Contos Breves - Um dilema - XVII
No sopé de serras profundas, rodeada de escarpas íngremes e encostas inacessíveis eleva-se um pequeno povoado. O granito áspero e frio forra as casas gémeas de dois pisos. Em baixo repousam os animais e guarda-se o vinho e o azeite. No andar superior vive a família em ínfimos quartos, onde mal cabe a ferrugenta cama de ferro e uma sala onde a lareira é o centro do lar.
O chão das ruas estreitas, onde um carro de bois passa à justa, alterna entre a lama viscosa no Inverno rigoroso e o pó seco no Verão tórrido, que penetra nos lares depositando-se com suavidade nos velhos móveis carunchosos, formando uma fina camada, que as mulheres tentam em vão dissipar.
Atravessa a aldeia, uma pequena ribeira que nos seus momentos de maior fervor, trazido pelas chuvas ou pela neve serrana, transborda e alaga os lameiros cincundantes. Contudo pelo Estio como que adormece e somente um pequeno fio de água vai serpenteando por entre pedras redondas e brancas.
Os homens pela manhã, transportam ao ombro velhas enxadas a caminho das suas hortas. Carregam nas botas de coiro ressequido o passo já cansado de uma manhã madrugadora e laboriosa. O sol cai a pique. A gaiatada grita feliz atrás duma bola de trapos. As mulheres procuram a velha loja do Américo, onde desenferrujam a língua. Comentam paixões desalinhadas de juventude, querelas perdidas, futuros fantásticos, anseios luminosos e assim num ápice, põem a conversa em dia.Naquele Verão a ribeira não é mais do que um pequeno refúgio do gado sedento. Entre todos da aldeia, o acordo prevalece como lei, de ninguém retirar água para rega. Só os animais ali podem beber. Alguns poços há muito que secaram. E apenas na fonte se enchem os cântaros de barro. Havia já quem se queixasse das couves, das nabiças, do feijão-verde ou dos tomateiros que não medravam e tudo por falta do precioso líquido.A aldeia parecia esmorecer ao vigor do Estio austero.
Assim certo domingo, após a missa, o velho Sousa, homem decidido e de ideias precisas dirigiu-se à sacristia e bateu:
- Dá-me licença, senhor Prior? – perguntou, espreitando pela porta entreaberta.
- Entre – responderam de dentro.
Ao entrar o aldeão pode ainda reparar que o padre despia os paramentos mostrando um fato escuro e que lhe assentava na perfeição. Este notou então no seu interlocutor e admirou-se com a invulgar presença do camponês.
- A que devo esta visita?
- Queria-lhe pedir um favor, não sei se posso?
- Meu amigo pedir não custa. Diga lá então a que vem!
- Como o senhor Prior já sabe, há muitas semanas que não chove. Pedia-lhe então, que nas suas rezas, rogasse a Nosso Senhor Jesus Cristo para que se compadeça de nós e nos mande umas pinguinhas de água.
- Mas isso não está na minha mão. A mãe Natureza é soberana. Nada posso fazer, – respondeu sem demora o pároco.
O lavrador coçava a cabeça e insistia com ar humilde:
- Ó Senhor Prior, fale lá com os seus anjinhos se fizer favor.
O Padre Cruz não sabia que responder e o Sousa continuava a teimar ajuda do Altíssimo. Mas, após tanta súplica lá acabou por aceder:
- Está bem, vou ver o que posso fazer – acabou por prometer o eclesiástico, sem muita convicção.
- Muito obrigado, senhor Prior, muito obrigado – agradeceu o outro de forma sincera – e agora me vou.
No adro da igreja o Sousa contou aos amigos que o esperavam, a conversa que tivera com o clérigo e deixou que a esperança fosse repousar nos corações dos homens.
A semana correu célere e no domingo seguinte, quando o Padre Cruz quis entrar na igreja, encontrou-a, para seu espanto, barricada com troncos de oliveiras que mais parecia o madeiro do Natal antecipado. Procurou enfim a porta lateral, mas também esta se encontrava vedada por grossas raízes.
Admirado com o invulgar episódio logo buscou na taberna a resposta àquele ajuntamento de lenha. Entrou na loja velha e escura e dirigiu-se ao balcão. O taberneiro, admirado com a presença incomum do padre, logo questionou:
- Então, a que vem? Esta, que eu saiba, não é a sua casa?
- Bom dia – cumprimentou - e para sua informação todas as casas são casas de Deus. Mas fique desde já a saber que venho aqui por uma razão bem pouco simpática.
- E qual é? – voltou o outro.
- Gostava de saber quem foi o brincalhão que colocou toda aquela lenha no adro da capela, de tal forma que não consigo entrar?
- Qual lenha? – perguntou o tasqueiro, a fazer-se de novas, não evitando contudo um ligeiro sorriso irónico, que não passou despercebido ao padre.
O clérigo nem se dignou responder e olhou em redor em busca da resposta à sua pergunta, nos homens que se encontravam sentados. Numa mesa forrada a plástico de quadrados azuis e brancos, dois idosos jogavam damas indiferentes ao que os rodeava. Noutra, um jovem dormitava encostado ao braço. Por fim, na mesa do fundo, três homens beberricavam pequenos copos de aguardente enquanto olhavam o padre com azedume. E deste último ramalhete saiu Horácio, que sentindo a acusação na questão do clérigo, levantou-se do seu lugar e de dedo em riste, barafustou:
- Vossemecê prometeu chuva, mas até agora nada! Por isso acabou-se, não o queremos cá mais. Vá pregar para outra freguesia. Vá, xô!
