Cumprimentaram-se de forma fria e sentaram-se frente a frente.
Àquela hora da manhã a Praça Navona, em Roma, era um lugar quase vazio. Um dos homens puxou de uma pasta e mostrou o interior repleto de notas de 500 euros ao oponente.
- Tenho um negócio a propor...
- Mas eu não entendo nada de negócios... sou em mero reformado!
- Um estranho reformado que viajou para Itália em jacto privado.
- Mossad, CIA, Interpol?
- Nada disso. - e avançou - represento alguém abastado que requisita os seus especializados serviços.
- Não imagino como o poderei ajudar?
- O meu patrão quer que pinte uma réplica perfeita de um quadro famoso. Sei que o fez com um de Van Gogh e outro de Goya e muitos de menor importância.
O falsificador levantou-se, pegou no chapéu de chuva e preparou-se para partir quando escuta:
- A ideia não é só fazer uma cópia, mas substituir a falsificação pelo original!
A ideia súbita de ter uma quadro pintado por si exposto, mesmo sendo uma cópia, fê-lo pensar. Todavia temia que as autoridades o voltassem a perseguir como acontecera outrora e já não tinha paciência para tais sarilhos. Assim antes de responder foi questionando:
- Como sei que não é da polícia?
- Não sabe! Por isso o melhor será mesmo confiar. Mais... não creio que as autoridades tivessem coragem de andar na rua com tantos milhões numa mala... como eu!
O pintor ficou a olhar o oponente que continuava sentado, tentando perceber onde começava a verdade e acabava a mentira. Preferiu ainda assim abandonar o encontro.
- E se fosse "O Beijo" de Gustav Klimt? - ouviu já longe.
Estacou. Virou-se e aproximando-se do opositor declarou de forma peremptória e de dedo em riste:
- Esse quadro é o único que nunca falsificarei... Nunca! O seu chefe que tire daí o sentido...
- Pode ao menos explicar porquê?
- Porque esse quadro, caríssimo senhor, representa o amor genuíno de um homem e uma mulher e tudo representado num singelo beijo. Por muito que eu tentasse jamais o conseguiria falsificar porque há demasiado sentimento nessa tela!
O interlocutor nada disse, mas quando tentava convencer o pintor, escutou deste:
Entrou na loja devagar. Uma espécie de sino muito agudo tocou, para logo aparecer o dono do estabelecimento que ao ver o cliente logo saudou:
- Ora viva, boa tarde como está? – e estendeu o punho para o cumprimento pandémico.
O cliente respondeu também com o seu punho direito respondendo:
- Vamos andando!
- Que tal a estante, ficou bem?
- Ah optimamente!
- Já agora o tal quadro?
- Esse é que ainda não está montado. Nem sei se alguma vez será… pendurado!
A conversa parecia boa, mas o antiquário percebeu que aquele cliente tinha alguma coisa na ideia. Portanto valeria a pena investigar:
- Então o que o trás por cá? Não me diga que é por causa da cómoda?
- Ai não, não… desta vez ando em busca de uma moldura para um quadro que a minha mulher está a desenhar.
- Temos cá muitas… algumas são bem antigas e verdadeiras pechinchas…
- Ok então vamos lá vê-las…
O lojista virou costas e o cliente segui-o. De súbito este pára e fica a mirar um relógio em cima de uma cómoda. O outro reparou e voltou para trás. Depois foi dizendo:
- Um relógio de aniversário… esse!
- De que marca: Kundo ou Schatz?
Mais uma vez o antiquário ficou surpreso.
- Um Schatz! Creio que dos finais dos anos 40.
O cliente baixou-se e ficou a olhá-lo atentamente. Depois tentou procurar algo mais que o identificasse.
- Posso rodá-lo!
- Claro… ele nem trabalha!
O outro virou-o. Ligou a lanterna do telemóvel e após atenta inspeção disse:
- Hum, tem razão é um Schatz, está lá o símbolo dos elefantes, mas depois não diz mais nada. É estranho para ser dessa data que disse…
- Sinceramente de relógios percebo pouco. Mas venha lá ver as molduras… É que por coincidência chegaram ontem umas de um espólio que comprei… Ei-las…
O cliente aproximou-se e foi retirando uma a uma. A maioria delas envolviam telas com gravuras coladas, de papel banal e sem qualidade. Outras nada traziam ou apenas desenhos que eram réplicas de má qualidade de outras gravuras. Até que pareceu ver uma moldura que lhe agradou. Envolvia esta uma réplica de uma aguarela.
- Olha, olha o que temos aqui…
O antiquário aproximou-se e não percebendo o que o cliente pretendia dizer, foi avançando:
- Que tem essa gravura?
O cliente pegou na moldura e colocou em cima de uma mesa. Depois esclareceu:
- O original desta tela encontra-se em Vila Viçosa e faz parte do património da Casa de Bragança. Chama-se “Sobreiro”, mas é mais conhecido nos meios artísticos como “O Sobreiro da discórdia”.
- Então porquê?
- Porque a assinatura é do Rei D. Carlos I… mas os especialistas dizem que foi Malhoa que o pintou…
Agora que estou de novo acordada, queria demais que o sonho fosse realidade.
Sonhei que tinha partido.
Neste momento em que olho para esta cama que me detém, queria sublimemente que aquele fosse verdadeiro.
Há quase trinta anos que descobri que tinha esclerose múltipla. Comecei por coxear, depois canadianas, mais tarde cadeira de rodas para agora aqui estar imóvel, a sonhar a todo o momento que a doce negra me leve e deixe, por fim, descansar quem cá fica.
