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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - A Penitência - XII

 

Amadeu despertou. O dever de acordar a tempo e horas não o deixava dormir em paz. Ergueu-se silenciosamente, vestiu-se e saiu do minúsculo quarto que compartilhava com mais três irmãos. Na lareira da cozinha ardia ainda molemente um borralho. O rapaz buscou na dispensa escura a salgadeira e cortou um naco de presunto já ressequido. Duma velha arca, herança de uma avó que nunca conhecera, retirou meia broa dura de várias semanas.

Sem ruído que acordasse o pai viúvo ou os mais jovens irmãos entrou na penumbra da noite. Esta, surgia ainda branda após um dia de intenso calor. No ar bulia uma leve brisa que acariciava docemente as copas das árvores. A lua colada ao firmamento, alva e brilhante, parecia feliz por ter a quem iluminar.

O nocturno viajante iniciou a sua marcha acordando o ladrar de alguns cães vadios. No relógio da centenária igreja soaram duas estridentes badaladas que ecoaram na noite silenciosa. Aguardavam-lhe no mínimo perto de quatro horas de caminhada, antes de chegar à Quinta Grande e não havia claramente tempo a perder. Conhecia bem o caminho, mesmo que fosse por entre carrascos e penedos, medronheiros ou silvados, fosse de dia ou de noite. Todas as semanas fazia aquela longa caminhada. O retorno era ao sábado pela véspera numa carroça puxada por dois cavalos que o patrão simpaticamente disponibilizava para os criados que viviam longe da quinta. O carreiro subia e descia por entre pequenos montes e vales, atapetado de pedras irregulares, aconchegadas com terra vermelha e barrenta.

Após duas horas de passo seguro e regular o jovem aproximou-se de um local mal afamado donde se contavam histórias mirabolantes e inverosímeis. A acrescentar aos estranhos relatos havia uma velha oliveira, rasgada ao meio pelo peso da idade, que se situava à entrada duma fazenda e à qual davam o bizarro nome de “Oliveira da Bruxa”. O rapaz jamais crera em tais contos fantásticos. Achava que era cisma dos mais velhos. No entanto naquele local fervilhava um ambiente soturno e triste que Amadeu respeitava. Nessa mesma noite, com a ajuda do luar forte de Agosto, o jovem olhou a oliveira ao longe e julgou perceber que perto desta se vislumbrava um vulto. Mas logo afastou essa ideia pois não acreditou que àquela hora da madrugada ali se encontrasse alguém. Todavia ao passar mais perto da árvore, uma voz chamou-o:

-       Boa noite Amadeu!

O moço estacou. O coração batia agora a um ritmo acelerado. Engoliu em seco, respirou fundo antes de responder à saudação:

-       Boa… boa-noite…

A figura estava agora na frente do rapaz e assim ele pode ver com exactidão que se tratava de uma mulher ainda nova, talvez ligeiramente mais velha que ele próprio. Trajava de negro e envolvia a cabeça num xaile que deixava ainda assim destapado um belo rosto branco. Os olhos negros eram penetrantes e brilhavam à luz de uma Lua radiosa. Amadeu lembrava-se daquela figura num pequeno povoado a poucos quilómetros da sua aldeia mas nunca lhe dirigira a palavra.

Parecendo adivinhar os pensamentos do rapaz a estranha mulher perguntou:

-       Conheces-me, não conheces? - e ao acenar afirmativo do jovem continuou, - e sabes o que eu sou?

O jovem não sabia mas calculava. Mesmo assim respondeu:

-       Não, não sei.

-       Sou aquilo que na aldeia chamam erradamente uma bruxa. Contudo não faço mal a ninguém. Apenas sou a voz de alguém que está acima de nós. Crê que não te quero mal. Tu és um bom moço e o teu coração é puro. E é por isso que aqui estou pois tens uma penitência a cumprir.

-       Uma penitência? – Perguntou agora visivelmente assustado.

-       Sim uma penitência. Se a cumprires como deve ser terás uma vida longa e serás abençoado. Se não a cumprires serás amaldiçoado e teu futuro será um inferno. – E após uma pausa, perguntou:

-       Então que dizes?

-       E que tenho eu de fazer? – Questionou novamente o viajante sem saber muito bem o que consistiria a tal prova.

-       Só terás de me carregar às tuas costas até minha casa. E depois não dizeres a ninguém quem eu sou. Se me denunciares a quem quer que seja eu saberei e a penitência ficará quebrada.

