Sentado defronte do cavalete onde se encostava a pequena tela, o pintor olhava lá para fora e via da sua frondosa janela toda uma paisagem idílica.
Papoilas, muitas papoilas... mães e filhos... uma sombrinha azul... árvores... campo.
Quase se assemelhava àquele quadro de Monet... das papoilas! Tentou recordar-se do nome verdadeiro, mas não conseguiu. Pegou finalmente nas bisnagas com tintas e despejou na paleta algumas cores. Depois com o pincel foi misturando-as até obter uma cor uniforme.
Voltou-se para a tela e intimidou-se. Aquele branco parecia querer mais do que ele teria para dar. Que coisa estranha pensou... pinto há tanto tempo e só agora é que sinto esta sensação!
Aproximou-se mais do pequeno branco ainda por preencher e começou a deslizar o pincel pela superfície rugosa. Rodou e rodopiou vezes sem conta.
Logo a seguir preencheu com mais cores, muitas cores... todas diferentes! Olhou para o quadro e gostou do que viu.
De súbito bateram à porta e ele mandou entrar sem sequer se levantar do seu lugar. Surgiu alguém de bata branca e de uma forma quase solene, perguntou:
- Então senhor Belchior, que estamos a fazer hoje?
- A pintar! Não vê aqui o quadro. Olhe que está bem visível!
O médico virou costas ao doente e saindo do quarto disse para quem o acompanhava:
- O mais louco de todos que cá estão, mas também o maior conhecedor de pintura que eu já vi!
A primeira vez que a viu foi numa branda tarde de Primavera. Uma das cabras fugira do rebando e após ter colocado as outras no redil foi em busca do animal perdido. Entrou na floresta onde um rio manso desfilava e tentou encontrar si al das patas do animal na terra molhada, após uma noite de intempérie.
Ao mesmo tempo ouviu, que parecia ser ao longe, uma voz doce, suave de tão melodiosa. Passou a caminhar ainda mais devagar indo ao encontro do som e mais que tudo ao encontro da curiosidade. A voz estava agora mais próxima até que por entre a vegetação densa vislumbrou-a. Afastou devagar alguns ramos para que pudesse vê-la em todo o seu esplendor.
Uma jovem linda, como ele jamais ousara ter visto, de longos cabelos ruivos trajando um vestido quase imaculado, sentada num pequeno bote ia cantando e chapinhando na água que corria por entre as pedras, com uma corrente de ferro ferrugenta. Atrás da embarcação percebeu umas escadas que davam acesso a um pequeno ancoradouro ao qual estava preso o bote e conhecendo ele bem a zona nunca dera por aquele lugar quase paradisíaco.
O jovem pastor encantara-se por aquela voz e ali ficou mirando aquele quadro, mantendo-se em silêncio não fosse algum gesto menos pensado afugentar a linda donzela.
Perdeu a noção do tempo. Certo é que a determinada altura percebeu algo a mexer-se atrás de si. Aquietou-se ainda mais por entre a folhagem húmida, para no instante seguinte sentir uma respiração no pescoço.
Assustado voltou-se e deu de caras com a cabra desaparecida que conhecendo o pastor deu um berro. Rapidamente ele olhou para o rio, mas a menina, como por magia, havia desaparecido.
Então ergueu-se do seu esconderijo e procurou a jovem. Nem um sinal... No entanto o bote ainda balançava lentamente.
Regressou a casa com uma questão em aberto no pensamento: teria ele adormecido e sonhado?