Consoada solidária!
Um conto de Natal encontrado entre papéis
O frio daquele fim de tarde cortava. Assemelhava-se a lâminas frias prontas a retalhar qualquer corpo indefeso. A brisa vespertina também ajudava a baixar a temperatura ou a sensação de frio.
Na rua o movimento era já diminuto, fosse pelas baixas temperaturas ou pela hora tardia em véspera de Natal. Alguns transeuntes apressavam o passo, alguns carregados de embrulhos e sacos de víveres.
Fernando fechara a farmácia á hora normal de expediente e após arrumar papéis e guardar o dinheiro no cofre, embrulhou-se na parka Steinbock que comprara em Viena havia uns anos e dirigiu-se para o carro. O interior estava gelado mas ainda assim bem melhor que na rua. Sentou-se ao volante e deitou a cabeça para trás até bater no encosto. Depois ligou o rádio e escutou uma música de… jazz pouco coincidente com a época.
Naquele ano decidira viver as horas seguintes sozinho. Havia seis meses que Jéssica o havia abandonado e nunca mais soubera dela. Do seu lado acabou por encerrar a sua conta em diversas redes sociais e remetera-se exclusivamente ao trabalho que adorava e o… entretinha!
Porém o passado mais ou menos recente atormentava-o. De tal forma que recusara o convite que pais e irmãos lhe haviam feito para passar apenas o serão juntos. Teria de alguma forma de habituar-se aos silêncios destes dias… diferentes!
Arrancou e conduziu sem destino aparente pela cidade quase deserta. As ruas enfeitadas e iluminadas não o convenciam a procurar companhia. Na sua mente efervescia um turbilhão de emoções: o namoro célere, o casamento desejado, o aborto espontâneo, a primeira zanga e finalmente o esfumar de um sonho… tão bem sonhado!
De súbito subiu-lhe ao peito um enorme cansaço. Temeu o pior e assim que pode parou o carro. Respirou fundo, suspendeu a respiração, mas o coração parecia bater de forma desconfigurada. Calculou que estivesse a ter um enfarte. Abriu a porta do carro pronto a pedir ajuda a quem passasse. Só que…
À sua frente elevava-se, naquele silêncio nocturno, uma igreja que ele bem conhecia. Fora ali que casara, que dera o sim ao “amar na saúde e na doença”, que aceitara aquela mulher que ainda amava profundamente. Porém a vida brindara-o com outras desventuras…
Num ápice o mau estar desaparecera. Encostou-se ao carro e ficou a olhar o monumento religioso. Ele que nunca fora crente e só casara pela igreja porque a noiva nisso fizera questão, espantou-se pela forma como parara precisamente ali.
A porta central estava aberta. Num impulso estranho subiu as escadas do átrio e penetrou no recinto. O templo parecia imutável desde aquela manhã, retirando naturalmente os convidados que quase encheram a igreja. Um silêncio abraçou-o e levou-o a sentar-se no primeiro banco corrido que encontrou. Pairava no ar um odor a vela queimada. Depois levantou o olhar para o altar e deparou-se com um enorme Cristo Cruxificado. Ao redor outras imagens que ele não soube identificar.
Porém o mais curioso plasmava-se na ideia de um homem que nunca sentira qualquer tendência religiosa e muito menos de fé, naquele instante sentir uma paz que jamais conhecera.
Um ruído manso acordou-o dos seus pensamentos pois percebeu que alguém se aproximava. Então no banco de frente sentou-se o padre que ele percebeu através do cabeção ao redor do pescoço. Este como se estivesse quase numa esplanada virou-se para trás.
- Boa noite irmão! Santo Natal…
- Boa noite… pa… pa… senhor padre
- Padre não é nome só chamamento… Chamo-me Olívio e sou um mero padre desta paróquia – estendeu a mão para um cumprimento.
- Desculpe – devolvendo a mão direita.
Um sorriso aflorou aos lábios do padre acrescentando:
- Quais desculpas… não há nada para pedir desculpa. Mas o que o trás por cá… neste dia tão especial para tanta gente?
- Ahhhh… - uma longa pausa – sinceramente? Também não sei… Parei aqui perto com o carro e a igreja chamou-me à atenção.
- Hum… sabe… - e após uma breve hesitação – qual o seu nome?
- Fernando…
- Sabe Fernando… nada acontece por acaso!
- Só o euromilhões…
- E mesmo esse o Fernando terá de jogar se quiser habilitar-se à sorte.