Parecia que estava a espantar um rebanho. O velho padre respirou fundo maneou a cabeça e saiu da taberna. Regressou ao convento onde relatou os acontecimentos ao seu superior que logo ordenou a sua substituição.
Na semana seguinte o novo padre encontrou a igreja desimpedida e realizou a eucaristia com fervor e devoção. A capela, centenária e humilde, estava repleta. No final da missa outro homem introduziu-se na sacristia e rogou ao vigário para que este orasse por alguma chuva. O padre respondeu que não tinha poderes para fazer chover, que só Deus e outras desculpas. Todavia o homem teimava em não se calar com o pedido, até que o prior respondeu:
- Vou orar muito para que chova... mas não prometo nada.
Mas o tempo não estava de feição e nos dias seguintes continuaram de céu azul e canícula. Ora no domingo seguinte o novo padre encontrou as portas da capela trancadas com grossas tábuas, pregadas de forma a não permitir qualquer acesso. Já conhecedor do que acontecera ao seu antecessor regressou sem dizer missa.
No dia seguinte alguns padres encontraram-se no velho convento e trocavam impressões. E os dois eclesiásticos, vítimas dos aldeões, comentavam:
- ... Também eu não pude rezar missa. Estavam trancadas as portas. Era de todo impossível lá entrar.
- Mas já viste o trabalho que eles tiveram em pôr lá toda aquela madeira? Só de tolos!
Ao lado outro companheiro da palavra de Deus ouvia a conversa e curioso perguntou:
- Mas o que é que se passou?
Os dois relataram os acontecimentos e decidiram em total acordo que não voltariam à aldeia.
- Então eles puseram-vos fora, foi? Deixem comigo, que eu resolvo o problema! – atirou entretanto o outro prior.
E assim o padre Fernando pegou na sua bíblia e no domingo seguinte apareceu na aldeia. Aqui chegado, encontrou um grupo de homens, sentados no pequeno muro da capela em amena cavaqueira.
- Bom dia, meus senhores. Deus esteja convosco! – saudou o pároco.
- Bom dia senhor padre – responderam quase em uníssono os homens.
A igreja estava aberta e o padre entrou. Ainda mal penetrara na velha e bafienta sacristia para se preparar para a missa, quando ouviu bater à porta.
- Faça o favor de entrar – disse o prior.
Um aldeão entrou na pequena sala e repetiu os pedidos feitos aos anteriores eclesiásticos com o mesmo fervor e teimosia. O padre escutou-o com a atenção devida e finalmente acedeu:
- Ouvi tudo o que tinha para me dizer, mas acho que este assunto deve ser tratado no final da missa, com todos presentes. Pode ser?
O outro respondeu afirmativamente com agrado e despediu-se com uma sentença:
- Já percebi que vossemecê não é como os outros. Creio que desta vez ficamos com o problema resolvido!
- Pode crer, meu amigo, pode crer – disse entre dentes o padre.
O camponês saiu com a esperança renovada e não reparou no sorriso matreiro do padre.
À hora sagrada a pequena orada estava repleta. A notícia de que o prior ia aceder aos intentos dos homens, correu o povo que encheu por completo a casa de Deus. Todos os rituais foram cumpridos e decorreram com a maior solenidade que a ocasião obrigava. Chegado ao fim, o padre sentiu a assistência um tanto nervosa e logo acalmou:
- Meus irmãos, fui abordado, logo que cheguei, por um de vós que rogou para que eu fizesse chover. Ora eu não sou Deus, mas podia eventualmente nas minhas orações pedir essa intenção. Contudo há algo que pretendo saber antes de fazer qualquer coisa. Necessito apenas saber se estão todos de acordo quanto à chuva? Isto é, se não há ninguém que esteja em desacordo em que eu faça chover?
Um inesperado burburinho percorreu então a sala e quando o padre estava prestes a dizer o sim às pretensões do povo, eis que surge do fundo uma voz que gritou:
- Mas eu não quero que chova agora. Já tenho o milho na eira para debulhar e a palha para arrumar e se chove estraga-se tudo. Chuva nesta altura nem pensar. Eu não quero!
Novo burburinho. De súbito levantou-se um dos interessados em que chovesse e disse:
- Então por causa de um estraga-se as coisas dos outros?
Nova barafunda. A determinada altura o padre, do alto do seu púlpito, chamou:
- Bem meus irmãos, temo que tenhamos aqui um problema que só vocês podem resolver. Então é assim – continuou o padre sem esperar pela resposta – quando todos estiverem de acordo eu faço o que prometi. Até lá deixo tudo nas vossas mãos e claro nas mãos sábias de Deus. E por hoje é tudo. Podem sair.
A igreja esvaziou-se em silêncio.
Quando saiu, o padre Fernando notou nos olhares estranhos que lhe deitavam alguns aldeões, alguma raiva incontida, pela maneira feliz como saíra da situação, deixando na aldeia a resolução do problema.
A decisão acabou por nunca chegar ao conhecimento do padre. Nem este jamais fez qualquer referência ao caso, nas missas seguintes. Deixou que o tempo se encarregasse de resolver o dilema.