Aprendera desde novo a viver com as adversidades que a vida lhe propunha. Como também percebera que teria de lutar mais que os outros para chegar mais acima.
Quando chegou ao seu pequeno apartamento numa zona suburbana ficou a pensar na precipitação de acontecimentos desse dia. Uma amálgama de sensações, emoções, memórias e no fim um receio terrível!
Sabia que o seu coração, havia muito, que tinha dona. Mas assumi-lo não era coisa que ele dissesse a alguém. Depois esperava encontrar alguém que a fizesse olvidar. Bem que tentou, mas nenhuma delas era… Ângela. Para naquele dia a ver ali bem perto de si, com aquela beleza que sempre a caracterizara.
- Caneco o mundo é tão pequeno… - disse para consigo já sentado no seu sofá.
O problema maior surgia agora, pois teria de escolher entre ser professor numa faculdade ou quase investigador sénior numa empresa de renome… com as naturais boas alternativas financeiras. A responsabilidade seria muito grande e daí sentir um medo tão forte que quase lhe tolhia a fala.
Depois deitou-se no sofá cruzou as mãos por detrás da cabeça e ficou a mirar o tecto branco e a recordar aqueles dois beijos que tivera a coragem de pespegar em Ângela!
Acabou por adormecer e tal como na bonita canção de Carlos Paião sonhou com ela!
Havia tempos que andava com anseio de ir a um antiquário. Acima de tudo porque necessitava de comprar uma estante e as modernas durariam menos que nada.
Entrou na loja repleta de tanta coisa velha e antiga. Pairava no ar um aroma onde se misturava a cera, cânfora e bafio.
Por detrás de uma velha secretária ergueu-se o vendedor que, não obstante as evidentes cãs, parecia mais novo do que aparentava.
- Boa tarde…
- Boa tarde – respondeu o cliente – posso dar uma volta?
Conhecia bem a forma de comprar algo mais barato neste tipo de lojas.
- Com certeza… Esteja à-vontade… Procura alguma coisa especial?
- Não, nem por isso – mentiu – mas gosto de ver este tipo de lojas.
- Então... sinta-se em casa.
Foi tricotando por entre muitos móveis loiças, faianças, relógios ou rádios velhos. O dono seguia-o à distância não fosse alguém mais… estranho e quiçá amigo do alheio. A determinada altura o eventual cliente perguntou:
- Diga-me este lustre é de vidro banal ou cristal?
- Vidro antigo… Tem mais de 150 anos!
- Qual o preço?
Aproximando-se retirou de um godé do lustre um pequeno papel onde marcava trezentos euros. Mostrou-o, mas acrescentou:
- Para me estrear hoje vendo por 250 euros…
O cliente nada disse e continuou a procurar o tal móvel que não confessara. Viu discos de vinil e bobines de fita magnética para gravadores, estatuetas, cachimbos, cómodas do tipo D. José, cadeiras em pau-santo, umas caixas de charão, uma grafonola e um gramofone de campânula de madeira que assumiu ser bem antigo, diversos vidros em casca de cebola e uns pratos da antiga Fábrica Ratinho. Por cima de alguns móveis pode perceber umas travessas Miragaia e noutro uma terrina que lhe pareceu razoavelmente antiga, quiçá da Real Fábrica de Sacavém. Nalgumas vitrines conseguiu também descobrir diversas garrafas licoreiras, algumas completas, outras sem tampa e outras ainda com os cálices em anexo.
Pelas paredes, para além de uns espelhos velhos, alguns relógios ingleses e diversos quadros. No chão havia outros. Meteu as mãos e foi folheando as diversas molduras encostadas umas às outras e em cada uma das gravuras espreitava. Até que percebeu algo diferente. Puxou o quadro para fora.
Endireitou-o com ambas as mãos e ficou a mirá-lo. Poisou-o em cima de uma trinchante e afastou-se para ter uma melhor perspectiva.
O lojista aproximou-se e perguntou:
- Gosta?
- Gosto… sabe o que é?
O outro fez uma espécie de careta e devolveu:
- Quem não conhece...?
- A “Onda” não é uma peça fácil de encontrar.
Percebeu que tinha falado demais já que o homem iria provavelmente aproveitar-se do comentário para acrescentar alguns euros ao preço. Deixou o quadro e prosseguiu pela loja. Finalmente viu ao longe a estante que lhe serviria. Aproximou-se, mas em vez de se mostrar interessado no móvel voltou as suas baterias para uma secretária ao lado.
- Sabe o tamanho desta?
Num passe de magia surgiu uma fita métrica nas mãos do vendedor e num ápice estendeu a fita e respondeu:
- Tem um metro e vinte… - virou a fita… - por oitenta!
- E quanto quer por ela?
- Setecentos euros… Mas olhe que isto é de pau-santo…
- Já vi que sim.
- E esta estante?
- Essa é barata… Duzentos euros… - respondeu de cor.
Era um preço interessante, mas aquela gravura de Katsushika Hokusai ficara-lhe no goto!
- Bem se calhar em vez da secretária levo a estante…
- Fica bem servido… é um bom móvel. Quer que lho entregue em casa? - perguntou o lojista contrariado por não vender a secretária.
- Mas ainda não acordámos no preço…
- Olhe que duzentos euros é barato…
O cliente virou as costas como se desinteressasse e dirigiu-se para a saída. De súbito o vendedor propôs:
- Duzentos euros pelo móvel e leva a “Onda”…
A alma do cliente quase saltava de alegria, todavia nada demonstrou e com a calma de quem está habituado a fazer negócios estendeu a mão dizendo: