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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - Vou ao pão... - XXII

A paisagem desvanecia-se vertiginosamente do lado de fora do vidro. Maria de Jesus que jamais viajara de automóvel, desconhecia por inteiro a sensação da velocidade. Para trás ficara a aldeia, granítica e fria, talhada na encosta de uma serra beirã, os pais pobres e mirrados de tanta labuta e seis irmãos. Ela meava a irmandade e nos seus quinze anos de pura inocência jamais houvera tempo e coragem para ultrapassar o Ribeiro de Baixo, última fronteira para a civilização ora encontrada.

A jornada tornou-se tão longa que a noite ao chegar de mansinho levou o sono, ajudado pelo suave e doce balanço do veículo, a tomar de assalto os sentidos da miúda.

-          Maria! Maria! Acorda cachopa que já chegámos – sussurrava a voz meiga da senhora Amélia.

Acordou estremunhada. Esfregou com vigor os olhos e envolveu a paisagem, agora urbana, numa observação cuidada. Quão estranho, surgiam agora as habitações, diferentes do velho aglomerado onde nascera e vivera. Por entre dentes deixou escapar um primeiro e singelo reparo:

-          Que casas tão grandes…

Maria de Jesus fogosa na sua juventude num ápice se habituou à vida louca de uma grande cidade, para onde viera para aprender a servir com uma governanta, prima afastada da mãe, e que a fora arrancar à aldeia. Aquela tinha para com a miúda um evidente desvelo que a obrigava inúmeras vezes a encobrir os normais erros da nova sopeira. Durante cerca de um mês a jovem iniciou-se no cuidar da casa com esmero, aprendeu a servir à mesa com deferência e requinte, a falar pouco especialmente na presença dos patrões e a rir ainda menos. Foi naturalmente um tempo amargo para ambas, com inegáveis avanços e naturais recuos. Num dia tudo parecia correr pelo melhor, no outro as asneiras sucediam-se. Mas a doçura e perseverança da prima mais velha fizera da mais nova uma fantástica empregada, à qual bastava unicamente a experiência do dia a dia.

Foi assim que certa manhã Amélia aproximou-se da prima, que num breve momento de ócio mirava com entusiasmo um pequeno livro de imagens coloridas, pertença da menina da casa, a Joaninha e comunicou-lhe:

-          Chegou a hora de pores em prática o que te ensinei. Hoje vais começar a servir os senhores na casa de jantar, assim como a menina. Eu também vou lá estar para te ajudar no que for preciso..

-          Mas logo hoje, senhora... – assustou-se a rapariga, carregando ainda com mais fervor nos “esses” típicos da sua pronúncia beirã.

-          E porque não? – insistiu a outra.

Maria de Jesus tinha consciência que este dia chegaria, mas preferia adiá-lo até ter mais confiança em si própria. Por vezes as mãos ainda lhe tremiam. E o tom de voz ainda não era tão baixo quanto os patrões gostariam.

-          Tem calma, não te assustes. Vai correr tudo bem. – Apaziguou. – Até te comprei uma bata nova  - e retirou de um saco um embrulho que entregou à jovem criada.

A criadita pegou na farda por estrear e encantada, encostou-a ao seu corpo franzino e mirou-se vaidosa num velho espelho da casa de banho de serviço. Riu com sinceridade e abraçou a prima, não evitando que duas lágrimas rolassem pela face fresca e jovial:

-          Bem-haja, D. Amélia, bem-haja… - agradecia.

Durante o resto do dia, a ingénua sopeira treinou, à laia de ensaio geral, na mesa da marquise onde dormia, o colocar e retirar de pratos e copos. Cerimoniosa e serenamente e sempre em silêncio. Pela primeira vez iria servir à mesa dos patrões, entrar naquela sala grande forrada de quadros coloridos sem ser exclusivamente para aprender a limpar o pó.

Quando o velho relógio de capela de origem inglesa, herança de um tio e encimando uma antiga cómoda de pau-santo, tocou as oito badaladas a criada penetrou na sala bem iluminada por um lustre enorme que pendia do tecto, reflectindo em miríades de cores a luz que atravessava pequenos prismas de cristal, carregando a terrina fumegante de sopa acabada de fazer.

No lado direito, ao topo da mesa rectangular sentava-se o patrão. Homem gordo, puxava para trás o cabelo preto com a ajuda de algo brilhante, viscoso e de um odor muito desagradável. No lado oposto sentava-se a esposa do patrão, a dona Delfina. Quase tão gorda quanto o marido, parecia ainda assim ser muito mais nova que o balofo amo. Os cabelos castanhos e compridos desciam-lhe pelos ombros até às costas, mas ficavam-lhe exageradamente mal. Entre o casal, de frente para quem entrava, jazia imóvel, qual estátua, a menina Joaninha. Redonda tal como pai e mãe, cabelo loiro apanhado de lado por dois lenços de cetim cor-de-rosa, tentava em vão esconder a falta de dois dentes incisivos através duma expressão sempre carrancuda e triste. A prima, sentada em frente da menina, assim que viu a jovem criada logo se lhe dirigiu em tom calmo e amigável:

-          Ora boa noite, Maria! Serve lá então a sopa, se fazes favor. Hum! Cheira bem!

A jovem olhou-a de soslaio e lançou-lhe um quase sorriso de agradecimento. Encaminhou-se para a criança e preparou-se para iniciar a servir tal como a prima lhe houvera ensinado:

-          Primeiro as crianças, depois as senhoras e finalmente os cavalheiros.

Subitamente e num ataque de fúria repentina e inesperada, a menina deu um salto da cadeira e esbracejando numa birra invulgar, gritou:

-          Eu não quero sopa! Eu não quero sopa!

Os gestos bruscos e imprevisíveis de menina mimada, encontraram na sua envolvência a terrina inglesa. Sem que a criada o pudesse evitar, a loiça escapou-lhe das mãos, acabando por aterrar com estrondo no centro da mesa, espalhando a sopa ainda fumegante pela toalha de linho alvo e bordado.

Atónita aos repentinos acontecimentos a criada não evitou então, um pequeno e desgostoso desabafo:

-          Ai minha nossa Senhora!

O pai gritou, percebendo que fora a filha que originara tudo:

-          Joaninha, mas o que é isto?

A mãe refilou:

-          Maria, olha o que fizeste!

A prima saiu em socorro da jovem Maria de Jesus, naquele seu ar cândido de mãe, que nunca chegara a ser:

-          Ora rapariga, deixa lá! Não te apoquentes! Volta à cozinha e traz outros talheres e pratos enquanto limpo isto!

Logo a patroa interveio no seu habitual tom insolente:

-          Ela que limpe! É para isso que ela cá está...

Contudo a velha Amélia, habituada às fúrias intempestivas de Delfina responde de igual modo:

-          Se a menina Joaninha soubesse comportar decentemente à mesa, talvez nada disto acontecesse. Mas como não sou eu que a educo...

A visada da reprovação baixou o olhar até encontrar a carpete de Arraiolos que atapetava o chão de madeira. A vergonha que a filha a obrigara a passar era realmente culpa dela. Apenas dela…

Maria substituíra entretanto todos os talheres, pratos e copos sujos pela sopa entornada. Estendeu antes uma toalha limpa e tão branca quanto a anterior. O patrão após a primeira observação à filha assistiu a todas as mudanças impávido e sereno. No fundo adorava aquele tipo de confrontos familiares. Entretanto o seu olhar viperino entretinha-se a procurar adivinhar as formas da criada, escondidas pela bata imaculada, imaginando-a despida.

A menina Joana, após a birra, acabou por comer a sopa que não queria. O resto do jantar decorreu por fim sem mais incidentes. A partir dessa noite Maria passou a servir permanentemente o almoço e o jantar aos patrões.

Com a experiência adquirida a jovem beirã ocupou-se de outros afazeres. Havia por isso algum tempo que todas as manhãs saía em busca de pão fresco para o pequeno almoço. Dinheiro à conta para a despesa e as mesmas palavras sempre que fechava a porta, atrás de si:

-          Vou ao pão...

