrei a primeira vez, pela mão dos meus pais, a tia Rosa sorriu naquele seu ar simpático que só os gordos sabem ter e deu-me um bombom de chocolate com uma cereja dentro. Com cuidado desembrulhei devagar para não rasgar a prata que escondia o chocolate e finalmente atirei-me ao acepipe. A prata desdobrei-a depois de forma paciente e tentei alisá-la… para mais tarde a colocar entre as páginas de um livro.

Mas o que a cozinha da tia Rosa tinha de mais interessante era… um gato. Xavier de seu nome. Gordo, lustroso de tão bem tratado, era ainda assim muito pouco simpático. Quando reparei nele, estava sentado num rebordo da parede que sustentava a enorme marquise. Por cima dele abria-se uma janela basculante que a tia mantinha sempre aberta por causa do calor e dos cheiros.

Quando naquela manhã de Domingo vi aquele felino siamês, tentei aproximar-me para lhe fazer uma festa, ao que a minha tia logo me avisou:

- Não te chegues perto dele, que ele não é puro. Faz de conta que nunca o viste nem que está ali.

Nesse dia não voltei a aproximar-me dele, mas durante as visitas seguintes fui paulatinamente tentando chegar mais perto do bichano. Mas este nunca reagia.

Eu adorava estar ali na cozinha com aquela tia balofa, mas sempre despachada. Foi também ali que percebi que o Xavier era um bicho matreiro e guloso. Tão guloso que aguardava pacientemente que a minha tia tirasse as petingas do frigorífico e assim que ela saía da cozinha para fazer algo, ele assaltava o peixe. Depois regressava ao seu lugar como se nada fosse para a tia mais tarde e depois de fritas as sardinhas pequenas lhe atirar uma, sem sequer perceber do roubo do felino.

Mas a coisa tinha arte circense já que o gato ficava atento e quando tia atirava a sardinha ao ar de propósito, o bichano como tivesse molas nos pés dava um salto apanhando o peixe no ar. Para logo regressar ao seu lugar.

Tal como prometera nunca me aproximei do gato, todavia sentia por ele alguma animosidade, especialmente pela forma como ele enganava a minha tia.

Ora certa manhã de Domingo, dia em que fazíamos a visita à tia Rosa, pensei em fazer o gato pagar pela sua matreirice. Assim a tia que comprara “jaquinzinhos” para o nosso almoço, colocou-os na bancada depois de os bem amanhar e temperar. Finalmente perguntou-me:

- Ficas aqui a brincar enquanto vou lá dentro com a tua mãe dar uma “ajeitadela” à casa?

Respondi afirmativamente e preparei a partida. Logo que a tia me deixou sozinho fui à bancada e peguei em meia dúzia dos pequenos carapaus pelins. Xavier atento olhou para mim e quando atirei o primeiro peixe ao ar o gato filou-o com aquela destreza felina. Gostei da brincadeira e atirei outro pelim, desta vez para um lugar diferente. O bichano não se conteve e saltou para apanhar mais um peixe. E mais outro. Outro ainda. Até que o último atirei-o… pela janela de vidro.

A verdade é que o Xavier nunca se apercebera que para lá da janela não havia senão ar… e um chão duro a muitos metros de altura. Por isso atirou-se pela janela tentando apanhar o derradeiro carapau.

Assim que lancei o peixe e vi o Xavier seguir o destino do isco, arrependi-me logo da partida. Não obstante o gato estar sempre na cozinha, não era a minha tia a verdadeira dona do felino, mas sim a dona da casa. Acabara assim de arranjar um sarilho para cima de mim. Pensei ir à casa de banho fugindo à responsabilidade da situação, mas antes pretendi perceber o que teria acontecido ao Xavier.

Peguei num banco que havia por ali, encostei-o à parede subi para cima e espreitei pela janela aberta, a mesma por onde sumira o gato.

Dizem os ingleses que os gatos têm nove vidas, os portugueses dizem que só têm sete, mas com toda a certeza que Xavier deve ter perdido mais que uma quando se viu a voar atrás de um pequeno carapau. Porém a sorte protege os audazes e o animal acabou por aterrar no cimo de uma araucária que crescia desde o pátio da cave até quase ao segundo andar.

Arrumei o banco e fugi para a casa de banho onde fiquei um bom bocado. Depois ouvi vozes diferentes das habituais e arrisquei finalmente sair do meu refúgio. Deparei com um homem que trazia um saco muito irrequieto que percebi ser o gato.

Muitas semanas mais tarde voltei a casa onde a tia Rosa trabalhava e vivia. Na cozinha no local do costume estava Xavier. Quando entrei o gato miou. Mas era miar dolente, estranho quiçá receoso. A minha tia ao perceber o miar do gato disse com alegria:

- Já vi que o Xavier gosta de ti!

Não me manifestei, mas validei que aquele miar do felino não seria, provavelmente, de alegria, mas assemelhava-se, com toda a certeza a uma queixa.

E tinha toda a razão!

 

Nota: esta estória foi inventada e nunca aconteceu e eu não tendo com os gatos a mesma relação que tenho com cães ainda assim seria incapaz de fazer mal a um felino.

Dia Mundial da Poesia - 2025

Um poeta é um opífice

Que talha o ouro com calma

O mesmo será um artífice

Das palavras com alma.

 

A poesia é a luz daqueles

Que vêem na escuridão

Não só as dores deles

Mas tristezas da solidão.

 

A poesia nunca descansa

Apenas baila e apazigua

A dor mais que mansa

De quem vive na Lua.

 

Não serei nunca poeta

Pois escrever mal sei.

A palavra não é meta

Nem rimar a minha lei.

Alice #IV

Parte I

Parte II

Parte III

IV

- Bom dia Dra. Constança! Desculpe a hora tão madrugadora!

Visivelmente contrariada a médica mostrou-se afável e educada.

- Faça o favor de entrar. Provavelmente não quererá falar comigo no átrio de uma escada, pois não?

O inspector limpou os sapatos velhos e mal engraxados no tapete e entrou no apartamento. Um olhar rápido e deu para perceber como a médica era minimalista. Uma televisão de pé alto e dois sofás. Alguns quadros repousavam no chão mas para Constantino nada lhe surgia como estranho.