Sei, no entanto, que ela paira algures por aí. Pode dormir comigo aqui a meu lado ou no beliche de cima, todavia ainda não teve a ousadia de me levar. Preciso outrossim de paz, necessito que aqueles que me rodeiam repousem destes anos de amarguras.
Porque eu…. eu já fui o que não sou agora. E sempre acreditei no milagre de uma suposta cura... Triste e pobre crença.
Sonhei que corria.
Para perceber que as minhas pernas hoje são mais empecilhos que alegrias. Que os meus braços são mais cepos que força.
Isabel apareceu em tom aflito no quarto do filho, tentando secar as mãos a um pano.
- Que se passa Zé? Que gritaria é essa?
- Desculpa mãe, mas estou aqui com um problema e não consigo antever uma boa solução.
- Então qual é o problema?
- A professora Fátimaentregou-nos este quadro para escrevermos um texto sobre ele… O que nos vier à cabeça…
A mãe olhou com interesse a pintura de Fátima Mano para finalmente dizer...
- Não vejo onde estará o problema. Olha… descreves o que vês…
- Achas isso fácil, mãe?
- Então não é? – depois arriscou – e o que escreveram os teus colegas?
O jovem fez um gesto de enfado perante a questão materna para finalmente responder:
- Oh… cada um diz sua coisa. Por exemplo a Ana de Deus viu o quadro de uma forma, a Ana Mestrede uma completamente diferente. O João-Afonsoescreveu uma coisa ainda mais estranha, a Olgapior ainda…
- Que mal é que isso tem? Cada um vê as coisas de uma maneira muito própria. Então a Célia, aMaria Araújo, aLuísa, por exemplo? - Essas escrevem tão bem que nunca percebo o que querem dizer…
- Então a culpa é tua que lês e escreves pouco… Eu bem que te aviso.
- Vá lá mãe… não sejas chata… pareces a Miae a Cristina.
- Porquê?
- Porque elas estão sempre a dizer isso… que leio pouco… Então a Charneca em Flor…
- Quem? Essa não conheço.
- Também não conheces a bii yue ou a Peixe Fritotambém minhas colegas e bem fixes por sinal.
- E os outros não são?
- São mas…
- Mas o quê? Escreve mas é esse texto que estou quase a acabar o jantar.
- Eia pah… que pena. - para logo seguir a pergunta fatal - que idade teria?
- Para mais de oitenta anos.
Foi conversa durante o resto da tarde e toda a noite. Os homens que entravam na taberna do Charrua, logo perguntavam:
- Sabem quem é que morreu?
Todos respondiam que sim e retornavam aos copos de vinho quase azedo ou de cerveja quase quente, aos jogos de sueca ou ao velho dominó. No meio da algazarra alguém comentou:
- O Zé Quim era um tipo tramado… sabia-a toda…
As cabeças já meio turvas concordavam, mas foi o Fidalgo que aceitando o repto lançado e naquele seu jeito de contador de trovas e mentiras acrescentou:
- Dizem que até enganou um juiz.
- Não acredito – devolveu um
- Foi, foi verdade – confirmou outro.
- Como assim? – ouviu-se alguém perguntar.
Então o Fidalgo rapou de uma cadeira, rodou-a 180 graus e sentou-se de frente para as costas da dita. Tirou a boina suja e surrada, sacudiu-a como se fosse fazer um discurso. Pigarreou para finalmente continuar:
- Sabem que ele caçava sempre sozinho.
- Isso por que os grupos de caçadores não gostavam dele – acrescentaram.
- Certo e por isso andava por aí sem que ninguém soubesse, mas trazia para casa caça com fartura.
- Era costume afoitar-se para as reservas…
- Ora um destes dias foi apanhado com duma lebre, dentro de uma dessas reservas – continuou Fidalgo.
- Ui isso é um sarilho dos grandes…
- Pois é e a venatória que o apanhou deu-lhe ordem para baixar a arma e confiscou tudo. Depois levaram-no no carro para a esquadra para prestar declarações.
- Xiiii… uma arma tão boa que ele tinha…
- O pah cala-te… deixa-o o homem falar.
- Bom, confessou ele que no carro da autoridade os foi avisando para o deixarem sair porque de outra forma eles iriam sair envergonhados. Ao que a venatória não ligou. Passado uns dias apresentou-se no tribunal para ser ouvido por um juiz que logo lhe perguntou o que tinha acontecido.
O relator bebeu mais um pouco de cerveja. Era agora a hora do teatro e o Fidalgo adorava a arte de Talma. Por isso arriscou imitar o falecido Zé descalço:
- Saiba senhor doutor juiz que tenho prevaricado muita vez. É verdade, não o nego. Mas logo naquele dia em que nada fizera de mal é que fui apanhado. Eu andava fora da reserva à caça quando avistei uma lebre e ferrei-lhe um tiro, mas a velhaca fugiu ferida e mandei o canito procurá-la. Só que a magana escondeu-se no lado de dentro da reserva e quando o canito ladrou eu fui lá buscá-la. E foi aí que me apanharam!
Alguns dos presentes riam-se da esperteza do velhote. O Fidalgo continuava:
- O juiz virou-se para os agentes responsáveis pela detenção e perguntou-lhes se o tinham visto disparar dentro da reserva, ao que responderam que não e que apenas o tinham apanhado dentro da reserva com a peça de caça.
- Pronto, safou-se - sentenciaram.
- É que se safou mesmo. Levou logo a arma e tudo… para casa.
Um ror de gargalhadas e palmas.
- Grande Zé Descalço – declarou um outro idoso que conhecia bem a matreirice do Zé Quim.
- Mas não se safou da Negra!
Todos olharam para quem proferira a última frase e reconheceram o João Descalço, um dos nove filhos do defunto que acabara de chegar.