Era na padaria da esquina que Maria passava os melhores momentos. Um grupo de jovens sopeiras, juntavam-se pela manhã, quase sempre à mesma hora na loja, branca e perfumada a pão fresco, do Alípio. O padeiro também ele jovem e afável, derretia-se com a presença das garotas que ao juntarem-se todas ao mesmo tempo na loja, faziam do local um centro de risota e paródia. Maria conhecera-as ali naquele pequeno estabelecimento e ouvia tudo com a avidez que quem só tem uma oportunidade para viver.

Havia a Lurdes, uma moça baixa e gordinha mas muito simpática e risonha, criada na casa de um médico com um rancho de filhos que lhe infernizavam os dias; a Dores, a alentejana de Moura, bonita mas desconfiada servia na mansão de um idoso muito rico mas muito carente de cuidados e atenção; a Miraldina, uma beirã da Guarda, alta e quase masculina, trabalhava numa velha moradia, propriedade de um casal de professores e finalmente havia a Ana. Olhos verdes, cabelos compridos e doirados e corpo bem torneado, o qual ela fazia questão de evidenciar sempre que podia. Nascera em Lisboa, na Mouraria por detrás da igreja do Martim Moniz e era a mais espevitada de todas as sopeiras. Como ela própria usava comentar: “ninguém lhe fazia o ninho atrás da orelha”. Até à idade de trabalhar andou na escola de manhã e na rua de tarde, acompanhando com natural à-vontade os rapazes do bairro nas brincadeiras e nas zaragatas. Tinha sempre resposta pronta e poucos escrúpulos com o seu belo corpo. A mãe falecera de doença incurável e o pai fugira de casa havia tanto tempo que ela nem se lembrava dele. Carente de afectos sinceros e por isso muito sensível, sofria algumas vezes em silêncio as agruras que a vida lhe presenteara. Após diversos empregos acabou por entrar ao serviço de um cavalheiro frio e arrogante que adorava exibir o seu lugar de destaque no governo.

Assim que Ana viu Maria de Jesus pela primeira vez, logo se abeirou do padeiro e comentou para quem a quis ouvir:

-          Ora viva! Temos cliente nova ó Alípio!

O rapaz defendeu a criada.

-          Aninhas deixa a rapariga, que é nova. Não vês que não está habituada a estas conversas...

A outra riu despreocupada e atacou novamente:

-          ‘Tão e depois? ‘Tou a fazer algum mal à miúda?

Maria de Jesus corou mas conseguiu falar, carregando nos “esses” com mais afinco:

-          Oh, deixem-se de discussões. Não quero que se zanguem por minha causa!

O rapaz encolheu os ombros enquanto abanava a cabeça negativamente e ia dizendo com um sorriso:

-          Não ligues a essa tonta, que ela não sabe o que diz.

Mas este foi o início de uma profunda e sincera amizade entre a Maria e as colegas de profissão, especialmente com Ana. Exceptuando o Domingo, a criada recebia na pequena loja forrada a azulejos brancos, nos breves minutos que lá passava, o tónico que a fazia feliz pelo dia fora.

Certo vez entrou Ana esfuziante, abanando na mão um envelope.

-          Ora bom dia pessoal.

-          Bom dia Ana - responderam os presentes em uníssono.

E como ninguém perguntasse a razão da alegria, foi ela quem questionou:

-          Sabem o que é isto? – e abanava freneticamente o envelope.

-          Não! - responderam todos.

-          A minha féria. Finalmente... O sacana nunca mais me pagava! Ameacei-o que me ia embora e que depois fazia uma peixeirada à porta. Foi remédio santo, largou logo ali a massa toda. Olarila... - e riu às gargalhadas.

Enquanto falava abriu o envelope e retirou o dinheiro para que todas vissem que ela dissera a verdade. Depois virando-se para a amiga perguntou:

-          Olha lá cachopa, quanto é que tu recebes?

-          Eu? – perguntou espantada a criadita.

-          Sim tu, minha sonsa. Quanto é que te pagam, os teus patrões? Recebes ao mês, à semana? Como é que é?

-          Eu não recebo nada!

