Havia muito que a noite caíra sobre a cidade. Valdemar olhou o relógio e finalmente pôs-se a caminho do bar onde Arcizete fora vista pela última vez. Podia ser que o anão por lá aparecesse… Porém não o queria assustar com a sua presença.
Percorreu o caminho longo sempre a pé deixando que o fresco da noite o animasse. Entrou no bar e dirigiu-se ao balcão. Aqui chegado percebeu a presença de três personagens atípicas ao local. O primeiro era um padre pois reparou no cabeção que sobressaía do pescoço do clérigo, o segundo parecia um apresentador de televisão, mas nem sabia se era mesmo ele e o terceiro era um homem completamente bêbado e que tentava negar olimpicamente o seu ébrio estado.
Val foi abordado por umas das “drag” que serviam bebidas e pediu uma cerveja. Para logo a seguir ser abordado pela outra empregada de balcão:
- Por cá outra vez inspector?
- Boa noite… é verdade!
- Espero que não seja uma rusga…
- Oh não… para isso serve o meu colega Arcílio…
- O gordo?
Valdemar ergueu os olhos e devolveu:
- Conhece-o?
- Claro que conheço… Vem cá muitas vezes… Desde que foi a rusga…
O jovem inspector fixou o espelho â sua frente e perguntou:
- Há quanto tempo que não aparece?
- Oh faz muito tempo… Acho até que o vi naquele dia em que a Arcizete saiu com o anão.
- Viu-o nessa noite?
- Quase de certeza… - para depois se aproximar do ouvido do inspector e concluir – ele era muito… chegado à Arcizete…
- Chegado? Chegado como?
- Não me diga que tenho de fazer um desenho.
De súbito Val abstraiu-se do local onde estava e reviu todo o processo. Depois pagou a bebida e saiu do bar regressando a casa. No caminho ligou a Aquiles, o seu chefe.
- Val? – respondeu uma voz sonolenta – que se passa?
- Desculpe chefe acordá-lo, mas preciso saber quem descobriu o corpo da Arcizete?
- A uma hora destas?
- Sim chefe… Pode ter sido um de nós a matá-la.
Após uma pausa:
- Acho que foi o Arcílio que me ligou a dizer que necessitava alguém da brigada…
- Tem a certeza chefe?
- A certeza!
- Obrigado, pode ir dormir!
Correu para casa, afastou os papéis da secretária e começou a escrever alguns apontamentos. Depois deitou-se feliz e dormiu, pela primeira vez ao fim de muitos meses, em paz.
No dia seguinte chegou à secretária e começou a escrever relatórios antigos. Até que Aquiles entrou na sala e vendo Valdemar por detrás de Himalaias de papéis:
- Então?
- Foi o Arcílio… Ele é canhoto, lembro-me quando acendeu o cigarro, apagou todos os registos do Octávio e da Arcizete já que também é polícia, tinha uma relação amorosa com a vítima e acima de tudo a história dos fogões.
Acordou estremunhado e quase doente. Na boca um sabor horrível a fel e a cabeça doía-lhe valentemente. A noite fora horrível. Primeiro pelas insónias e mais tarde pelos pesadelos.
Fora uma noite de sobe e desce de emoções, sonhos e demais imbecilidades, que o haviam deixado daquela forma… aturdido e sem reacção.
Tentou lembrar-se ao pormenor do que sonhara, mas só lhe vinha à ideia a imagem do Bill Gates envolvido com a tal de Xana Toc Toc, que acompanhada dos seus polichinelos haviam inventado uma qualquer teoria de conspiração contra uma empresa de industria alimentar.
Uma confusão diabólica… um sem números de factos sem qualquer lógica e sentido. Disparates completos.
Val sentou-se na beira da cama, passou as mãos pelo cabelo desalinhado, olhou a cómoda onde residia parte do processo da morte de Arcizete e suspirou. Um crime que lhe tomava o tempo, o sono, a vida… e sem qualquer contrapartida que se visse.