- Sente-se, se fizer favor!

- Obrigado – e aceitou o convite.

- Diga-me o que se passa agora?

O inspector sacou do bolso um pequeno bloco de notas e foi dizendo:

- Necessito de mais dados da mulher que foi entregar a criança. E antes que se esqueça o melhor mesmo é falar quanto antes. Nestas coisas da investigação tudo se torna importante e quanto mais depressa falarmos mais rapidamente poderemos ter respostas!

- Com certeza! Coloque as questões que eu irei respondendo!

- Ainda se recorda da dita mulher, certo?

- Claro!

- Consegue descrevê-la com pormenor?

- Vou tentar

- Eu vou tomando notas do que for dizendo.

Constança olhou o tecto branco, respirou fundo e principiou:

- Mulher de mais ou menos 30 anos, magra, cabelo sujo e sem incisivos no arco inferior. Tinha um nevus na têmpora esquerda e no pescoço uma tatuagem.

- Uma tatuagem? Que desenho era? Consegue descrevê-lo?

- Era uma estrela… Também vestia um anoraque vermelho com capuz que deixou cair quando entrou com a criança.

- Ora muito bem… já temos dados que não tínhamos antes. Está a ver? Valeu a pena aqui vir! E recorda-se do que trazia calçado?

- Isso é que não sei dizer… Talvez a enfermeira ou o segurança tenha reparado.

- Mas não repararam que eu já perguntei…

O silêncio impôs-se para passados uns segundos Constantino se levantar do sofá e avançar:

- Posso colocar outras questões que me parecem pertinentes?

Era óbvio que o Inspector ferrara o dente na testemunha médica e não estava disposto a larga-la.

- Pergunte – o enfado parecia evidente por parte de Constança.

- Confessou que não via o seu irmão há uns anos, mais precisamente tem ideia?

- Tenho! Ele saiu de casa numa noite de Consoada.

- E sabe porquê?

- Uma normal discussão com o meu pai que sempre pretendeu mandar na vida dos outros… Minha incluída!

- Portanto desde essa noite nunca mais soube nada de Adriano Belchior?

- Não… nada! Isto é até ontem à noite quando ele me apanhou no parque de estacionamento. Mas deixei-o a falar sozinho…

- Quer dizer que não sabe o que ele faz na vida?

- Não! Tanto pode ser um varredor de rua, como um taxista ou um cientista… Seja o que for não sei rigorosamente nada sobre ele.

O Inspector andava pela sala quase vazia para depois acabar por confessar:

- O seu irmão é responsável por uma das maiores empresas de tecnonogia do Mundo…

- Está a brincar…

- Não estou… E o que temo é que ele esteja a ser chantageado para fazer espionagem industrial.

- Ai… que coisa horrível…

- E a minha derradeira pergunta é esta: crê que o seu irmão aceda a esta chantagem?

- Não creio… até porque a Alice já está com ele.

- Tem a certeza?

- Como assim a certeza?

O inspector despejou o ar e continuou:

- O seu irmão não tem filhos dele. A Alice foi adoptada. Mas ao que soube já hoje a menina tinha uma irmã gêmea.

- Ai inspector... Então a Alice que eu tratei pode não ser a filha dele?

- Exactamente.

- Mas e a roupa boa que a criança trazia?

- É o mistério que temos entre mãos!

Alice #III

Parte I

Parte II

III

Constança atravessou em passo acelerado todo o serviço de Urgência respondendo fugazmente a alguns cumprimentos do pessoal médico seu conhecido e com quem se cruzava.

Na rua a chuva principiara a cair após uma breve trégua, mas a jovem não atemorizou e continuou a andar. A água batia e escorria pela face, mas a médica não sabia se era chuva ou apenas lágrimas para no instante seguinte escutar alguém a chamá-la. Calculou quem seria e nem isso a fez andar mais devagar. Procurava apenas um táxi que a levasse a casa.

Os passos atrás de si chapinhavam sonoramente nas poças de água deixada pela chuva e aproximavam-se. Um homem alto e bem parecido colocou-se na frente da médica travando a sua marcha.

- Constança, pára! Pára, se fizeres favor!

A jovem estancou deixando que a chuva da noite os molhasse a ambos, ainda mais. Olhou o irmão de frente num tom altivo não obstante ser mais baixa e aguardou:

- Constança, obrigado!

Silêncio.

- A Alice está salva e tu tens quota-parte nisso. Mais um par de horas e provavelmente tudo seria diferente. Depois… necessitamos conversar!

A deixa fora dada por Adriano e Constança aproveitou para disparar de rajada:

- Obrigado? Tudo diferente? Necessitamos conversar?

A médica rodou, ficando de costas para o irmão. Respirou tão fundo quanto pode e recompondo-se recarregou de perguntas:

- Onde estiveste os últimos seis anos? Alguma vez me ligaste? Deste-me os parabéns pelo curso ou nos meus anos? Desejaste-me as boas festas? Bastaria uma mensagem. E agora conheces-me?

- Mana, mana não me faças isso. Já basta o pai ter feito o que me fez…

A irmã não respondeu e como se ali não estivesse ninguém seguiu para o parque dos táxis e entrou num que a levou a casa completamente encharcada.

Chegou ao apartamento despiu-se e meteu-se debaixo do chuveiro de água quente e deixou que a água lhe lavasse mais a alma que o corpo. Por fim vestiu o pijama quente e voltou a fazer uma infusão desta vez de salva. De chávena na mão voltou ao seu sofá e à manta onde se enroscou. Depois ligou a televisão, procurou uma série qualquer e ficou a olhar… sem ver.

O seu pensamento estava longe, lá atrás nas memórias de tantos anos. Nas brincadeiras com o irmão e com uma quase infinidade de primos. Nas férias de Verão na Nazaré, nas festas na aldeia, nas idas ao Circo. E especialmente naquele triste Natal quando o pai numa enorme discussão com Adriano fez com que este saísse de casa para nunca mais regressar.

Sabia porque na sua casa nunca mais se celebrou o Natal!

Quando acordou o sol entrava pela janela e a campainha da porta soava insistente!