-       Mas é um grande desvio do meu caminho. Eu vou para a Quinta Grande trabalhar e tenho de lá estar cedo – tentou ainda desculpar-se.

-       E tu julgas que eu não sei. Entretanto se formos já ainda chegas à Quinta a tempo. Terás apenas de correr um pouco.

Enquanto falava, a bruxa torneou o rapaz e num salto ficou às costas deste. Os braços dela envolveram-lhe o pescoço e as pernas atracaram-se na anca do jovem. Este sentia agora o bafo quente da mulher junto à sua face. Dela exalava um cheiro doce a ervas que o rapaz decididamente não apreciava. Amadeu nem queria acreditar no que lhe acabava de acontecer. O bom senso que geralmente o animava uma vez mais o ajudou na decisão. E sem mais demora pôs-se a caminho com a invulgar carga.

A juventude dos dezassete anos dava ao moço a força e genica suficiente para carregar aquele inusitado fardo. O seu pensamento saltitava agora entre o atraso que aquele involuntário desvio iria trazer e a humilhação que passaria se alguém o visse naquela figura. Quando se aproximou do conjunto de pequenas casas onde a sua companheira de jornada vivia, esta sussurrou-lhe ao ouvido:

-       Pára Amadeu. Eu fico aqui.

Da mesma forma ligeira como subiu às costas do penitente, desceu.

-       Pronto. A tua penitência está cumprida. Agora cala-te e não digas a ninguém quem eu sou. Podes ir, então.

O jovem nem se despediu. Virou costas e correu, correu sem parar, até avistar os primeiros casarões da Quinta Grande. O dia começava a clarear quando chegou ofegante junto do patrão. Mal conseguia falar e assim foi o patrão que perguntou:

-       Então rapaz, que te aconteceu para chegares aqui nesse estado? Parece que fugiste de um bicho…

Num esforço Amadeu mentiu:

-       Desculpe senhor Manuel Pedro, atrasei-me.

Mas o patrão, homem velho e sabido e conhecedor da alma humana logo desconfiou da resposta e rematou:

-       Vai então dar de beber aos bezerros e quando acabares, aparece lá em casa que quero falar contigo.

-       Sim senhor, – acatou o moço já mais refeito.

Já o sol dominava o céu azul raiando canícula, quando o jovem se apresentou uma vez mais ao patrão enrodilhando nervosamente uma boina.

-       Aqui estou senhor.

Manuel Pedro estava sentado numa velha cadeira, no pátio que se abria à frente da porta principal. Nas pernas uns livros grandes e amarelos serviam de apoio a algumas folhas onde o homem assentava alguns números. Assim que Amadeu se apresentou, poisou calmamente o lápis e retirando os óculos que o ajudavam a ver melhor as contas, perguntou:

-       Então diz-me lá rapaz, o que te aconteceu esta manhã?

O moço temeu o pior e mentiu novamente:

-       Nada senhor. Não aconteceu nada. Apenas me atrasei. Só isso.

-       Passaste pela “Oliveira da Bruxa”? – Perguntou de chofre o patrão.

Amadeu assustou-se com a intenção da questão, mas aparentando relativa serenidade, respondeu:

-       Claro, como sempre. É por aí o caminho mais curto…

-       E não vista a bruxa?

Desta vez não podia mentir. Calou-se então. Esperou que o silêncio profundo servisse de resposta. E não se enganou:

-       Pois já calculava... – observou o patrão – e então cumpriste a penitência?

-       Como é que o senhor sabe? – Questionou espantado o rapaz. Mas logo percebeu que com aquela pergunta confirmara a desconfiança do amo.

-       Porque em tempos também me aconteceu o mesmo. Tinha eu mais ou menos a tua idade. Era uma mulher jovem e bonita vestida de negro e obrigou-me a carregá-la às costas até casa.

-       Mas como pode ser possível. Esta é tão nova que podia ser sua filha. Como pode ser a mesma pessoa?

-       Pois é. Esse é um mistério que ainda ninguém desvendou. Todavia não te esqueças que ela é uma bruxa com poderes fabulosos... – e percebendo o silêncio comprometedor de Amadeu, concluiu:

-       E claro, não se pode dizer o nome dela.

-       Pois não… – suspirou aliviado.

O jovem voltou a passar pelo mesmo local muitas vezes mas jamais foi abordado

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