Contos Breves - Ana Descalça - XXXIX
Viviam-se tempos incertos. As terras mal amanhadas exigiam braços para lavrar e deitar ao solo as sementes para nova colheita. O Francisco Xavier olhava a fazenda coberta de erva e mato, subia a pala da boina até ao topo da testa e lamentava-se:
- Quando é que vou ter este chão lavrado?
E respondia logo de seguida:
- Nunca!
A leira estendia-se da baixa da Ribeira das Mós até ao cimo onde iniciava a tapada do ti’Brito. A brisa daquele fim de tarde carregava frescura e parecia anunciar chuva:
- E se chove ainda por cima…
A chuva seria bem vinda, mas só depois da sementeira. Até lá haveria de arranjar braços.
- Mas onde?...
Nessa noite na taberna enquanto dormitava entre dois copos de três, encostado à mão calejada, ouviu o Joaquim Goivo a falar sobre umas mulheres que trabalhavam a terra, tal qual um homem. O preço era mais barato e no despacho era semelhante ao que dava um homem. Ouvido atento Chico deixou que o outro fosse soltando a língua. Para isso pagou mais um copo:
- … Traçadinho, se fizeres favor ó Januária.
E lá ia destravando a conversa. Nessa noite Chico deitou-se mais descansado. Já soubera onde encontrar pessoal para a sua lavra. Logo pela manhã, ainda o sol não despontara por detrás da serra de Santa Teresa e já o homem aparelhava a burra. Légua e meia separava-o da terra onde as mulheres trabalhavam que nem homens.
Muito caminho para palmilhar com a esperança no coração. Não fosse o Tó Telhas ter vendido o gado para emigrar e nada disto seria necessário, porque a junta de vacas que o Tó costumava passear pela aldeia com orgulho servia na perfeição para amanhar o chão. Enfim o que precisava agora era de gente para tratar a terra.
Soava o meio-dia quando chegou à terreola. A manhã mantivera-se fresca ameaçando chuva, que não chegou a cair. Ao longe conseguiu finalmente ver o relógio da velha igreja que sobressaía dos restantes telhados. Antes de entrar no povo, desmontou-se da burra e continuou o caminho a pé até encontrar uma tasca onde pudesse enganar a barriga esfomeada.
As ruas eram estreitas e o chão pedra cinza. O som das ferraduras do animal ecoavam e de quando em vez viúvas curiosas assomavam à porta ou à janela dando fé de quem passava. Chico, quando as via, saudava com simpatia, recebendo normalmente também um cumprimento:
- Bom dia!
- Bom dia, senhor!
A rua principal desembocou no largo da igreja. Ao lado, uma velha porta aberta deixava antever o interior de uma taberna. Chico entrou e saudou:
- Bom dia.
Nas entranhas da loja fervilhava um odor profundo a vinho azedo misturado com o fumo de tabaco barato. Uma lâmpada caía do tecto, negra das moscas. Nas mesas toalhas de plástico de quadrados vermelhos, semi-rasgadas cobriam os tampos velhos e sujos. Um pano seboso retirou os vincos redondos dos copos de vinho. Foi o que fez o taberneiro quando o aldeão se sentou:
- Então viajante o que o trás por cá?
- Boa tarde, primeiro preciso de comer alguma coisa! O que é que tem?
- Chouriço para assar, couratos…
- Pode ser o chouriço! E um jarro de vinho.
- É para já…
Aguardou pacientemente que o petisco chegasse. Entretanto foi reparando no pouco movimento da casa. Ou fosse do espaço sombrio e triste, ou fosse da hora, ainda relativamente cedo, a verdade é que poucos eram os clientes. O taberneiro surgiu finalmente com o prato ainda fumegante, um naco de pão e o respectivo jarro de barro repleto de vinho sangue e espumoso. O patrão era um homem atarracado, redondo de barriga e pernas, cara tal qual uma abóbora como as que cresciam nas terras fecundas, calva plena. Caminhava com passos curtos e apressados e trajava à volta da cintura um pano que já vivera outras brancuras.
Chico Xavier era pobre mas sempre se habituara à limpeza e aquele não era o esmero do asseio. No entanto o chouriço era excelente, assim como o pão e o vinho. Após ter pago a despesa passou para a parte que o obrigara a sair da sua aldeia.
- Sabe-me dizer onde mora a Ana Descalça?
- Oh se sei! Segue aqui ao lado da capela até encontrar uma enorme amoreira. Esse é o quintal dela. Tem de dar a volta ao cerrado que a casa é do outro lado – e gesticulava com as mãos sapudas e gordurosas tentando ajudar o forasteiro.