- É verdade… Tem toda a razão.
- Portanto algo o fez vir aqui…
Fernando não conseguiu evitar uma singela lágrima que tentou disfarçar com o braço, mas que não passou despercebida ao interlocutor. Este colocou a sua mão no ombro do leigo e perguntou-lhe:
- Que aconteceu aqui?
Silêncio. O padre respeitou. Por fim:
- Foi aqui que me casei… há alguns anos.
- Certo… não é do meu tempo. Mas e depois?
- Ela abandonou-me…
Novo silêncio.
- Nunca mais falou com ela?
- Não. Quando partiu disse que não me quereria ver nunca mais e eu respeitei o pedido…
- Portanto?
- Não sei nada dela…
Entrou um casal que cumprimentou primeiro o padre e depois Fernando como se conhecessem este havia muito tempo. Depois encaminharam-se para a frente do templo. Logo a seguir entrou uma idosa mais duas senhoras ambas apoiadas em bengalas.
O padre olhou então o relógio e comunicou:
- Daqui a meia-hora dou aqui missa. Fique por cá. Falaremos depois… De acordo?
Fernando encolheu os ombros. Ficou.
A igreja foi calmamente enchendo-se até ficar repleta. Vieram as músicas, as orações e Fernando foi sentando-se e levantando-se conforme via os outros. De repente o abraço da Paz, que recebeu de muita gente desconhecida sem que ninguém notasse que ele não sabia o que fazia.
Chegou o final da cerimónia. Os crentes foram saindo em passo lento enquanto alguém perto do altar ia apagando as velas. O frio voltara a entrar e o farmacêutico esfregou as mãos tentando aquecê-las.
O padre Olívio apareceu em silêncio e desta vez sentou-se ao lado de Fernando.
- Onde vai passar a Consoada?
- Sozinho… em minha casa.
- Não tem família?
- Tenho… mas prefiro ficar só!
O padre olhou o altar e preferiu uma espécie de sentença:
- Quem crê nunca estará só.
- E quem não acredita?
- Mais tarde ou mais cedo toda a gente acredita. Isso é certo… Até os ateus!
Fernando respirou fundo. O padre percebeu a dúvida e ensaiou:
- Quer vir comigo esta noite?
Não soube o que responder. Ficou naquela estranha indecisão de querer estar sozinho ou, ao invés, aceitar o desafio proposto pelo cura. Ainda tentou esquivar-se:
- É melhor não! Conheceu-me agora, não sabe quem eu sou e depois… não pretendo entrar na sua família assim sem mais nem menos.
- Mas já somos família, caramba! Lembra-se do que lhe chamei quando falei consigo a primeira vez?
Não se recordava e daí manter-se num silêncio envergonhado.
- Chamei-o de irmão.
- Ah pois!
- Então que me diz? Acrescento para seu sossego que não vou para minha casa.
- Como assim?
- Vou-me encontrar com uma equipa de voluntários aqui da paróquia que estão a preparar a ceia de Natal para distribuir àqueles que vivem na rua.
- Ah… gosto dessas iniciativas… também poderei ajudar?
- Diria mais… sinto que o Fernando é um dos necessitados.
- Eu? Não vivo na rua…
- Não vive é certo! Todavia para além do alimento nós damos mais alguma coisa – um silêncio – damos conforto a quem está só.
Fernando engoliu em seco. Levantou-se e devolveu:
- Haverá certamente na rua gente pior que eu… A minha solidão é por opção…
- Creia-me meu irmão que muitos que vivem e dormem na rua sentem-se menos sós que o Fernando agora.
Voltou a não ter resposta para o padre e acabou por segui-lo. A viagem foi curta e quando chegaram ao pavilhão havia uma enorme azáfama ao redor.
- E agora?
- Agora vá lá dentro e ajude a carregar as caixas que iremos usar para distribuir por aqueles que não querem vir aqui ou então pode ajudar a por a mesa para os que vierem aqui passar a Consoada.
Fernando entrou no pavilhão e ficou espantado com a quantidade de gente mobilizada para aquela noite. As mesas estavam distribuídas pelo recinto e havia muitos voluntários a colocarem pratos, copos e talheres nas mesas.
Parecia haver um polo de distribuição e foi aí que se dirigiu. Alguém estava de costas bem agasalhada a entregar talheres em pacotes de papel. Quase em surdina perguntou à pessoa:
- Boa noite, posso ajudar?
A outra virou-se e ambos exclamaram:
- Fernando, Jéssica!