O outro ficou com um ar pensativo para depois responder:
- Há uns dez anos também nevou… lembro-me bem.
- Oh pá… mas nevar há cinco dias seguidos? Nunca vi tal… Ainda por cima nesta época…
Ambos eram seguranças num supermercado que em véspera de Natal encerrava mais cedo ao público, mas para eles que se encontravam na central de segurança era mais uma noite normal, apenas sem qualquer movimento.
Aguardavam serem substituídos antes da meia-noite, ainda a tempo de poderem regressar a casa de verem os petizes abrirem as prendas.
- Osvaldo onde deixaste o carro?
O outro retirou os olhos do livro que estava a ler e fixou-se nos múltiplos écrans à sua frente. Depois disse:
- Mesmo ao pé do teu… - e tentando achar o lugar num dos visores apontou finalmente - Aqu… O que é aquilo?
O colega estava tão absorto num concurso na televisão que nem ligou à questão de Osvaldo. Este insistiu:
- Jorge olha para aqui – e apontou para um visor onde se podiam ver duas viaturas devidamente estacionadas, mas com a particularidade de entre ambos os veículos se encontrar um trenó conduzido por aquilo que parecia ser uma rena.
- O que é aquilo?
- Já te tinha chamado à atenção… tu é que não ligaste nenhuma…
- Aquilo é o que eu penso?
- É!
- Mas… como apareceu ali… e quem terá conduzido?
O outro riu-se e acabou dizendo:
- Foi o Pai Natal!
- Deixa-te de coisas – e levantando-se num ápice avançou – temos de pesquisar nas outras câmaras…
- Ui que medo… do Pai Natal.
- Se ele aparecer com uma G3 para assaltar a loja diz-lhe que a arma é a brincar
- Não digas isso que eu também estou preocupado, mas não exageres.
- Vou ligar para a polícia… Não estou a gostar disto… Estás a ver as marcas dos pés na neve? Veio para aqui…
- Andas a levar a “A Casa de Papel” muito a sério…
- Não brinques com isto… Não sabes quem anda por aí… E se for um bombista?
- Tens um espirito de Natal muito parvo, mas pronto vou olhar a ver se o encontro.
De repente:
- Olha está aqui…
- Onde?
- No Multibanco…
- Mas o Pai Natal também usa dinheiro? – Soltou uma sonora gargalhada.
- Com esta crise deve usar tudo o que tiver à mão…
Voltaram para os visores em busca de tal personagem, mas sem o verem regressaram aos carros. O lugar estava novamente vazio.
- Vês foi-se embora zangado contigo…
- Porquê? Fiz algum mal?
- Não, mas como não acreditas no espírito de Natal, acabou por ir embora.
O outro voltou a conferir todas as câmaras e após se ter certificado que não havia ninguém aproximou-se da porta enquanto dizia:
- Só acredito nesse tal espírito de Natal quando tiver provas…
Abriu por fim a porta que dava para o corredor tendo encontrado então dois cestos de verga repletos de óptimas iguarias.
O sábado estava convidativo a uma caminhada pela cidade condal. Beatriz aproveitou uns dias livres na galeria e foi com Malquíades passear. Eva dormia no carrinho que o pai empurrava.
O passeio iniciou-se na praça de Espanha, passaram pelo Palácio Nacional sem entrarem e subiram a Montjuic. Cruzaram-se com muitos casais quase todos com três infantes. Malquíades deu um pequeno toque no braço da namorada e observou:
- Ainda nos faltam dois...
Beatriz riu também para logo acrescentar:
- Para isso é necessário que vivas cá! Se com uma filha já te queixas... como seria com três!
Apanharam então a avenida Miramar com o intuito de descerem até Barceloneta através do teleférico. De repente a pintora puxou o braço do namorado e disse:
- Anda vamos visitar a Fundação Joan Miró.
- Achas que vale a pena?
- Espero que estejas a brincar... Só podes...
Perdida a competição Malquíades entrou no edifício dando logo de entrada com uma enorme tapeçaria. Depois foi deambulando por salas e mais salas. Beatriz parecia realmente feliz enquanto o namorado parecia estar a viver um frete.