-          Não recebes nada? Então tu trabalhas durante todo o santo dia e não recebes um chavo?

-          Não!

-          Mas sabes que isso é ilegal? Anda cá que eu vou-te ensinar como podes receber o teu dinheiro.

Acorreu apressado Alípio em socorro da jovem criada:

-          Ana toma cuidado! Vê lá o que dizes à miúda! Tu não és de fiar.

-          Cala-te ó mosca morta. Sei muito bem o que estou a fazer – defendeu-se a outra.

E lá foram as duas, rua fora em amena cavaqueira. À porta da padaria já vazia Alípio cruzou os braços e receou pelo futuro daquela rapariga franzina, ingénua mas simpática e bonita.

Estranhamente, um dia Amélia encontrou Maria num choro envergonhado e silencioso. Admirada com a postura pouco habitual da criada geralmente bem disposta, logo lhe perguntou em natural tom de preocupação:

-          Que tens rapariga?

-          Oh nada senhora! – respondeu assustada, tentando limpar os olhos das teimosas lágrimas, com as costas das mãos.

-          Uma pessoa não chora sem razão! Alguém te disse alguma coisa?

-          Não, D. Amélia, não aconteceu nada. Sou eu, que sou piegas – respondeu moderadamente a jovem, tentando recompor-se.

-          Ouve lá Maria – e pegando meigamente na face molhada da moça, continuou – tu podes enganar o patrão ou a patroa, mas a mim não. Vá desembucha, diz o que te apoquenta. Podes desabafar comigo à vontade. Eu nada conto aos senhores.

-          Oh, sei lá... é tudo e não é nada. Tenho saudades da minha aldeia, dos meus irmãos – e de súbito desbobinou um rol de coisas que a própria governanta acabou por solicitar à jovem que parasse.

-          Pronto, pronto... já chega. Deixa lá que para o Verão que vem vamos lá. Os patrões costumam passar férias numas termas lá perto da tua aldeia. No caminho deixamos-te em casa. Combinado?

Maria já não respondia. Só soluçava e agitava a cabeça afirmativamente. Amélia fez-lhe uma festa nos cabelos soltos e sorriu. De repente lembrou-se de algo e voltando-se para a rapariga questionou?

-          Tu sabes ler e escrever?

-          Não, D. Amélia.

-          Mas gostavas de mandar uma carta à tua mãe?

-          Oh sim isso gostava!

-          Então deixa que eu vou tratar disso.

Mas a permanente azáfama dos dias rapidamente fez Amélia olvidar o prometido. De quando em vez Maria lembrava-se das cartas por escrever, mas jamais fizera qualquer referência à promessa.

Os meses voaram. Certo dia o patrão, que era discreto e raramente falava, sem que nada o previsse perguntou à empregada, na hora do jantar enquanto o servia:

-          Há quanto tempo estás cá em casa?

A rapariga pouco habituada a ser abordada pelo dono da casa, assustou-se e respondeu a medo:

-          Não sei senhor Miranda.

-          Há aproximadamente um ano... – respondeu Amélia.

-          E a senhora alguma vez te pagou? – insistiu o homem.

-          Pagar?

-          Sim pagar – e olhou com reprovação para a mulher que se sentava no lado oposto ao seu.

-          Eu senhor Miranda, nunca recebi nada.

-          Então daqui a pouco, após o jantar vou fazer as contas e pago-te desde o primeiro dia até hoje.

Maria tremia de contentamento. Iria finalmente receber o justo valor do seu trabalho. A amiga Ana já lhe atazanara o juízo mais que uma vez para que solicitasse o dinheiro, mas ela sempre afirmara que tinha vergonha.

-          Vergonha é roubar e ser apanhado – refilava Aninhas sempre a rir.

Mas Maria permanecia fiel a si mesma e nunca reclamara aquilo que por direito lhe pertencia. Nessa noite após a refeição, andava a criada atarefada a limpar a cozinha depois de ter feito o mesmo à sala de jantar, quando se aproximou a patroa e naquele seu ar permanentemente austero e seco, lhe entregou um envelope.

