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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - A Maldição - XV


Ilídio entrou em casa e logo ali descarregou as seis arrobas em cima de um velho cadeirão. Este, rangeu ao peso abrupto do corpanzil mas manteve-se aparentemente incólume sem mais agrura. O homem retirou a boina surrada e suja, deixando antever pequenos tufos de cabelo suado cor de neve e que tentavam ingloriamente esconder uma evidente calva. A mulher lavava ainda a loiça do almoço e esperou que o marido dissesse algo. E não demorou:

-       Comprei a azeitona da Quinta da Trindade - disse com ar triunfante.

Um silêncio incrédulo pairou no ar antes que o homem voltasse à carga:

-       ... Pois foi... Comprei aquele olival...

Parecia uma criança a quem deram um brinquedo novo. Um sorriso sincero rasgava-lhe a face morena. Finalmente a Mércia devolveu num tom pouco apaziguador:

-       Mas tu endoideceste, homem? Deves ter pago uma fortuna! Quero saber onde vais arranjar o dinheiro para pagar ao dono.

O homem parecia que adivinhara a pergunta pois logo retorquiu:

-       Mas tu não sabes quanto é que eu paguei! E mais... Só pago quando vender o azeite.

Céptica das afirmações categóricas do marido, carregou ainda:

-       Mas tu viste o olival? Olha que às vezes a azeitona engana.

-       Esta é certinha, não falha. Basta que o tempo corra a jeito e este ano temos boas filhós pelo Natal.

-       E o pessoal para a apanha? Não sei se arranjas... – inquiriu numa permanente dúvida.

-       Hei-de arranjar. Ou não me chame Ilídio - respondeu de forma convicta.

Da lareira a meio metro do chão da cozinha, saiu uma voz que penetrou na conversa como agoiro.

-       Nem um bago lá apanhas...

O camponês apercebendo-se que era a sogra que falava, logo devolveu com arrogância:

-       Eh lá! Vire para lá essa boca. Vossemecê diz cada uma!

-       Nem um bago ... Aquela terra está amaldiçoada - insistia a velha enquanto, com a ajuda de um pequeno funil enchia as tripas secas de carne, de vermelho temperada.

O genro nem acreditava no que ouvia. Certo era que se contavam histórias acerca da Quinta da Trindade, mas ele fora ao olival e as árvores quase vinham abaixo com tanto carrego. Mesmo que caísse alguma, ainda havia que fazer por umas semanas. Ora agora nem um bago... podia lá ser? Havia azeitona até, até...

Todavia o tom sinistro com que a sogra falara, acabara por assustar o pobre homem. Entre o crente e o céptico logo pretendeu saber a coisa a fundo.

-       Então ti'Cândida, explique-me lá essa história... – enquanto um esgar velhaco lhe assomava aos lábios.

A idosa poisou o trabalho, limpou as mãos a um pano velho e retirou do bolso do avental um terço. Velho como a dona, companheiro dos bons e maus momentos, era o refúgio permanente da crente. Passando as contas pelos dedos a Cândida começou o seu relato:

-       Há muitos anos viveu na Quinta um homem bom. Fidalgo de grandes e boas famílias - havia mesmo quem afirmasse que era ainda aparentado ao Rei – ainda jovem ficou só no mundo. Só mas rico. Muito rico. Como único herdeiro de toda a fortuna da família depressa surgiram candidatas a noivas. Mas D. Bartolomeu recusou-as a todas. Haveria :finalmente por casar com a Germana, rapariga ainda do meu tempo, filha de um ferrador. Mas a tristeza haveria de povoar novamente a vida do fidalgo, pois ao fim de um ano de casado, perde a mulher e o filho na mesma hora.

-       Logo os dois, mãe - comentou a filha com amargura.

-       Pois foi. Mas D. Bartolomeu era um homem temente a Deus e resignou-se à sua sorte. Jurou nunca mais casar e dedicou-se de alma e coração à Quinta. Esta que já era enorme e fértil ainda cresceu mais. Quase todos os homens das redondezas trabalharam na propriedade. Era uma terra abençoada. Lembro-me de uma vez só se ter colhido mais de dez carros de bois de milho num pequeno leirão perto ao lameiro de baixo. O lagar de azeite já foi feito por ele! E começava a trabalhar por altura dos Santos e no Entrudo ainda fazia azeite. O fidalgo era um homem valente e determinado. Infelizmente só mostrou essas qualidades enquanto a seu lado trabalhou o velho Barbosa.

