Atravessou a rua pejada de viaturas da polícia e outras descaracterizadas que cortavam totalmente o trânsito da rua, serpenteando por entre elas até chegar ao passeio contrário onde surgiu um corpo já tapado com um pano branco. A seu lado reconheceu um velho inspector, mas de outra brigada. Assaz gordo Arcílio tinha quase todos os vícios: fumador, jogador, preguiçoso e lambão.
- Bom dia Arcílio, que fazes aqui? – e estendeu-lhe o punho para um cumprimento.
- Olha o Val… Acordaste cedo hoje! – e deu uma risada.
- Pois acordei… Ou melhor acordaram-me… Já te perguntei o que fazes aqui. Isto é um homicídio não uma rusga.
O outro saca de um cigarro, acende-o com o isqueiro voltando as costas contra o vento e tapando com a mão. Depois devolve:
- Isso pensas tu… Já viste a vítima?
- Ainda não… Deixa-me espreitar…
Levantou o lençol, olhou demoradamente e depois anunciou:
- Uma jovem entre 30 a 35 anos, conhecia quem a matou e quem o fez era canhoto.
- O problema reside aí…
- Onde?
- No sexo…
Valdemar não entendeu:
- Agora não percebi…
- Há três anos essa Arcizete que está aí morta chamava-se Octávio…
- Ok. Isso quer dizer o quê? Alguém a matou…
- Pois…
Valdemar percebeu, mas não deu seguimento à conversa. Perguntou:
- Sabes onde morava a vítima?
- No terceiro andar desse prédio aí – e apontou com o queixo.
- Vamos lá?
- Nem penses… Nunca mais chegaria lá acima!
O jovem inspector riu e dirigiu-se ao velho e degradado edifício. Assim que entrou subiu ao nariz um cheiro a bafio. A cada degrau que pisava este rangia sob o seu peso. Valdemar temia que o passo seguinte fosse desfazer a velha e carunchosa escada de madeira. No cimo do prédio o patamar era mal iluminado por uma pequena janela redonda que havia muito tempo que não via limpeza. À esquerda encontrou a porta aberta de um apartamento e um polícia do lado de dentro a guardar. Identificou-se e penetrou num local ínfimo onde reinava a confusão. Parecia que alguém havia entrado ali em busca de qualquer coisa. Tentando não tocar em nada Valdemar foi escolhendo os sítios para colocar os pés com todo o cuidado. Andou pela sala, entrou numa divisão onde mal cabia a cama, seguiu-se a casa de banho também ela demasiado acolhedora, para terminar na cozinha.
Abriu armários, vasculhou alguns e quando deu por terminada a pesquisa regressou ao patamar para voltar à rua. Nesse mesmo instante Arcílio acabava de chegar ao piso tentando respirar. Valdemar aguardou que o colega recuperasse o fôlego para começar a descer.
- Já vais?
- Já!
- Alguma novidade?
- Humm, nada de interessante.
- Vou só dar uma espreitadela.
- Ok, vou indo!
Ainda antes de começar a descida Valdemar declarou:
- Olha Arcílio afinal havia outro… fogão! – e principiou a descer as escadas.
O obeso inspector coçou a cabeça e sem entender patavina encolheu os ombros e penetrou no apartamento.
Valdemar acordou repentinamente com o toque insistente do telemóvel! Estremunhado da noite mal dormida e demasiado bebida, pegou no aparelho, viu o nome, fez um gesto de enfado, mas atendeu:
- Estou… - responde com voz sonolenta.
- Bom dia Val! Acordei-te?
- Não… estou já no gabinete! – e após um breve silêncio - Claro que me acordaste.
- Temos pena, mas tens de te despachar que houve um homicídio.
- Logo a esta hora… - suspirou profundo - Está bem, está bem, dá-me a morada que vou já para lá.
O inspector Valdemar era um daqueles jovens agentes, assaz competente, mas muito boémio e que raramente andava de carro. Preferia os transportes públicos ou até mesmo andar a pé. Por isso e após ter recolhido a morada colocou-se a caminho.
Ao entrar na rua onde ocorrera o crime apercebeu-se do ajuntamento, normal nestas ocasiões, e aproximou-se lentamente tricotando entre a multidão como se não fosse nada com ele. Muitos carros da polícia, muitos agentes, ambulância, tudo para lá das fitas azuis e brancas. A costumada confusão e parafernália.
O agente Valdemar era conhecido pelas suas técnicas muito peculiares de dedução e resolução de crimes. Considerava a opinião pública, por mais básica que fosse, uma chave essencial nas suas investigações e nunca achava despiciente o que lhe diziam, mesmo que meramente opinativo. Todavia fazia-o sempre sobre a capa do anonimato.
Do lado de fora da zona proibida a estranhos, as pessoas juntavam-se, falavam e comentavam, sem contudo saber concretamente o que acontecera:
- Dizem que se atirou do telhado…- palpitava um.
- Coitada – respondia uma velha mulher.
- Droga, isso foi droga – deitou-se adivinhar outra idosa embrulhada num xaile negro. Depois acrescentou – Um primo do meu falecido marido fez o mesmo… Só desgraças.
Entretanto alguém assumiu:
- Foi uma navalhada no pescoço. A minha irmã acabou por me dizer agora por telefone. Ela mora lá no prédio.
Alguns dos mirones acabaram então por desistir da curiosidade quando escutaram as actualizações. Já não tinha qualquer piada...
O polícia anónimo ouvia, mas escusava-se a falar. Entretanto chegou perto de uma mulher mirone que não se envolvera na conversa anterior e quase em surdina perguntou-lhe:
- Bom dia, o que aconteceu ali, sabe?
- Bom dia… Ui uma desgraça…
E sem esperar nova pergunta continuou:
- Parece que mataram alguém. Dizem que foi por causa da droga.
- Ai sim?
- Foi o que eu ouvi.
- Ah, obrigado! Tenha um bom dia.
E passou por debaixo da fita mostrando a identificação a outro polícia, enquanto a mulher curiosa com quem acabara de falar, abria a boca num espanto desmedido.
Mas esta gente julga qu’isto é um infantário, ou quê? É por isto que odeio pessoas… Safa…
Quer’se dizer: não caso eu com nenhuma tipa, não tenho filhos para não ter chatices e quem me moa o bestunto e vem esta gentinha armada em mosca morta fazer desta casa um berçário… C’um caneco. Não é que eu seja nhurra, mas as pessoas irritam-me a sério. Um destes dias apareceu-me aqui um gabirú todo gingão, argola na ponta do focinho e armado ao pingarelho a perguntar se lhe dava trabalho. Eu dava-lhe era com uma cachaporra no lombo para me desamparar a loja.
O dinheiro que faço ao fim do dia mal dá para pagar a porra da luz e o marmanjo a querer trabalho. Só a mim… Porque não vão marrar com um comboio? Larguem-me a labita, canudo!
Ainda os que mais me irritam são aqueles que vêm aqui pedem um café e um copo de água como se esta fosse à borla. Um copo aqui outro ali são litros que gasto por dia sem poder receber. Depois são os grandes defensores da Natureza… Uma treta…
Para rematar toda esta minha vidinha pacata apareceram-me aí, há dias, uns sacanas da ASAE…