Levantou-se estremunhada, calcou as pantufas e foi abrir! Do lado de fora e para seu enorme espanto uma figura conhecida de Constança:

- Bom dia Inspector Constantino!

 

Segue aqui

Alice #2

Parte I

II

O inspector era um homem afável e simpático, como são geralmente os gordos e anafados. Constança mirou-o e sentiu que havia ali qualquer coisa de estranho. Poderia ser apenas cisma sua. Por fim iniciou a relatar os acontecimentos:

- Perto das três da madrugada e depois de ter passado pela triagem normal chegou às minha mãos uma menina numa maca deveras desnutrida e desidratada. Depois tinha uma febre muito alta que a deixava completamente prostrada.

- Desculpe interrompê-la, mas posso comunicar que pelas imagens das câmaras de segurança a criança chegou por volta das duas e 45 minutos.

Constança ficou irritada com a interrupção. Parecia que duvidavam da sua palavra. Continuou:

- Fui eu buscar o equipamente para lhe tirar o sangue e ao mesmo tempo colocar um catéter com soro. Foi neste momento que a mãe me perguntou onde havia uma casa de banho. Indiquei-lho o sítio e... foi a última vez que a vi!

Nova interrupção:

. Também já vi isso!

- Não imagino quanto tempo e quantos doentes depois voltei à criança que se encontrava sozinha. Foi nessa altura que fui indagando se haviam visto a mãe até chegar ao segurança que me disse tê-la visto sair dali em passo muito apressado.

Fez uma pequena pausa e regressou ao relato:

- Comuniquei à Polícia e solicitei se poderiam passar pela morada a ver se lá havia alguém. O pai por exemplo!

Neste instante o inspector olhou o doutor Aleixo e Constança ficou com a certeza que havia algo que não sabia.

- Finalmente liguei para a Pediatria e solicitei que a levassem para o serviço. Entretanto passado um bom bocado fui chamada ao agente que estava de serviço e comunicaram-me que naquela morada não vivia ninguém... Era uma barraca semi destruída.

- Muito bem Dra. Só pretendo colocar mais uma breves questões. Posso?

- Com certeza!

- Que idade teria a mãe?

- Não mais que trinta anos!

- E o aspecto dela?

- Vinha muito andrajosa. Cheirava mal e tinha um ar desmaselado. O curioso é que a Alice vinha também muito suja, provavelmente por ter vomitado, mas a roupa pareceu-me de boa qualidade. Pensei que alguém lhe havia oferecido aquela roupa depois dos filhos usarem...

O inspector levantou-se da cadeira, deu dois passos a caminho da porta que abriu. Espreitou para o corredor e voltou a fechar a porta. A jovem médica aguardava apenas.

- Quer dizer que a doutora confirma que não conhecia a mãe!

- Claro que confirmo.

- Nem a menina Alice.

- Também não a conhecia.

- Tem a certeza?

Constaça explodiu e dirigindo-se ao chefe em vez do inspector, perguntou asperamente:

- Doutor, mas o que é isto? Parece que eu cometi algum crime! Desculpem-me mas parece-me que há aqui qualquer coisa que me ultrapassa.

O inspector colocou a ponta dos dedos no ombro da jovem e bonita médica e respondeu:

- Doutora, o problema é mais grave do que pensa...

- Mau...

- A menina Alice foi raptada na semana passada de casa dos pais.

Um choque emocional agitou Constança.

- Raptada? Mas é a sério?

- Infelizmente foi a sério de tal forma que até já tinhamos avisado os nossos colegas europeus para o caso. Poderia ser um rapto com nuances de tráfico de menores.

O inspector olhou um quadro com o corpo humano pendurado na parede e continuou em modo desabafo:

- Foi uma semana complicada e nunca se encontrou uma pista. Até hoje quando o pai da menina nos telefona a comunicar que recebera uma chamada telefónica anónima a dizer que a Alice estaria aqui.

- Ai... que coisa horrível. Nem imagino como terá sido a semana destes pais - assumiu a médica.

- Agora vem a outra parte...

- Mas há mais?

- Há!

O inspector recebeu o olhar atento e fulminante de Constança para logo continuar como nova questão:

- A suposta mãe disse como se chamava a criança?

- Creio que vinha na documentação... Alice era o nome!

- E não pediu mais nenhum nome que melhor a identificasse?

- Não, porque foi na altura que a senhora saiu para ir supostamente à casa de banho!

- Ok! Portanto só sabe o primeiro nome?

- Sim como já lhe disse! 

O inspector que não voltara a sentar desde que fora à porta, aconchegou o corpo pesado na cadeira, que rangeu com o peso recebido, dobrou-se e ficou de frente com a médica e olhando-a de frentenos olhos, voltou:

- O apelido Belchior diz-lhe alguma coisa?

- A mim diz-me que é o meu apelido de família.

Um silêncio estranho que Constança não gostou:

- Desculpem lá, mas digam o que têm a dizer com rapidez que eu gostaria de regressar ao meu descanso. Estou olimpicamente cansada.

- Tem razão! Desculpe! Mas este caso foi-me entregue e tem aqui pormenores estranhos e coincidências bizarras. O pai da criança está cá e quer falar consigo.

- Comigo para quê? Eu fui apenas a médica que a recebi no Serviço de Urgência.

- Certo! Mas há um Adriano Belchior que deseja ardentemente falar consigo.

- A... Adriano? Quem... o meu irmão que não vejo há uma série de anos, está cá?

- Sim ele mesmo. Ele é o pai da Alice!

- Hã?

Constança levou as mãos à boca num espanto para finalmente quase a chorar assumir:

- A Alice é minha sobrinha!

 

Segue aqui

Alice

I

A chuva caía densa, pesada qual véu líquido, sacudida por um vento forte. A espaços Constança sentia a força do temporal e embrulhava-se mais na sua manta quente. Defronte na mesa de madeira uma chávena fumegava e um perfume a erva princípe pairava no ar.

Após mais de 30 horas seguidas sem ver a cama nada melhor que uma chuva a retê-la em casa. O banco de Urgências do hospital onde prestava serviço fora simplesmente… diabólico. E o pior é que durante anos estudara tanta coisa em quilos de compêndios de Medicina, mas nenhum deles tivera a oportunidade de lhe ensinar como deveria ver a vida… dos outros.