-       A mãe conheceu esse homem? - interrompeu a filha.

-       Muito bem. Para além de capataz era acima de tudo um bom e dedicado amigo. E o fidalgo nunca decidia nada sem o consultar. Mas a idade não perdoa e o mestre Barbosa, também ele partiu, numa viagem sem regresso.

A Mércia escutava a mãe com a atenção devida, sentada no banco corrido de madeira. O marido coçava a pequena calva tentando adivinhar o fim da história. Vivia assim sentimentos entra a descrença de todo um desfecho, talvez inverosímil e o receio de uma verdade absoluta.

A Cândida continuava a desfiar o terço por entre os dedos lavrados dos anos e olhando o casal voltou ao relato:

-       Para substituir o antigo caseiro, D. Bartolomeu contratou um outro homem vindo de longe e que todos vocês conhecem: é o Esménio. Porém logo se percebeu que este capataz mostrava modos bem diferentes de lidar com o pessoal. Pouco simpático, arrogante mas eficiente, depressa criou na quinta um ambiente soturno e triste. E o pior é que a D. Bartolomeu nunca chagava qualquer informação que denunciasse as actividades pouco simpáticas do seu agora braço direito.

Após uma muito breve pausa para retomar fôlego, continuou:

-       Os anos passaram com a rapidez dos velhos e a lentidão dos novos, até que foi a vez do fidalgo deixar o mundo. Na altura foi um funeral, até... até... Veio gente de todo o lado e a capela da quinta foi pequena para albergar tantas pessoas.

Para além de outros defeitos o Esménio era também muito ambicioso e com a ajuda de um homem de leis pouco escrupuloso, forjou um testamento onde ele surgia como único herdeiro, quando se sabia que era outro o desejo do fidalgo e que incluía quase todos os empregados da quinta. E é aqui que tudo começa!

-       Mas foi o Esménio que me vendeu a azeitona. Ele está velho, sim senhor, mas sempre pensei que a Quinta era mesmo dele.

-       Pois é Ilídio. Desde que ele tomou conta da Quinta esta nunca mais foi a mesma. Há quem oiça durante a noite as galgas do lagar a trabalhar e sem ninguém lá estar. Na eira quando o milho está para descamisar é frequente aparecer estragado. O vinho azeda, o trigo grela e até alguns animais morrem sem razão. A Maria Clara foi lá chamada para afugentar os maus espíritos e até o Padre Carlos já abençoou a casa e nem mesmo assim as coisas correram melhor.

-       E o que será, mãe? - Pergunta a filha.

-       Ninguém sabe. Mas acredita-se que é o espírito de D. Bartolomeu que vagueia pela Quinta e enquanto Esménio não cumprir o que o fidalgo deixou realmente escrito, nada se modificará. E é por isso que digo que não apanhas um bago. A Quinta está amaldiçoada.

Ilídio finalmente preocupava-se. Nem quer crer que fora aldrabado. E pensou logo em negar-se ao negócio. A expressão feliz com que entrara em casa fora naturalmente substituída por um sobrolho carregado.

Mas o destino é fértil em acontecimentos bizarros, pois nesse mesmo dia em que conhecera o mistério da Quinta da Trindade o velho capataz morreria aos cornos de um bonito vitelo contudo demasiado bravio para o dono. A notícia da morte do velho fuinha correu as aldeias limítrofes como de fumo se tratasse..

Dias mais tarde, o filho mais velho do defunto descobre no meio dos papéis do pai um velho testamento. Nele podia ler-se todos os desejos e vontades de D. Bartolomeu. Assim coube ao herdeiro de Esménio fazer cumprir as últimas vontades do bom fidalgo.

Ilídio colheu nesse ano a azeitona da Quinta que surgia bonita, sã, muita. E as filhós nesse Natal tiveram mais azeite e mais açúcar.

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