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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - O Natal de António - IV


António adorava os aromas do Natal. As fragrâncias que vagueavam pelas ruas frias e estreitas da aldeia apaziguavam-lhe o espírito rebelde, pois evocavam memórias da mãe já falecida e que por aquela época sempre arrancava à labuta da lida da casa uns momentos para preparar uns doces. As filhós e as rabanadas eram os seus favoritos. Mas as velhoses e arroz-doce também tinham a honra de pertencerem a uma consoada austera.
Porém todas essas essências não passavam de uma ténue referência a um tempo pobre mas feliz, em que o pai não se embebedava nem lhe batia. Recordava-se dos irmãos que brigavam ruidosamente junto à cortelha dos porcos, obrigando a mãe a constantes ralhetes. Vinha-lhe à ideia um grande cão, de nome Tejo, que ladrava constantemente e um burro que zurrava com fome. Lembrava-se da cama compartilhada com dois irmãos mais velhos e das noites de temporal em que ninguém dormia porque a água da chuva caía a rodos no interior do quarto.
Após a morte da mãe, ainda rapazola, saiu de casa fugindo assim aos assomos violentos dum pai que se tornara demasiado bêbado. Encontrou guarida no solar do Monte Penedo, onde a dona Inocência, senhora de boas famílias o recebeu de braços abertos. Mas o gaiato também aqui não assentou arraiais e procurou refúgio na casa da irmã mais velha. Esta, por sua vez, sofria já as agruras de cinco filhos e depressa o expulsou do lar. Acabou, finalmente, por ir parar ao Casal Grande onde se apresentou como pastor. O patrão, homem rude e de maneiras pouco polidas mas de coração aberto, aceitou o moço como guardador de gado e entregou-lhe um pequeno rebanho de trinta cabeças que ele cumpriu com competência, ajudado por dois fiéis rafeiros.
Durante uma dúzia de anos o rapaz cresceu e viu crescer muitas cabeças de gado. Calcorreava dias a fio os caminhos de montes e charnecas e conhecia agora como ninguém todos os perfumes do campo.
Todavia, de todos o que mais gostava era o da aldeia em época de Natal. Deitava-se no monte de feno que lhe servia de esteira e iluminado pela lua que, por entre duas telhas partidas invadia o casebre, sentia o balir acolhedor do rebanho. Semicerrava os olhos e tentava adivinhar, nos cheiros que pairavam no ar, o sabor real das iguarias.
Mas o seu Natal não era só feito de guloseimas que nunca verdadeiramente saboreara. O seu espírito deambulava pelas encostas à procura de novas essências. O cheiro a terra molhada após uma chuva bem forte, o travo da lenha de oliveira velha que ardia num fogo crepitante. O aroma de uma adega, onde no local mais escuro dormitava o mais alegre dos espíritos. O odor de um borrego assado pela tia Tonha naquele forno antigo. O agrado de uns grelos mais cozidos pela geada que pelo próprio lume. O perfume perfeito do pão acabado de cozer. O azeite, o eucalipto, o medronho, o alecrim, o pinheiro, os figos, todos emanavam fragrâncias diferentes que António distinguia como ninguém. E o leite que ele ordenhava das ovelhas com a perícia de muitos anos tinha também a doçura quente de vida.
Por altura do Natal o jovem pastor costumava cruzar o povo. Durante o restante ano fugia do centro evitando assim perguntas e olhares inquiridores. Mas em vésperas de festa natalícia, não resistia... Atravessava a ponte velha e o casario, num passo calmo e sereno, absorvendo assim os imensos aromas festivos.
Certo dia cruzou-se na rua com o Lourenço Fontinha, regedor da aldeia havia muitos anos. Quando reparou no moço, guardador de gado, mirou-o de cima a baixo e reconhecendo o filho do seu já falecido grande amigo João Cebola, saudou-o:
-    Viva António! Como estás? – e estendeu-lhe a mão para um cumprimento.
    O pastor olhou a mão alva, comparou-a com a sua e descobrindo a diferença, encolheu o braço para trás como que por receio, dizendo entre dentes:
-    B’tarde...
    O Regedor não retirou a mão e insistiu:
-    Aperta aí, que eu não tenho pejo em te cumprimentar. As tuas mãos podem estar sujas e calejadas mas são honradas.
    António não resistiu mais e estendeu, ainda que a medo, a mão ainda jovem mas bem vincada pelo cajado de castanho feito. A do Regedor estava fria e macia como o próprio dia. Contudo o aperto fora firme e franco.
-    Que tens feito, rapaz? – Perguntou o Fontinha.