Não eram os acidentes de mota e as pernas estropiadas, de carro e os corpos desfeitos ou as quedas aparatosas dos andaimes que a afligiam, mas aquele idoso pai recentemente viúvo com um filho deficiente profundo e que não sabia como lidar, ou aquele casal de irmãos que com o maior desplante haviam deixado um casal de velhotes à porta com a desculpa que tinham COVID ou ainda aquela mãe que às três da manha surge com a filha de três anos completamente desidratada e desnutrida e muito febril e desaparece sem deixar rastro. Para lidar com tudo isto não recebera formação em nenhum tomo volumoso.

Respirou fundo e adormeceu devagar.

Acordou com o telemóvel a tocar. Estremunhada pegou no aparelho e leu a origem:

- Dr. Aleixo?

Pensou desligar. Depois desistiu da ideia prevendo:

- Vem aí chatice, pela certa!

- Doutor diga! Passa-se alguma coisa?

- Ó doutora desculpe, mas necessito de si.

- A sério que me está a pedir isso?

- Não, doutora, não é para vir trabalhar…

- Ah então pode ficar para amanhã…

- Não sei se o Inspector da Judiciária que aqui está vai concordar consigo, Doutora!

- Judiciária? Ui… O que é que aconteceu?

O chefe não alongou a conversa telefónica.

- Oiça, assim que puder venha cá ter connosco. É imperioso!

Constança soprou e respondeu:

- Vou vestir qualquer coisa e já vou aí ter!

- Obrigado ficamos à sua espera.

Deveras contrariada pegou no telemóvel e chamou um Uber para meia hora mais tarde estar a entrar nas suas já conhecidas portas automáticas do banco de urgência, enquanto cumprimentava o segurança conhecido. Atravessou mais portas e dirigiu-se ao gabinete do chefe. Pelo caminho estendiam-se como sempre inúmeras macas, cada uma com o seu doente e ao qual se associava um acompanhante. O suficiente para encherem todos os corredores.

De vez em quando uma mão surgia do nada apenas associada a um grito:

- Ai doutora tire-me daqui! Ai que morro com tanta dor!

A tudo isto Constança não ligava… já sabia como era.

Os corredores estreitaram, agora já sem doentes, mas com muito pessoal atarefado. A porta do chefe estava fechada, algo que não era usual e daí bateu com o nós dos dedos.

- Entre!

Baixou a maçaneta e penetrou no gabinete branco que ela bem conhecia. Sentado na sua cadeira o Doutor Aleixo parecia estar a escrever qualquer coisa, quem sabe uma receita para o inspector que estava sentado defronte do médico.

- Boa noite Doutor. Diga lá o que se passa… Espero que valha a pena!

- Ó Doutora puxe aí dessa cadeira e entretanto apresento-lhe o inspector Constantino Brás que necessita falar consigo.

- Comigo Doutor?

Constantino levantou-se da cadeira e cumprimentou a jovem médica:

- Boa noite doutora, desculpe maçá-la a esta hora, mas necessito falar consigo por causa daquela menina que entrou a noite passada.

- Quem? A Alice?

- Essa mesmo!

- Que lhe aconteceu?

- Que eu saiba nada, até parece que está melhor segundo me comunicou aqui o seu chefe, mas o que realmente desejo é que diga como tudo aconteceu esta madrugada com o internamento da Alice.

 

Segue aqui

Belo e perfeito… nome

Todos na aldeia a conheciam pela bizarra alcunha de “cabra”. Outros epítetos atribuíram-lhe ainda, mas menos usados, como: “velhaca” ou “ordinária”! O mais estranho é que já quase ninguém se lembrava do seu belo e perfeito nome: Maria Flor. Belo como o prado onde a mãe, vinte anos antes, a parira no meio de um rebanho de cabras castanhas e rebeldes. Perfeito porque era invulgarmente esbelta e formosa. Corpo curvilíneo, voz maviosa, olhos brilhantes de um azul vivo que até doía. Tudo nela se conjugava numa perfeição quase Divinal.

As mulheres da aldeia, a maioria gordas e anafadas nas suas roupas negras e tristes, olhavam-na como uma permanente afronta às suas mui duvidosas felicidades conjugais, pois sabiam como a jovem adorava homens. Quaisquer que eles fossem. De sorriso sempre fresco e renovado qual madrugada primaveril, cada aldeão olhava-a com evidente apetite carnal. Também por causa eram frequentes os distúrbios na taberna.

Para tudo há um início e Maria nasceu pobre, no meio do gado caprino que a mãe guardava com conhecimento e competência. Quando a avó Berta a trouxe, embrulhada num reles xaile, para a aldeia, saltou de colo em colo até assentar, a sua ainda mui jovem e atribulada vivência, num colégio de freiras. Por lá ficou dezoito anos até que um dia se fartou das vésperas, das aleluias e das penosas tarefas diárias a que era obrigada e partiu pela calada da noite sem deixar qualquer rasto. Havia muitos anos que não sabia da mãe, mas lembrava-se ainda do nome da terra donde tinha vindo: Cabeço das Rolas. Foi para lá que se dirigiu em busca de alguma família que lhe pudesse valer. Andou milhas e dias a pé até encontrar o caminho do povoado perdido entre pinheiros esguios e sobreiros frondosos e acolhedores. Crescia a madrugada quando arribou ao povo e ao primeiro aldeão que encontrou perguntou pela mãe. Responderam-lhe que esta havia falecido, assim como a avó, havia alguns anos. Restava somente a velha casa, que ninguém reclamara como sua.

Indicada a casa, encontrou um casebre abandonado e triste. Entrou, abriu as janelas de tábuas podres e vidros partidos e dançou a vassoura pelo chão sujo, com a genica própria da juventude.  Passava Túlio no caminho quando ouviu reboliço dentro da casa. Mordido pela curiosidade de quem não tem que fazer, acabou por entrar à socapa e achar a rapariga em limpezas. Cumprimentou então:

- Boa tarde... menina!  

Espantada com a presença daquele indivíduo, saudou apenas:

- Boa tarde... senhor!  

- És de cá?  

- E isso que lhe interessa? – devolveu asperamente.  

