Contos Breves - Uma Noite do Diabo - V
A noite tépida e celeste amaciara a véspera assaz quente. Pela madrugada a leve brisa sopra no pinhal sobranceiro como de uma carícia se trate. O Estio neste ano ostenta-se longo e rigoroso. Há quem garanta que é tempo suão. Seja como for, a canícula obriga os corpos a buscar refúgio na sombra de uma azinheira ou debaixo de um frondoso pinheiro manso, de onde tombam pequenas e redondas pinhas meio abertas, espalhando pelo solo as sementes secas. Também o gado sofre com o excesso de calor e até os poucos queijos feitos por esta altura não têm o mesmo sabor.
Zeferino Bogas acorda e levanta-se muito cedo. Retira do curral as ovelhas para ordenha e deixa alguns dos borregos mais crescidos escapar para o lameiro no fundo da horta onde medra erva fresca e suculenta que cresce à custa de regas quase diárias. Enquanto a Maria Lucinda prepara numa cafeteira escarvoada o café da manhã, o campesino vai mugindo as ovelhas com a habitual perícia e rapidez.
O dia vai despontando e com ele aviva-se o calor. Um mata-bicho rápido constituído por um naco de broa e outro de presunto, acompanhado pelo negro líquido, desaparece de um trago. Na trempe a água já ferve para a sopa do almoço enquanto a mulher escolhe as verduras colhidas ainda há pouco na horta. O homem vai à eira, olha o monte, levanta a boina surrada, coça a calva com a unha exageradamente comprida e suja do dedo mindinho, e murmura:
- Tenho de limpar este moio...
E decide:
- Não passa de hoje!
Após o almoço atrela a junta de vacas castanhas ao trilho. A Cabana e a Bonita caminham pachorrentamente debaixo de um sol abrasador para a eirada. À chegada aproveitam para abocanhar à socapa um punhado de palha com uma fava à mistura. O trilho salta por cima do colmo encrespado por tardes bravias de calor. A aragem é mansa mas suficiente para limpar a semente já despida da vagem. Na infusa que repousa debaixo duma velha oliveira, a água do poço há muito que deixou de ser fresca. Mas mesmo assim escorre pela goela sedenta. Bastam meia dúzia de sacas para recolherem por fim o produto de umas horas de trabalho. No horizonte pendura-se finalmente uma cor escarlate anunciando um futuro dia de calor.
Zeferino descarrega os sacos para dentro da loja fresca quando aparece a mulher trazendo numa pequena cesta um rosário de ovos. Pergunta-lhe o homem:
- Maria, já deste de comer aos porcos? Lembra-te que a marrã está prenha..
- Oh home’. Não te preocupes que eu tratei-os logo de manhã pela fresca e até já pus o caldeiro com a água para amanhã ao pé da janela do nosso quarto. Se lá fores, à cortelha leva-o que aquilo já pesa.
Mas aquele não leva o caldeiro com a água. Esquece-se...
A noite vai tombando sobre o lugar singelo. Bule por entre as copas ressequidas das árvores um vento que traz mais calor. Zeferino cansado deita-se, trajando unicamente umas velhas ceroulas de linho. Na cama não procura cobertor, nem lençol, busca sim a Maria Lucinda. Esta recebe-o como de costume, sem emoção. A brisa que penetra pela janela, embala um fresco cortinado de pano cru. E assim o casal vai adormecendo numa calma própria de quem viveu mais um dia de canseiras.
Já a noite está a meio quando de súbito Bogas acorda assustado. Parece-lhe ouvir um ruído estranho. Maneia um pouco a cabeça de forma a escutar melhor. Na verdade há qualquer coisa lá fora que subitamente atemoriza o homem. Primeiro o arrastar de um objecto metálico como de uma corrente se trate, depois o caminhar lento mas decidido pelo carreiro de terra batida, que ele tão bem conhece e que dá acesso à casa. Zeferino recosta-se na cama para confirmar o que ouve. Não sabe nem imagina o que é, mas treme violentamente. Pelo pensamento do homem perpassam agora, à velocidade de um raio, um ror de histórias tenebrosas e macabras ouvidas dos antigos, onde o Diabo era quase sempre a personagem principal. Ao seu lado Maria Lucinda ronca profundamente:
- Mulher, oh mulher... – chama-a, sacudindo o corpo inerte e adormecido.