- Amor vem aqui ver este quadro...
Empurrando o carrinho onde Eva ainda dormia, Malquíades aproximou-se de uma tela mais alta que ele e calou-se. Foi a namorada que avançou:
- Lê o título do quadro...
Malquíades leu em voz alta:
- "Cabello perseguido por 2 planetas"...
- Que me dizes deste quadro, hem?
- A sério... queres que comente isto?
- Claro...
- Prefiro não o fazer... Tu não irias gostar.
- Vá, diz lá...
O jornalista suspirou e devolveu:
- O tipo metia para a veia com toda a certeza... E era com a seringa das farturas que tem dose maior...
Beatriz quis rir, mas depois respondeu:
- Não sejas assim... Não percebes esta beleza?
- Sinceramente? Não!
- Então vá eu explico...
Após uma pausa:
- Um cabelo refere-se a quê? Tu ao escreveres também usas metáforas... o pintor faz o mesmo. Portanto um cabelo será o quê?
- Uma pessoa.
- Certo ou o ser humano... Pode ser?
- Pode!
- Os dois planetas serão assim?
Malquíades pensou para responder:
- Terra e Lua...
- Portanto o homem vive obsecado e quiçá perseguido pelos astros.
- Então e o resto da tela tão grande?
- Representa todo o Universo. O desconhecido, a dúvida, o medo...
- E aquela bola alaranjada será?
- O nosso Sistema Solar...
Malquíades pegou então no carrinho com a criança deu meia volta e disse à namorada:
- Enquanto divagas por aí eu e a Eva vamos lá fora ver de que cor é o nosso céu...
Pairava na sala um silêncio estranho. Nem era bem algo imposto, mas tão somente uma ausência de diálogo.
Lurdes sentada num canto do sofá olhava o lume que crepitava forte em labaredas sempre desiguais, quentes e acolhedoras. Na mão direita uma caneca de chá de erva príncipe que já estivera quente.
No lado oposto a esposa, a Lúcia. Esta tornara-se uma jornalista com nome firmado no meio. Bonita e corajosa raramente temia um oponente. Lia um livro para, de vez em quando, olhar para o lado contrário tentando perceber a esposa. Ou entender o silêncio quase sepulcral.
Foi o seu impulso momentâneo que destruiu a quietude de palavras:
- Que tens Lurdes?
A outra olhou-a com carinho e devolveu:
- Desculpa este mutismo, mas ando preocupada com o futuro…
- De quê?
- Meu… nosso… enfim!
A outra ergueu-se num salto do seu lugar e temendo algo insistiu:
- Explica lá isso que agora disseste…
A outra percebendo que não usara as palavras correctas tentou emendar:
- Estou preocupada com o nosso futuro em termos profissionais…
- Mas porquê… que te falta? Tu sempre foste muito boa na área da moda…
- Eu sei que sim, mas ando longe de novas criações… e ainda por cima tenho em breve um novo desfile.
Lúcia suspirou de alívio e aconchegando-se a Lurdes animou-a:
- Tu de um momento para o outro descobres a pólvora… Fazes sempre assim!
A outra avançou:
- Já fiz roupa de quase todos os materiais chamando a atenção das pessoas para os diversos problemas… desde plásticos a latas fiz de quase tudo. Mas agora faltam-me ideias.
- Verás que não tarde nada surge-te uma coisa fantástica.
- Ai não… não sai nada!
Lúcia num dos seus repentes levanta-se do sofá e segue para o enorme escritório onde liga o computador e após alguma pesquisa diz:
- Lurdes, vem aqui querida… vê isto!
A outra ergueu-se do sofá e colocando os braços à volta da sua amada:
- Diz lá…
- Olha para este quadro de José de Almada Negreiros… que me dizes?
A outra olhou-o com algum interesse para depois devolver:
- Essa é a “Ilustração de Moda” assaz conhecido.
- É só isso que sabes dizer?
- Não… Ela é muito magra e ele tem cara de fuinha.