Porém foi acrescentando:  

- Sou de cá, sim senhor!  

- Como te chamas?  

A jovem não apreciava sobremaneira aquele interrogatório e logo desabafou:  

- Oiça lá, não acha que quer saber demais?  

O homem atrapalhou-se de permeio, mas logo refutou:  

- Mas tens nome não tens?  

- Maria, Maria Flor...  

- Bonito nome, sim senhor! Como tu... – galanteou.  

Os olhos masculinos e viris já a tinham mirado de alto a baixo. Jamais haviam observado beleza semelhante. Mesmo envolta em trapos gastos, a rapariga parecia a luz. Finalmente acrescentou:  

- Mas eu nunca te vi por estes lados.  

Indiferente à persistência das questões a jovem manteve o seu afã em silêncio.  

- Diz-me lá quem é a tua família. Esta casa por exemplo era da ti’Berta. Eras alguma coisa a ela? - teimou o aldeão.  

Cansada de tanta pergunta, Maria resolveu dar todas as informações que tinha, podendo finalmente trabalhar em paz.  

- Neta! A Ti’Berta era minha avó e eu sou filha da Júlia. Fugi do colégio e esta casa é minha.

O tom de voz foi subindo até gritar uma última pergunta:

- Mais alguma coisa que pretenda saber?  

- Não pronto, não é preciso ralhares. Vou-me embora... Só estou a atrapalhar-te - percebeu o interlocutor.  

- Finalmente... – comentou entre dentes, aliviada.  

Durante todo o resto do dia a nova proprietária tentou arrumar a casa. Varreu, lavou o chão com água retirada do poço meio coberto de silvas e hera, sacudiu o pó, deixou que o ar do dia penetrasse pelas janelas e invadisse o casebre lúgubre e húmido.  

A noite caiu de mansinho e Maria descansou. Trouxera consigo uma pequena bucha com que enganou a fome.   No dia seguinte acordou cedo e reparou que a sua morada passava a ser alvo de olhares e comentários. A notícia do regresso da jovem filha da Júlia correu a aldeia como uma praga. As mulheres foram as primeiras a tentar constatar da forma como a miúda tratava da casa. Aos grupos de duas e três batiam à porta curiosas. Depois ofereciam os seus solidários préstimos sempre tentando espreitar para o interior.  

Quando a recusa de ajuda era evidente passavam a destilar ódio, carregado sobretudo nas palavras viperinas e pestilentas. Uma prima longínqua aproximou-se, numa tarde, da cachopa e atirou:  

- Olá Maria Flor!  

- Olá – respondeu, como de costume, não se desviando do que estava a fazer.  

- Eu sou tua prima, sabes? Afastada, mas ainda assim prima...  

- Muito prazer.  

- Precisas de alguma coisa?  

- Que me deixes em paz!  

A resposta rude e inesperada colocou a outra também do lado inimigo. Virou rapidamente costas e passou a desfazer na miúda, sempre que podia.  

O ambiente na aldeia parecia não correr de feição a Flor, mas esta não se atemorizou. Quando achou que a casa estava minimamente de acordo com a sua vontade, saiu em busca de trabalho. Porém as portas foram-se fechando, umas por razões naturais e coerentes, mas a maioria desculpava-se de maneira pouco convincente. A bucha que trouxera havia-se acabado e a fome apertava. Em casa nada havia para comer a não ser um naco de chouriço rançoso, deixado ao acaso numa velha e suja vasilha de barro, meia repleta de azeite. Percorreu então as fazendas ao redor onde encontrou abandonadas algumas batatas que juntamente com umas folhas de couve, arrancadas a um pé que crescia desalmadamente por entra as folhas quase secas do milho, lá cozinhou qualquer coisa. Uma solução para um dia, não para uma vida.  

Havia meia dúzia de dias que chegara ao povo e apenas comera a bucha e o que arranjara no último serão. 

Desesperada, impaciente e esfomeada buscou na sua cabeça uma solução prática para a barriga vazia. Foi então que se lembrou da Ester, uma moça que surgira no colégio. Vivia onde calhava, dormia sempre em quartos diferentes e nunca amava homem algum. Apareceu por lá em busca de algum conforto. Mas a ideia repugnava Maria. Preferia a fome e a míngua à vida de quem não ama. Assim com calma procurou pelos campos mais longínquos algo com que enganasse o estômago vazio. Caminhou pelos carreiros que serpenteavam por entre muros de pedras cinzentas e tristes. Um olhar clínico e perspicaz lançado à terra fértil conseguiu desvendar umas nabiças aqui, meia dúzia de batatas mais além, umas maçãs malapos acolá, um marmelo bem maduro no cimo das folhas verdes ou umas acelgas bravas. Carregada com o que a providência lhe oferecera regressou feliz a casa. Por algum tempo tinha que comer. No final do trilho cruzou-se com um jovem que ombreava uma enxada de pontas já gastas. Sem temor, cumprimentou ao cruzar:  

- Bom dia!  

O rapaz já ouvira falar da nova aldeã e da sua invulgar beleza. Agora encontrava-a ali, frente a frente, olhos nos olhos. Mirou-a rapidamente com relativo interesse, mas logo entendeu que os adjectivos masculinos que a qualificavam eram insuficientes. A miúda era de uma beleza ímpar, jamais vista por aqueles lados.

Atrapalhado, respondeu então:

- Bom… bom dia!  

Olhou-a por detrás, avaliou-a e sentiu o coração bater mais depressa. Depois encheu-se de coragem e clamou:

- Menina…

Flor estancou então e virando-se respondeu:  

- Diga, se fizer favor…  

- Chamo-me Vítor e vivo do que a terra me dá. É pouco, mas nunca passo fome. Se algum dia precisar de ajuda, basta pedir. O que chega para um, dá para dois, com a bênção de Deus… Moro lá naquela casa… velha como a vida. Apareça se assim entender! E acima de tudo se tiver fome.

A jovem nem queria acreditar:  

- Como?

O jovem repetiu o que dissera antes, rematando assim:

- Prefiro partilhar do pouco que tenho consigo em vez de ver a andar por aí ao rabisco.  