- Hã, qui’é home... – acorda estremunhada.
- Anda por aí uma alma penada – sussurra o homem.
- Oh desgraçado cala-te... – e benzendo-se, continua – tu estás maluco. Olha que com isso não se brinca...
- Ai estou a brincar. Então cala-te e escuta... – E silencia-se para que a mulher possa também sentir o ruído que se aproxima.
O som está cada vez mais próximo. Parece estar agora ali por detrás da janela aberta. Maria atemorizada mas lúcida, aconselha:
- Fecha a janela, depressa!
- Boa ideia – responde. E num salto sai da cama de ferro, herança dos pais, e chega-se à abertura.
Mas algo de bizarro acontece então. Quando cuidadosamente se aproxima da fresta, outro vulto faz o mesmo, mas do lado de fora. A noite está de lua nova e a luz nocturna é muito ténue e assim assustam-se mutuamente. A figura de fora enfia então a cabeça no aro do caldeiro com água, que Zeferino havia esquecido, levanta-o com força e arremessa-o contra a parede de fora do quarto aspergindo a água ao redor. Assustado com a turbulência do momento, foge levando atrás de si uma miríade de ruídos e objectos tombados. Por seu lado Zeferino, após a molha salta num pulo para a cama. Treme como varas verdes e mesmo molhado tapa-se com o único lençol que tem, deixando por sua vez a mulher destapada. Esta, amedrontada com a frenética sequência de acontecimentos e vendo-se sem lençol, vai puxando para si a cobertura. Esta foge agora do marido e durante breves instantes o casal briga por um pedaço de linho. Ora puxa para cá, ora puxa para lá... Finalmente serenam enquanto escutam as correntes a serem arrastadas, cada vez mais longe. A noite sossega por fim, mas os corações crentes dos aldeões ainda vibram de terror e é com dificuldade que voltam a adormecer.
No dia seguinte o patrão levanta-se muito mais tarde do que é usual. O medo da noite ainda enubla o seu coração. Serenamente durante o dia a calma regressa ao espírito do lar. Entre marido e mulher nenhuma palavra é trocada sobre os últimos acontecimentos. Paira na atmosfera caseira um acordo que ninguém pretende quebrar.
Após o almoço Zeferino vai cortar um pouco de feno para o gado junto a uma pequena barragem, quando lhe aparece, puxando um velho jerico, o Chico do Canal.
- Viva lá home’...
- Eh lá rapaz... – responde o outro, sem vontade para imensos diálogos.
Chico pára para dois dedos de conversa. É conhecido na aldeia pela sua tagarelice. E assim:
- Sabe ti’Bogas, ando há horas à procura deste animal. Soltou-se ontem à tarde na minha Giesteira e fui achá-lo naquilo que é do Inácio Costa. Ainda trazia a corrente atrás. Deve ter-se solto durante a noite, foi o que foi.
O Zeferino enrubesce. Primeiro de espanto, depois de raiva e finalmente esboça um sorriso. Então a alma penada que tanto amedrontara o casal não fora mais que um simpático asno.
Logo que se liberta do Chico, regressa a casa num passo estugado. Toda a sequência de acontecimentos passa agora pela sua mente e a única coisa que é capaz de fazer é rir.
Quando Lucinda dá de caras com o marido, logo lhe nota um ar alegre quase feliz. Prontamente questiona:
- Qu’é que se passa home’? Já pregaste alguma. Com essa cara só pode ser.
Finalmente conta a história do burro que se desprendera e que tanto os assustara naquela noite. A mulher nem quer crer. Senta-se na borda duma velha pia que agora serve de canteiro floral, cruza os braços no regaço e ri, ri, ri...