-          Aqui tens o teu dinheiro.

Virou-lhe rapidamente as costas à criada, evitando assim que esta ousasse agradecer. A empregada ficou estupefacta com o subscrito na mão. Depois respirou fundo e retirou o dinheiro. Como não sabia ver os números não se apercebeu do valor recebido. Guardou o erário no bolso da bata e regressou ao seu trabalho, mais feliz.

Na manhã seguinte, procurou ansiosa a amiga Ana. Esperou-a à esquina da rua da padaria e quando lhe vislumbrou a silhueta esbelta acenou-lhe efusivamente. A amiga assustou-se com tanta excitação.

-          Bom dia Maria. Mas o que é que se passa?

-          Vê e conta – disse com uma alegria transbordante. E entregou nas mãos da outra o envelope dobrado, tal qual recebera da patroa.

A outra folheou as notas e assobiou, qual miúdo da rua.

-          Ena tanto dinheiro! Sabes quanto está aqui?

-          Não. Eu não sei contar. Até para o pão trago o dinheiro sempre à conta.

-          Ah pois é esqueci-me.

Finalmente e passando nota a nota Ana foi contando o numerário.

-          Cem, duzentos, trezentos... novecentos e mil. Mil escudos. É muito papel, - comentou a outra – E agora que vais fazer com este dinheiro?

-          Sei lá, nunca na minha vida vi tanto dinheiro.

-          Será que a tua mãe não precisará de ajuda? Podias-lhe enviar algum.

-          Isso era boa ideia, mas eu não sei escrever. Como é que faço?

-          Pedes a alguém que escreva por ti. Eu posso fazer isso... Mas também não sei a morada...

Uma expressão viva aflorou à face de Maria:

-          Já sei! Vou pedir ao meu patrão para lhe mandar o dinheiro. Ele sai todos os dias de casa para trabalhar, deve saber como isso se faz. E a D. Amélia é capaz de saber a morada!

Ana concordou e ficou feliz pela amiga. Uma aldeã pura e ingénua numa cidade como Lisboa era complicado. Qualquer um a enganaria.

Assim que chegou a casa logo perguntou a Amélia se sabia do amo. Era sábado e provavelmente ainda estaria a dormir. A prima respondeu-lhe:

-          O senhor Miranda está na sala á espera do pão para tomar o pequeno-almoço. Hoje atrasaste-te.

-          Pois, estava muita gente na padaria. Ao sábado é sempre assim – desculpou-se.

Pela primeira vez a miúda mentira à sua prima. Mas o nervosismo da decisão de enviar o dinheiro à mãe transtornara-lhe o espírito. Entrou na sala onde o patrão se encontrava sozinho. Sem as companhias femininas e velhacas da filha e da mulher, o gordo senhor ainda falava. Com elas presente o homem transformava-se num túmulo. Aproveitando a ausência da patroa, Maria chegou junto do dono da casa e perguntou:

-          O senhor Miranda desculpe-me – os “esses” ouviam-se agora com mais destaque – precisava de lhe pedir uma coisa. Se não for muito incómodo.

-          Diz lá, Maria – respondeu friamente enquanto carregava um papo-seco de compota de morango.

-          Gostava que o senhor enviasse uma carta à minha mãe e pusesse lá este dinheiro.

Os olhos pequenos e redondos do patrão arregalaram-se, mas logo respondeu, afavelmente:

-          Claro rapariga. Logo à noite fazemos isso. Pode ser?

-          Claro, claro, quando o senhor puder e obrigado – agradeceu a criada com um grande sorriso nos lábios.

A partir desse dia todos os meses após receber a féria, a moça entregava algum dinheiro ao patrão. Depois ditava uma carta que este escrevia, comprometendo-se a entregá-la nos correios para que chegasse ao destino.

Durante três anos a rapariga foi enviando missivas para casa, mas estranhamente nunca recebeu qualquer resposta. Entretanto Amélia havia morrido de coração antes das primeiras férias o que fez com que a promessa de regressar a aldeia para rever pais e irmãos fosse adiada.

