Retirou o pequeno caderno da gaveta, soprou o pó, depois passou-lhe a mão por cima e finalmente rodou a pequena chave do cadeado.
Antes de abrir o velho diário mirou a imagem da figura feminina e recordou as infrutíferas tentativas de fazer aquele penteado. Depois os pássaros (seriam pintassilgos ou uns meros cartaxos?), a borboleta poisada...
Uma nostalgia subiu ao coração, mas arriscou abrir o caderno. Começou a ler devagar folheando cada página manuscrita naquela letra redonda e certinha. Uma escrita escorreita sem grandes floreados e assertiva. Lia excertos aqui e ali onde percebia que a sua vida fora muito mais que estudos e mais estudos. Algumas alegrias e muitas tristezas, a maioria desilusões de amor... No fundo o prenúncio do que seria a sua vida futura.
Depois foi vendo as colagens. Um cravo vermelho, dois candeeiros de cor quente, uma porta fechada, uns ténis alvos... Se estes a transportavam para o tempo de menina traquina e reguila, já os outros recortes faziam-na sentir estranha. Mas porquê colar aquilo? Olvidara completamente...
Por fim olhou o relógio e apressou-se a arrumar tudo como estava antes. Guardou consigo apenas a chave do cadeado do velho diário.
Saiu do que fora o seu antigo quarto e passeou-se pela casa como estivesse num museu a olhar para objectos com história, para se dirigir à porta de saída, olhar uma derradeira vez e sair.
Na rua dirigiu-se a um casal ainda jovem, que parecia aguardá-la, e entregou-lhes as chaves daquela que fora a sua casa, dizendo:
Era uma vez uma mulher chamada Edna que tinha problemas de visão. Um dia sentada na sua barraca feita de terra batida e tecto de colmo, escutou vindo do centro da aldeia um enorme alvoroço.
Ouviu as crianças a gritarem num frenesim incomum. Mas em vez de se levantar deixou-se ficar sentada pois sabia de antemão que em breve alguém lhe traria novidades.
Ainda não havia decorrido um minuto e logo um rapazito descalço e quase sem roupa entrou a correr pela porta que nunca existiu.
- Mã Edna, mã Edna… chegarem… chegarem…
A idosa estendeu a mão gorda e tentou acariciar o cabelo encarapinhado do menino. Este aproximou-se e deixou que matriarca da tabanca o tocasse para depois lhe perguntar:
- Seninho quem vem lá?
- Os doutor… os doutor… Vem ver olhos…
Edna ergueu as mãos para o Céu e disse:
- Eu sabia… eu sabia…
- Sabia quê mã Edna?
A velha não respondeu. Arrancou o pesado corpanzil da velha cadeira e procurou com as mãos o buraco da porta que não havia. Aproximou-se mais da rua e escutou. Por fim disse:
- Onde estão os doutores?
Sem que os visse dois médicos aproximaram-se de Edna e responderam:
- Estamos aqui Mãe Edna. Vimos ajudar com os vossos problemas de visão. Sei que nos escreveu uma carta… a solicitar apoio.
- Já lá vão quase 10 anos… - Interrompeu.
- Nós sabemos… mas só agora se conseguiu dinheiro. Podemos começar por si…
Edna endireitou-se ainda mais e segura a um velho cajado e às suas velhas convicções afirmou em tom duro:
- Primeiro as crianças, depois as mulheres, os homens vêm a seguir e finalmente se ainda houver oportunidade podem vir ter comigo.
- Mas porque não começarmos por si? - insistiu o médico.
- Porque eu sou velha e já sei de cór as cores do mundo. Porém a maioria das crianças nunca viram para lá deste bosque e do céu. E a cor do mar é tão bonita!
Nasci e em breve me tornei operário. Nunca tive tendências a ser zangão e muito menos rainha. No entanto voei muito… Palmilhei quilómetros por entre flores lindas e perfumadas e plantas que nem flores tinham, em busca do melhor néctar. Umas vezes consegui outras nem tanto!
Servi os altos interesses dos outros enquanto pude. Depois passei a interessar-me unicamente pelos meus. Mas é assim a vida.
Hoje sou uma abelha guardiã, daquelas velhas prestes a morrer, após uma corrida contra o tempo real e abstracto.
Por muito mel que coma terei sempre um pedaço de fel dentro de mim!