Ela entendeu a generosidade do gesto, mas foi devolvendo:  

- Eu quero trabalhar… Ganhar a minha vida, honradamente.  

- Mas a menina é tão nova.  

- E depois? Sou nova sim senhor, mas sei fazer de tudo um pouco. Aprendi no colégio onde andei e donde fugi…

A conversa desenrolava-se serenamente até o jovem prometer.

-Se não me levar a mal, logo de tarde, levo-lhe lá qualquer coisa para comer.

- Mas já aqui levo que chegue para hoje – desabafou.

Pela primeira vez a fugitiva parecia ter encontrado alguém capaz de dar, sem nada pedir em troca. Por isso respondeu com sinceridade:

- Mas agradeço a sua generosidade. Se não lhe der muita maçada.  

- Claro que não. Então até logo! Não ligue ao que dizem de si… Têm inveja!

- Não ligo, não se preocupe!

Já o horizonte se pintava de escarlate, quando Vítor bateu à velha porta e aguardou:

- Quem é?

- É o Vítor.

A porta escancarou-se.

- Entre, desculpe a pobreza da casa.

- Não tem importância. Já lhe disse que também sou pobre.

Um silêncio convidativo envergonhou-os até que o rapaz prosseguiu

- Eis aqui um pouco de broa, um naco de toucinho e ovos – e estendeu a oferenda à rapariga.

- Obrigada pela sua generosidade, mas preferia pagar de qualquer forma.

- Ora deixe-se disso. Somos ambos pobres. A vida tem-nos sido madrasta… não é?

O rapaz era simpático, bem-falante, simples e correcto. Maria sentiu-se naturalmente atraída pelo jovem. Nas trocas de olhares leram os pensamentos de cada um e pela primeira vez a rapariga entregou-se a alguém.

Vítor decidiu passar a viver em casa de Flor, como se fossem marido e mulher. Paulatinamente foi reparando as janelas, restaurou a mesa e cadeiras, cavou o chão contíguo à velha casa e amou profundamente a companheira. Durante mais de dois anos viveram um amor rico de muita pobreza mas recheado de entrega, alegria, trabalho”

Porém o povo aldeão não apreciou a relação “em pecado” como afirmavam as despeitadas mulheres, dos jovens e em breve armaram uma cilada, em que o apaixonado se viu envolvido num crime que não cometera. Envenenados os espíritos, logo ali o condenaram, à moda da tenebrosa justiça popular, acabando Vítor por morrer no meio da praça, linchado, vítima de profundos ferimentos e sem que ninguém ousasse defendê-lo.  

Só o padre mostrou a sua revolta e indignação por um povo estúpido e ignorante. Porém era tarde demais e Vítor partira para sempre.

Maria chorou o companheiro, três dias seguidos. No fim desse tempo anojado, jurou a si mesma vingar-se.  A sua casa era agora um local aprazível e muito asseado. Subtilmente Maria insinuou-se a um dos aldeões, curiosamente a Túlio a sua primeira visita. Este, perante o chamamento velado da recente e bonita viúva não se fez rogado e entrou na casa que fora da ti’Beta. Mas antes deixou em cima da mesa o dinheiro, muito dinheiro.

No dia seguinte Maria entrou na loja de negro vestido e perante as outras mulheres presentes e mal encaradas estendeu o dinheiro ao lojista e pediu o que lhe apeteceu. Já de compras na mão foi dizendo à saída:

- As próximas compras serão os vossos maridos a pagá-las.

Partiu deixando o mulherio presente à beira de um ataque de nervos.

Certo é que a partir desse dia muitos homens passaram a ter outros e caros afazares nocturnos. Chegavam a meio da noite felizes, contentes, amados e quando se deitavam ao lado das anafadas, mal-cheirosas e tristes esposas sentiam asco destas.

Talvez por isso jamais mulher alguma da aldeia falava da jovem viúva usando o seu belo e perfeito nome: Maria Flor!

Os cinco anos da Olívia

Dedicado à minha neta Olívia no dia do seu quinto aniversário

 

Naquela manhã acordou mais cedo que o costume. A excitação das prendas, do eventual bolo com velas, da prometida visita dos avós, tudo junto criava uma mixórdia de emoções que a cachopita tinha dificuldade em saber gerir.

Assim que notou uma nesga de dia pelo estore quase fechado levantou-se  e em silêncio saiu do seu quarto e mesmo descalça desceu ao piso inferior onde encontrou ainda a árvore de Natal montada mas de luzes desligadas.

Afoita meteu a mão no relógio temporizador e rodou um botão. Nesse mesmo instante as luzes da árvore acenderam-se como por magia.

Olívia afastou-se uns passos para trás de forma a ter uma perspectiva mais abrangente do pinheiro de Natal iluminado. Sentou-se no chão e ali ficou a observar em silêncio toda aquela panóplia de cores que não paravam quietas.

A mãe que acordara entretanto procurou a filha no quarto e não a vendo a dormir na sua cama foi em busca da aniversariante, encontrando-a sentada à frente da árvore de Natal. Serenamente aproximou-se da filha sem que esta desse por isso tocou-lhe nos longos cabelos loiros e disse com ternura:

- Parabéns meu amor! Cinco anos! Estás uma princesa!

A resposta veio rude, inusual:

- Não sou uma princesa, sou a Olívia.

- Eu sei querida, eu sei! Mas princesa é assim uma coisa… fofinha para se dizer a uma menina que faz anos!

- Não quero coisas fofinhas. Já sou uma menina e não um bebé!

À mãe apeteceu-lhe rir pois recordou que dissera o mesmo à mãe, mas mostrou um ar sério e recuou:

- Fiquei esclarecida, Olívia. E agora vamos tomar o pequeno almoço?

A miúda sem mais estímulo ergueu-se do chão e questionou:

- Vais tirar as iluminações de Natal?

- Vamos hoje, sim!

- Então quer dizer que o Natal acabou?

A resposta teria de ser perfeita não fosse a criança ficar traumatizada. Com doçura respondeu:

- Verdadeiramente o Natal nunca acaba. O que terminaram foram as festividades. Porque a seguir haverá outras festas como é o Carnaval, a Páscoa, o dia da Criança…

- Mas nessas festas não há árvores iluminadas.

- Pois não. Mas pensa bem… se visses a árvore de Natal todos os dias, depois em Dezembro já não seria necessário, nem terias aquela alegria de distribuir as bolas pelo pinheirinho… E muito menos os calendários de chocolate.

Olívia não parecia convencida. Os olhos brilharam muito sinónimo de alguma lágrima que estaria para chegar. Para logo GGa seguir o pai aparecer com o Gustavo nos braços e cumprimentar com alegria.

- Parabéns Olívia. Agora passas a ser uma senhora com as outras mas mais pequenina.

A gaiata era de ideias fixas e sem mais perguntou ao pai que tentava sem grande sucesso enfiar o filho mais novo na estrutura de plástico similar a uma cadeira.

- O Natal já acabou, não é papá?

O jovem casal olhou-se sem realmente perceber como sair daquele imbróglio. Foi o pai que com alguma diplomacia e muito carinho se sentou no sofá da sala, escarranchou a miúda entre as suas pernas e revelou:

- O Natal nunca acaba. O que terminam são as festas, os almoços, os jantares, a balbúrdia com as pessoas. Mas o espírito de Natal mantém-se!

- Mas o que é isso do espírito de Natal, papá? Algum fantasma?

O pai aconchegou a menina mais a si para depois lhe explicar:

- O espírito de Natal só existe nos corações das pessoas que adoram fazer o bem! Por exemplo quando encontraste o Sebas, o nosso canto, trouxeste-o para casa. Isso é o espírito de Natal.

A Olívia não parecia nada convencida, mas o pai tinha uma cartada final:

- Gostas do mano?

- Gosto!

- Ele já te deu alguma prenda?

- Ó papá ele é tão pequenino…

- Esse é também o espírito de Natal: gostar dos outros por aquilo que nos dizem e não por aquilo que nos dão!

Olívia manteve-se em silêncio para o pai continuar:

- Hoje completas cinco anos. És uma das alegrias desta casa a par do teu mano. Mas o que eu gostaria mesmo de te dar não é aquele livro com ilustrações ou um brinquedo qualquer. Apenas dizer que és a minha prenda de Natal preferida. Que recebi precisamente há cinco anos, mas com um atraso de 10 dias!

E depositou no cimo do cabelo da filha um beijo longo e duas lágrimas que Olívia não percebeu!

A barba mágica!

Resposta a este desafio

 

Assim que Artur, com pouco mais de três anos percebeu do poder que exibia perante os pais, passou a usá-lo sem dó nem piedade e fosse onde fosse. As birras que criava por querer aquele brinquedo ou simplesmente por teimar em ficar no baloiço mais uns minutos enquanto outras crianças esperavam que ele saísse, envergonhavam o pai Tomás e a mãe Marília.

De tal maneira as cenas eram tão estremadas em frente dos pais que amiúde estes evitavam sair de casa.

Entretanto no colégio Artur era tido como um menino bem comportado e educado. Nada de birras nem reacções adversas aceitando com humildade as ordens que recebia das educadoras.

Os pais admiravam-se desta dupla postura e acabaram por recorrer a um pedopsiquiatra que explicou com muita teoria e alguns exemplos práticos que o filho era uma criança perfeitamente normal apenas procurava o seu espaço.

Feitos os quatro anos a personalidade não mudou. Ou se mudou foi para pior. Aproximava-se a época do Natal e certo dia a Marília perguntou ao filho:

- Já sabes o que vais queres no Natal?

- Sim mãezinha…

E logo despejou um rol de desejos, a maioria só porque vira na televisão. A mãe escrevia a lista ciente que nem metade ele teria, mas enfim… era uma criança… deixá-la sonhar!

O Natal crescia em passos gigantes quando Tomás e Marília decidiram levar o filho a uma feira muito conhecida e imensamente divertida para crianças e pais. Ali chegados a pé depois do carro ficar a um quilómetro de distância Artur percebeu que os pais não o haviam enganado. Tanta luz, cor, música e meninos.

Porém no primeiro carrocel Artur não pretendeu esperar como as outras crianças e respectivos pais e esgueirando-se por entre a multidão infantil e mais crescida foi-se sentar num cavalito de madeira. A equipa percebeu a intrusão e logo solicitou em voz alta:

- O responsável por este menino, onde está?

Tomás demasiado envergonhado apareceu a receber o filho que logo ali perante todos fez uma birra descomunal. A organização e outras crianças deixaram que ele lhes passasse à frente e logo que se sentou, Artur sorriu.

Assim que acabou o menino quis mais, mas foi a vez do pai impor a sua vontade, dizendo:

- Artur já me fizeste passar uma vergonha. Não passarei outra. Portanto se pensas em fazer nova cena, ficas aí sozinho que eu e a tua mãe vamos embora. Grita, barafusta, mas não nos procures.

E virando costas e puxando pelo braço da mulher saiu dali. Artur percebera que esticara em demasia a corda e agora esta partira-se. Assim ergueu-se do chão e partiu a correr atrás do pai e da mãe que quase se misturavam na multidão. Finalmente sossegado viu as barracas onde quase tudo se vendia. Mas quando se aproximou do algodão doce num instante esqueceu a ameaça do pai e pretendeu exigir.

Tomás em profundo mutismo, continuou o seu passeio pela Feira de Natal, sem ligar aos pedidos do filho, até que chegou a um local onde numa enorme e iluminadíssima cadeira se sentava… o Pai Natal. Este estava vestido todo de vermelho que contrastava com os seus cabelos brancos que se alastravam até à barba.

Lá conseguiu a permissão de se sentar ao lado do Pai Natal e desta vez aguardou na fila como os outros.

Quando chegou a sua vez aproximou-se devagar do homem gordo e alto e sentou-se a seu lado. O velhote simpático perguntou-lhe:

- Como te chamas?

- Artur!

- Quantos anos tens?

- Quatro!

- Muito bem e agora dá cá um abraço ao Pai Natal…

O rapazito levantou-se do pequeno banco e aproximou-se ainda mais do bom velhote. Mas naquele instante a sua malvadez fez com que agarrasse as barbas do idoso e as puxasse para baixo. Depois exclamou:

- A barbas não são verdadeiras!

Mas no segundo seguinte a tenda onde estavam ambos fechou-se como por magia e as luzes apagaram-se ficando tudo num bréu. Artur viu-se sozinho e desatou num berreiro:

- Mãiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii. Paiiiiiiiiiiiiiiii!

Da mesma maneira que se apagaram as luzes estas acenderam-se. Só que o menino não viu pai nem mãe e muito menos o tal Pai Natal a quem tentara arrancar as falsas barbas. À sua frente muitos meninos da sua idade, mas com ar muito travesso. Cada um tinha na mão um objecto que Artur percebeu serem iguais aos seus desejos.

Uma das crianças aproximou-se e mostrou-lhe um carro de bombeiros grande e muito engraçado:

- Foi isto que pediste ao Pai Natal?

Artur acenou afirmativamente com a cabeça e acto contínuo o outro menino desfez o brinquedo com os pés. Logo outro gaiato apareceu com um novo objecto:

- Pediste este?

Artur chorava agora e respondeu que sim. O outro despedaçou também o brinquedo. Um a um os brinquedos que Artur colocara na lista apontada pela mãe passaram pela sua frente e todos foram destruídos. Quando acabou a mostra o último menino travesso ordenou:

- Despe-te! Tira toda a roupa. Precisamos dela para dar a crianças que não têm nenhuma e que só pedem agasalhos. Vá despe-te…

Quando Artur se sentou no chão para principiar a descalçar, a luz voltou a desaparecer para logo surgir.

O mais fantástico é que Artur estava novamente ao colo de Pai Natal com a mão na barba. Porém em vez de a puxar o menino deu um abraço ao Pai Natal e correu por fim para os braços dos pais.

Na noite de Natal à meia-noite Artur foi a correr abrir as prendas e viu o que pedira inteiro e imaculado. Brincou, divertiu-se para no fim, já noite fora, adormecer no sofá enrolado, não ao carro de bombeiros que tivera direito, mas a um Pai Natal que retirou do pinheiro iluminado.

Conversa pela noite dentro!

Resposta a este desafio

 

Horácio deu conta da porta da rua abrir-se ao mesmo tempo que o velho relógio de pé da entrada batia três badaladas. Admirou-se da hora tardia e confirmou com o velhíssimo relógio de pulso.

- Ena tão tarde e eu ainda sem nada esgalhado… Que chatice!

Passaram uns breves minutos quando escutou:

- Boa noite pai, ainda a pé?

- Boa noite filho… é tarde é… mas ando às voltas para escrever um conto de Natal e ainda não saiu uma palavra sequer!

- Isso acontece não te maces. Deitas-te e amanhã escreves uma estória num ápice, logo pela fresquinha!

Sorriu à confiança do filho no seu desembaraço, mas ousou contradizê-lo:

- Isto do Natal já foi mais fácil escrever!

- Então porquê?

- Porque já se escreveu sobre tudo e mais alguma coisa nesta época. Desde o Dickens…

O filho rodeou a secretária do pai, sentou-se do outro lado do móvel naquela velha e pesada cadeira de pau-santo e dispôs-se a ter aquela conversa.

- Achas mesmo?

- Ai rapaz detesto esses achismos que usas, mas pronto hoje alinho: acho!

- Pai, o Natal é muito mais que comércio selvagem! E também sei que não concordas nas crenças religiosas!

- Tenho consciência disso tido, mas responde-me lá: a quem interessa verdadeiramente o Natal?

O jovem pegou nuns papéis depositados no tampo da secretária, juntou-os e finalmente entregou-os ao pai quase como fosse uma oferta. Por fim acrescentou:

- Há dois tipos de Natal… Provavelmente haverá mais, mas dois existem de certeza.

- O Natal dos Hospitais e o Natal dos Hotéis…

- A sério pai… a brincar com isso? – O tom de voz parecia ter mudado.

- Desculpa tens razão! Nunca fui adepto destes dias recheados, dizem, de tanta coisa e depois vai ver-se e não é nada! E também esse tal de espírito de Natal!

O jovem ergueu-se da pesada cadeira e foi dar uns passos pela enorme sala que servia também de escritório, parou defronte da enorme pintura que diziam ser do seu bisavô que ninguém conheceu e voltando-se para o pai:

- Sabe quem foi este atrás de mim?

- O teu bisavô Segisnando!

- Tem a certeza?

Um silêncio escondeu a dúvida. Horácio acabou por responder:

- Como posso ter a certeza se não o conheci? Quem o conheceu, e por pouco tempo, foi o teu avô já que ele morreu ainda relativamente novo. Creio com a pneumónica!

- No fundo o Natal é assim como este teu antepassado… Sabes que existiu, mas nunca o viste…

O pai ergueu a cabeça para finalmente pedir um ponto de situação:

- O que é que esse avô tem a ver com o Natal… Não entendo… Provavelmente deve ser da hora tardia.

O filho esboçou um sorriso para devolver:

- Tu necessitas escrever sobre o Natal e eu estou a mostrar pistas para o fazeres.

- Ai… Cada vez percebo menos…!

- Pai… imagina como seria o Natal deste teu avô? Mais imagina como seria o Natal dos pobres dessa altura?

O antecessor levou a mão à cabeça e por via das dúvidas tentou esclarecer:

- Estou tão baralhado que não percebo como começámos para acabar neste ponto…

- Mas eu sei pai!

- Estou a ver que sabes mais que eu!

- Sabes onde estive até agora?

O pai ergueu o olhar pesado para o filho. Depois respondeu:

- Não sei, nem tenho nada que saber! És maior e vacinado…

- Pronto ficas agora saber: faço parte de uma comunidade de voluntários e andamos a distribuir comida e agasalhos aos sem-abrigo, durante toda a noite.

- ‘Tás a gozar…

- Eu não brinco com isto, pai. Faço-o há muito tempo e não só na época do Natal. Ou melhor… diria que faço com que o Natal aconteça durante todo o ano.

O velho não respondeu. Continuou:

- Creio que gostarias de um dia ir comigo... Talvez olhasses para esta festa de forma bem diferente...

Num momento seguinte o jovem visou atentamente o pai, mas Horácio estava ora longe pois esgalhava freneticamente esta estória!