- Obrigado – agradeceu Xavier enquanto se apercebia de um sotaque característico no taberneiro.
Pagou, agradeceu uma vez mais e partiu em busca da Ana. O nome soubera-o na noite anterior quando o Joaquim soltou as amarras da língua e despejou o que queria e não queria, pois o homem era pouco dado a conversas da sua vida e aquele momento fora obviamente um achado a roçar a denúncia.
A amoreira surgiu enorme na sua frente. Um muro de pedra não evitava que se visse o naco de terra que ali se espraiava. Bem tratado, a horta parecia um jardim. Esguias canas surgiam do chão segurando os feijoeiros verdes e viçosos. Mais ao lado tomateiros, pimenteiros, cebolas, alhos, batatas tudo crescia como se tivesse sido ali posto com régua e esquadro. Chico aprovou o que via e procurou a porta. Para a estrada de terra batida apenas reparou nas janelas. A porta surgia ao lado, mas um portão de ferro impedia-lhe a passagem. Bateu no portão com vigor e chamou:
- Ana! Ó Ana!
Silêncio. Apenas se ouviam os pardais no cimo da amoreira numa chilreada infernal. Logo percebeu que Ana não se encontrava em casa. Havia que aguardar pacientemente. Deixou que a burra procurasse de comer num baldio defronte da casa enquanto Chico rebolou uma pedra para debaixo de uma oliveira e a esta se encostou aproveitando para colocar algum sono em dia. Acordou quando ouviu o portão da casa a bater com força. Levantou-se lesto e acorreu em busca de Ana. Bateu suavemente e desta vez ouviu alguém responder:
- Quem tá aí?
- Ana?
A mulher apareceu. Trazia nas mãos uma galinha que se debatia para fugir. Trajava uma roupa de trabalho muito suja e amarrotada. Ana era magra, cabelo preso na nuca, andar despachado e face rasgada por anos de trabalhos. Chico mirou-a de alto a baixo e não obstante a sujidade, gostou da forma simples como se apresentou. Calçava uns sapatos velhos e sujos, mas foi perguntando:
- Quem é o senhor?
- Sou o Chico Xavier. Venho daquela aldeia por detrás da serra em busca de gente para vir trabalhar para mim.
- Ai sim?
- Pois eu sei que trabalha bem a terra. O Joaquim Goivo é que me disse – avançou antes que ela o mandasse embora.
Ao ouvir o nome do Joaquim, Ana pareceu outra. Deixou aquele ar agitado e falou com mais calma.
- Foi ele que falou de mim?
- Foi…
- E o que disse?
- Que era boa trabalhadora, tal qual um homem. E pelo que vi na sua horta, ele tem razão…
Os lábios da camponesa abriram-se num sorriso franco. A horta de Ana era a sua única vaidade. A mulher estremeceu ao ouvir falar da sua terra.
- Gosta?
- Gosto sim senhora. Bem tratada aquela terra. Foi você que fez aquilo?
- Sozinha… - Ana estava feliz, deslumbrada.
- Belo trabalho, sem sinhora…
Mas Chico temia que aquela forma de abordagem não fosse suficiente para convencer a mulher a trabalhar para ele. Passou então ao que interessava:
- Está disposta a vir tratar do meu chão?
- Ainda não sei… - após breve silêncio devolveu - e quanto paga?
- Pago-lhe mais que pagou o Joaquim.
- Assim gosto mais da conversa.
- E dou-lhe de comer e onde dormir. Se arranjar mais alguém, também pode levar. Há lá muito trabalho para fazer…
A necessidade obrigava-o a abrir os cordões à bolsa.
- Isso é que é falar…
Chico percebera no diálogo avinhado do seu conterrâneo que a mulher pelava-se por dinheiro. E pagar mais seria a única maneira de a levar até à aldeia.
- Posso então contar consigo?
- Não sei. E é para fazer o quê?
- Tenho um grande pedaço de chão a pedir enxada, já que quem me lavrava a terra antes, emigrou para a América.
- Hum, e quanta gente precisa?
- Duas ou três… mulheres - ele não sabia bem que número avançar.
- E para quando?
- Logo que pudessem. Estou apertado com o tempo. Daqui a pouco chove e eu preciso do chão cavado para deitar sementes à terra.
Ana coçou a cabeça por cima do lenço que lhe tapava o cabelo sujo e após alguns segundos de silêncio concordou:
- Depois de amanhã estamos lá. Eu e mais duas mulheres.
- De acordo, espero por vocês lá. Eu vivo perto da fonte de Santo António. Pergunte por mim que toda a gente sabe onde moro.
Chico partiu feliz. Finalmente conseguira alguém para trabalhar a sua terra. O chão era bom mas urgia trato. Quando entrou em casa já noite profunda, carregava um ar mais aliviado. Dois dias depois, manhã cedo ouviu bater à porta. Admirou-se que alguém viesse a sua casa tão cedo, mas respondeu:
- Já vou!
Quando escancarou a entrada deu de caras com Ana, acompanhada por mais duas mulheres.
- Cá estamos, conforme combinado.
- Bom dia. Não vos esperava tão cedo.
- Acredito, mas saímos ainda de madrugada.
- Muito bem, vou-vos levar à casa onde vão ficar estes dias.
- Isso é que é falar!
Chico regressou ao interior da sua casa, rapou das chaves de um velho casacão e partiu com as mulheres. Pelo caminho foi-lhe indicando alguns locais mas as trabalhadoras não se mostraram muito interessadas. No casarão, que em tempos fora uma habitação quase nobre, abriu a porta e acendeu um coto de vela. Uma luz parda e mole iluminou mal a entrada.
- É aqui que ficam. Isto está um bocado sujo, mas vocês podem limpar de forma que fique em condições para vocês viverem.
- Está bom. Nós tratamos do resto. Sempre é melhor que o palheiro do “Jaquim”.
Aquela maneira engraçada de falar é que o espantou mais o Xavier.
- Bom então quando podem começar?
- Logo a seguir ao almoço, pode ser?
- Pode, pode… Eu já vos trago alguma coisa para comer.
- Hoje não, amanhã!
- Como queiram. Então à uma estou cá...
À hora aprazada quando chegou junto à casa, já as três mulheres o aguardavam.
- Boa tarde, meninas! Vamos lá?
- ‘Bora! – Responderam em uníssono.
A terra a amanhar surgia quase imponente. Chico apontou as estremas e exclamou:
- Eis aqui o chão para tratar. Daqui até ao fundo, junto daquele velho carvalho.
- Podemos começar?
- Claro, quando quiserem.
As mulheres pegaram nas enxadas previamente trazidas pelo Chico e sem mais nada descalçaram-se e entraram na terra. O patrão olhou-as com espanto mas nada disse. Ana e as companheiras cravavam na terra o aço da alfaia, com vigor ombreando com o mais forte aldeão.
No dia seguinte bem cedo as cavadoras recomeçaram o trabalho com o mesmo vigor. Na tarde anterior haviam cavado um bom pedaço. Falavam na sua forma engraçada por vezes quase imperceptível. A terra revirada, ferida pelas enxadas frias estava agora quase pronta para a sementeira de Xavier. Ana e as companheiras continuavam a descalçar-se sempre que entravam para terra. Chico espantado perdeu a vergonha e perguntou:
- Porque te descalças, rapariga? Tu e as tuas amigas?
Ana olhou-o de frente e em vez de responder, questionou o patrão, naquele seu sotaque tão invulgar:
- Vossemecê vinha para aqui calçado?
- Eu? Claro! Porque não?
- Porque eu não gosto de estragar os sapatos. Eu não sou rica para comprar outros.
Chio abanou a cabeça em total desacordo, mas não disse mais nada. Dava gosto ver aquelas mulheres trabalhar, fosse calçadas ou descalças.
- Esta terra fica um mimo. Tem pouco pedra, desfaz-se bem – exclamou uma das companheiras de Ana.
A tarde corria para o fim. O sol escondia-se por detrás da colina. A brisa da tarde levantava pó como uma nuvem sempre que a enxada fendia a terra. Chico olhou o relógio de bolso e exclamou:
- Meninas! Por hoje chega!
Mas Ana logo retorquiu:
- Pelo menos deixe-me chegar até aquela estrema. Fica mal um bocado por cavar.
O patrão aceitou.
- Seja como vocês quiserem.
Uma enxada silvou no ar e subitamente bateu numa das poucas pedras escondida pelo mato, soando um som metálico do choque. Logo de seguida um grito estridente veio das mulheres. Fora Ana a vítima. A folha da guincha resvalara na pedra e acertou no pé descalço cortando-o numa ferida profunda. A mulher gritava, tentando em vão estancar o sangue que jorrava abundantemente:
- Ai, ai, ai o meu sapatinho…
Xavier abismado ainda olhou para o pé, mas não viu nenhum sapato, nem perto. Mas Ana continuava a lamúria:
- Ai, ai, ai o meu sapatinho… Se tenho o meu sapatinho calçado estava agora todo cortado… Ai o meu rico sapatinho…
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