-    Ando pro’í... – respondeu envergonhado o pastor, procurando no chão a resposta.
-    Já percebi, não gostas de falar! Pronto, vai à tua vida que eu não te quero empatar. Mas se alguma vez precisares de mim sabes onde moro, está bem! – Convidou o regedor.
-    Sim s’hor... – e maneou humildemente a cabeça como de uma vénia se tratasse.
-    Então fica combinado! – Assentiu o Regedor.
    O moço partiu então em passo apressado em busca do gado, que fora caminhando pachorrentamente a caminho do velho curral. Descobriu que aquele amigo do seu pai também exalava um aroma. Cheirava a algo distinto das plantas serranas ou dos fumos da aldeia. Nem se aproximava aos odores dos lavradores que após um dia a cavar de sol a sol, destilavam.
    Bem perto do dia de Natal, António voltou a romper pelo interior da aldeia. Desta vez não havia alternativa. Nos últimos dias chovera abundantemente e a corrente da ribeira levava demasiada força para se poder atravessar a vau.
    O dia, que fora tempestuoso, lançava finalmente sobre os corpos arrepiados, um pouco de luz e cor. O vento acalmara, mas em contrapartida o frio regressara. Ao longe ouvia-se o som metálico dos chocalhos das ovelhas e havia quem à porta da taberna previsse.
-    Vem aí o Tó Cebola. Este rapaz parece um bicho. Não se dá com ninguém...
    Mas o pastor não ouvia os comentários e seguia o seu destino aproveitando para absorver o mais possível os cheiros exuberantes da aldeia.
    Inesperadamente uma porta abriu-se, dando passagem a uma linda rapariga, de longos cabelos dourados e olhos cor de esmeralda. Assustada mas não intimidada com o rebanho que não contava, quase tombou no terreno granítico. Sentindo a presença do rapaz depressa se recompôs e ajeitando o vestido cor-de-rosa que lhe caía perfeitamente no corpo formoso, olhou de frente o pastor e cumprimentou:
-    Boa tarde!
    A sua voz era cristalina. Assemelhava-se ao marulhar melancólico das águas da ribeira. António jamais observara em toda a sua vida, rapariga tão bonita e esbelta. Lembrou-se de um livro que vira certa vez em casa da D. Inocência onde numa iluminura surgia uma figura com uma fisionomia semelhante. Educadamente respondeu entre dentes:
-    B’tarde... – respondeu António.
    E enquanto a menina seguia com enlevo o seu caminho, o pastor olhou-a de trás e fixou outro aroma. Pairava agora um perfume invulgar entre o doce e o acre. Assemelhava-se a um jardim de rosas. Curiosamente o aroma nem lhe surgia estranho... Regressou ao caminho procurando na sua fértil memória discernir aquela fragrância. A fragrância pura de uma mulher...
    Os dias escoaram como de água na palma das mãos e com eles o Natal chegou e partiu, tal como o Ano Bom. António convidado para cear na noite de consoada em casa do patrão recusou, preferindo levar um naco de broa e de presunto e alguns doces, acompanhado de uma garrafa de vinho, para o seu monte de feno e aí celebrar a festa natalícia.
    Mãos entrelaçadas na nuca e tendo os dois fiéis amigos a seu lado, António revolveu a sua memória em busca dos cheiros dos últimos dias. A ti’Belmira fritara rabanadas, a ti’Leonor optara por filhós e assara um pouco de lombo, em casa da família Teodósio havia borrego, de certeza... Como ele admirava este jogo quase infantil que ele próprio concebera...
    Perdurava ainda aquela essência da jovem bonita que ele não conseguia apagar nem esquecer. Donde seria que conhecia aquele aroma? A dúvida era tão inquietante e irritante que nem dormia... Havia algumas semanas que vivia aquele martírio.
    A aurora surgia no horizonte rasgada em tons laranja, por detrás da encosta verdejante salpicada aqui e ali por tufos de carrascos e medronheiros. António ergueu-se da costumada esteira, onde apenas algumas velhas mantas serviam do coberta, dirigiu-se à ribeira que serpenteava ao fundo da fazenda, lavar as mãos e o rosto, pois estava na hora de comer uma bucha e da ordenha. A manhã estava muito fria e perto da corrente agachava-se um pouco de neblina alva. O pastor lavou as mãos encieiradas pelo frio e pela água gelada e passou-as pela cara mal barbeada. Quando os seus olhos repousaram novamente nas mãos ora límpidas, mirou-as com surpresa e num ápice fez-se luz no seu espírito conturbado. Adivinhara finalmente donde conhecia a essência que tanto o atormentava...
    ... Era a mesma do Regedor.