Ergueu-se do leito disposto a pegar mais uma vez no caso. Já havia perdido o conto das vezes que repetia aquela acção. Leu papéis, relatórios, viu fotografias, reviu as suas anotações e não conseguia encontrar um simples elo de ligação. Nada, rigorosamente nada! E desfiava em voz alta:
- Arcizete Trelica, antes Octávio Baltazar esfaqueada de madrugada por alguém canhoto. Casa revolvida, estranhei existirem dois fogões. Era uma bodybuilder e usava o Tinder para encontros fortuitos. Frequentava um bar recente onde se realizavam os encontros. O último com um anão que queria que ela o fizesse também musculado… Chamado a depor o anão apresentou alibi para a hora do crime.
Serenamente lembrou-se do interrogatório e até daquela noite em que o conheceu. Um tipo bizarro que falava a sorrir como se estivesse sempre a gozar com os outros. Havia definitivamente nele algo estranho, para além do seu pequeno tamanho… uma espécie de maleita latente como se fosse uma borbulha prestes a rebentar.
- Hummmm… este tipo não é de fiar – disse Val para os seus poucos botões.
De súbito ocorreu-lhe uma ideia. Procurou nos papéis relidos tantas vezes e percebeu batendo com a mão nos papéis.
Mote: "Um anão marca um encontro com uma bodybuilder, no tinder, Descreve o encontro."
Valdemar não dormia descansado havia algumas semanas. Tudo por causa do crime da Arcizete que ele ainda não conseguira avançar. O próprio chefe assumira já que “não valia a pena perder mais tempo com esse crime…”
Mas para o jovem e irreverente agente aquela assumpção seria sinónimo de assumir a derrota na investigação, algo que nunca lhe acontecera. Daí as insónias.
Faltava-lhe, todavia, ainda um local para investigar. Se bem que aceitasse a opção de cada um, o seu estatuto marialva sobrepunha-se à função de investigador e recusava visitar os bares alternativos. Mas provavelmente estaria lá a resolução do misterioso crime.
Certa noite, cansado de papéis e relatórios acabou por procurar esses bares. Conhecia alguns do tempo da brigada de Costumes e deste modo dirigiu-se a diversos. Foi entrando e saindo sem nada encontrar até que entrou num que lhe pareceu ser recente.
A música enchia a sala enorme e no meio da pista muitos pares a dançarem. Aproximou-se do balcão onde duas “drag queens” serviam bebidas.
Uma delas aproximou-se de Valdemar, mas este antes que ela dissesse alguma coisa, armou-se do distintivo policial e perguntou:
- Boa noite. Conheces uma miúda chamada Arcizete? – e mostrou-lhe uma fotografia
A barista olhou para a outra e fez-lhe um sinal para se aproximar. Sem que Val percebesse o que diziam elas trocaram palavras olhando para ele. Por fim uma respondeu num tom meio grave:
- Sei quem é, mas faz tempo que não a vejo aqui.
- Não admira, pois os mortos não têm o hábito de andarem na vida nocturna…
Ambas levaram as mãos à boca assumindo um espanto e uma devolveu:
- Quando é que morreu?
- Há umas semanas. Foi esfaqueada na rua. Sabes de alguma coisa que possa ajudar a apanhar quem a matou?
As baristas olharam-se e por fim uma afirmou:
- A última vez que a vi aqui tinha marcado um encontro com um tipo.
- E viste-o?
- Vi-o e quase não vi… era anão!
- Anão?
- Sim… mas ela gostou logo dele… tiveram uma longa conversa…
- Ouviste o que disseram?
- Oh… sim… O que se diz nestas alturas... Parvoíces!
- Mas eu quero saber o que disseram… se te lembrares. Pode ser relevante para a investigação.
A “drag queen” baixou o tom de voz, aproximou-se de Val e confidenciou:
- Arcizete era uma “bodybuilder” e o anão queria que ela o ajudasse.
O agente ficou a matutar naquela declaração e por fim questionou:
- Mas estaremos a falar da mesma pessoa? É que aquela que morreu não tinha nada esse aspecto… musculada.
- Viu-a despida?
- Ahhhh, pois… não… não vi! Mas quanto ao anão… voltou a vê-lo por aqui?
- Sim vem aí de vez em quando à procura dela.
Valdemar virou costas ao balcão quando percebeu que do lado contrário da pista de dança um anão estava feliz ao colo de uma jovem.