Todas os dias, exceptuando o domingo, Maria saia de casa sempre com as mesmas palavras:

-          Vou ao pão... – e fechava a porta trás de si.

Todavia uma manhã de Primavera, cinzenta e ameaçando chover, Maria saiu como era habito para comprar o pão quando regressa a casa, de supetão espavorida e atemorizada, sem pão e clamando:

-          Senhor Miranda, senhor Miranda!

Este surgiu do quarto trajando um roupão azul celeste e logo perguntou:

-          O que é que se passa? Morreu alguém?

-          Não sei senhor. O que eu vi foi a rua cheia de tropa e mandaram-me para casa. Nem pude chegar à padaria.

O patrão correu então para a grande telefonia de madeira e acendeu-a. Enquanto esperava que o rádio aquecesse, espreitou pela janela a rua. Na verdade diversas viaturas militares pareciam travar o acesso às poucas viaturas civis. Quando o som surgiu da telefonia apenas se ouvia alguém a chamar a atenção para o que se estava a passar. Os militares estavam na rua numa tentativa de golpe de estado. O homem gordo e anafado estremeceu. Correu para o quarto e acordou a mulher.

Estava-se no dia 25 de Abril de 1974 e o senhor Miranda demonstrava realmente muita preocupação com o seu futuro. Ligou para o trabalho onde ninguém atendeu. A excitação da incerteza do que iria acontecer a seguir era evidente. Mas num rasgo de esperteza, o senhor Miranda foi no dia seguinte aclamar para a rua os vencedores aos gritos de Liberdade e Democracia. Nesse mesmo dia Maria de Jesus encontrou as outras amigas que segredavam coisas umas às outras. No entanto Ana não apareceu e a jovem regressou triste e preocupada a casa. Uma lágrima cintilante surgiu até serpentear pela face jovial e cair na mão.

Ana regressou dois meses mais tarde, quando já ninguém esperava. Não trazia bata e vestia uma saia muito curta, exibindo um belo par de pernas que Alípio logo aprovou:

-          Ena, que bonita que estás, cachopa! Há quanto tempo, hem?

-          Pois é, estive no Brasil!

-          No Brasil? Deixa-te de brincadeiras! – duvidou o outro.

-          Estou a falar a sério. Tu sabes que o meu patrão estava ligado ao governo e teve de fugir, por causa da Revolução. E eu fui com ele! O homem estava cá com uma miúfa que o prendessem!

E fez um gesto característico com os dedos.

-          E já regressou?

-          Não! Veio só a mulher mais os filhos e eu claro vim com eles! E tu como vais?

Alípio não esperava a pergunta mas espondeu:

-          Vou bem. Agora isto está diferente. As pessoas já falam e há greves e partidos. Muita coisa mudou.

-          Ainda bem! E diz-me lá, que é feito da Maria de Jesus?

-          Anda aí triste, triste... Todos os dias que aqui vem pergunta por ti.

Ana sem esperar comoveu-se. Sentia por aquela amiga um carinho enorme. Doera-lhe ir embora sem nada lhe dizer, mas não tivera sequer tempo para isso. Apenas comentou:

-          É boa miúda...

Mas as amigas acabaram por se encontrar e Maria de Jesus fez uma natural festa. Gostava da Ana, era como uma irmã. E assim a vida regressou ao rame-rame de outros tempos.

A Revolução dos cravos trouxera novas atitudes e desejos. Maria de Jesus passou a ter bilhete de identidade e com direito a votar. O patrão perdera aquele ar superior e distante e falava-lhe agora com mais afectividade, ao contrário da patroa que surgia cada vez mais como um animal feroz, pronto a atacar a presa. Havia no olhar daquela mulher ódio, raiva, tristeza e acima de tudo desilusão.

O melhor de tudo no entanto, eram as lições que Maria de Jesus recebia numa escola para adultos fomentada pela Junta de Freguesia. Lentamente foi aprendendo a ler e a escrever. Os números pareciam mais complicados, mas ainda assim conseguia obter bons resultados. Todavia todos os meses solicitava ao patrão que escrevesse nova carta para a família à qual juntava algum dinheiro. Sentia-se pouco segura para pegar num papel e numa caneta e escrever, assim sem mais nem menos uma carta à mãe. Havia perto de seis anos que saíra da aldeia e jamais soubera dos seus. Sentia tantas saudades e estranhava a ausência de resposta às suas missivas, mas também sabia que nem pais nem irmãos sabiam ler ou escrever. Mas o prior sabia...

Uma manhã, descia Maria de Jesus para comprar o pão como de costume, quando encontrou uma vizinha com um envelope na mão, que se lhe dirigiu:

-          Olha lá Ju – assim a tratavam no prédio – sabes quem é a Maria de Jesus Silva?

-          Sei! Sou eu – respondeu prontamente.

-          Então toma. Esta carta é para ti!

-          Para mim? – perguntou com natural e indisfarçável admiração e não deixou a outra sem agradecimento – obrigada.

Volteou o envelope nas mãos até que o guardou para ler mais tarde. À noite no recanto do seu leito, pegou no subscrito e abriu-o com emoção. Era a primeira carta que recebia. Já sabia ler bastante bem e foi fácil entender o que lhe haviam escrito.

Para a primeira missiva, carregava muitas notícias. E nenhuma era boa. A mãe morrera já, doente e sem dinheiro para os melhores remédios. O pai enchera-se de dívidas no boticário tentando valer à mulher enferma. O irmão mais velho perdera a vida por terras da Guiné. Maria ia lendo enquanto as lágrimas corriam em fio, cara abaixo. E a maior queixa era de ela não escrever uma linha que fosse ou perguntar se precisavam de alguma ajuda.

Um arrepio trespassou-lhe a espinha. A pergunta surgiu-lhe então no seu espírito inocente. Então para onde teria ido o dinheiro que enviara todos os meses? De chofre percebeu o que lhe acontecera e nasceu em si pela primeira vez a revolta dos indefesos.

Em todos aqueles anos ela trabalhara graciosamente. O patrão velhaco e arrogante, em vez que enviar a carta com o dinheiro, ficava com ele em proveito próprio. Veio-lhe à ideia certa tarde em que encontrou o amo com uma carta dela na mão. Sem que desse pela chegada da empregada, tentou fabricar uma desculpa, quando se apercebeu que a criada tinha reparado na missiva.

-          Desculpa Maria, mas hoje tive muito que fazer e quando cheguei aos correios já eles se encontravam encerrados – desculpou-se atabalhoadamente.

Apeteceu-lhe finalmente gritar de desespero, pensou em partir tudo lá em casa, mas após a primeira revolta, reconsiderou. Mordeu o lábio inferior e jurou vingar-se. A noite, passou-a em claro, rezando o terço pelos defuntos mãe e irmão e magicando a melhor forma de se fazer pagar do que lhe haviam feito.

Havia algum tempo que a Delfina confiava inteiramente na Maria de Jesus, para fazer as compras. Esta sabia onde a patroa guardava o dinheiro. E havia lá sempre bastante. Todos os dias abria a pequena gaveta de um móvel e retirava de lá o que precisava para as compras do dia. Quando chegava depositava religiosamente no mesmo local o troco recebido. Mas dessa vez pela manhã, foi à gaveta como era habitual, recolheu todo o numerário que lá encontrou e sem denunciar na voz qualquer emoção comunicou como de costume:

-          Vou ao pão... - e fechou a porta atrás de si.

Todavia desta vez fazia-se acompanhar de uma pequena mala de viagem. A mesma que trouxera da sua aldeia com as poucas e pobres vestes.

Em vão, aguardaram os patrões naquela manhã pelos papo-secos frescos e estaladiços. Sujeitaram-se por fim ao pão duro e quase bolorento. E durante todo o dia esperaram pela criada que tardava em aparecer. Preocupada mas decidida, a patroa acabou por sair em busca da rapariga. Começou pela charcutaria onde ninguém nesse dia a tinha visto. No talho também não estivera. Finalmente procurou na padaria que se encontrava fechada. Ao virar as costas à porta da loja reparou então num letreiro de papel colado no vidro da montra, que dizia:

“Precisa-se de empregado”.

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