A secretária muito bonita, mas pouco vestida e profundamente maquilhada atendeu o telefone e após ter respondido quase em surdina levantou-se do lugar e aproximou-se do jovem:
- Quer fazer a fineza de me acompanhar.
- Ah sim, com todo o gosto!
A jovem assistente seguiu na frente e abriu a porta do gabinete deixando que o outro entrasse.
- Faça favor.
O jovem agradeceu e passando pela frente da esbelta secretária, penetrou no gabinete que já conhecia. Ao fundo o editor de pé olhava pela janela. Dando conta da visita virou-se repentinamente estendendo a mão para um cumprimento:
- Ora viva caríssimo, o que o trás por cá?
- Não sei se se recorda do que me pediu para fazer antes de publicar o dito livro das cores…
- Muito bem…
Sem mais diálogo o jovem escritor entregou ao editor um envelope fechado. Acrescentou:
- Aqui está… Espero que seja a cor que calculava… e que esteja do seu agrado!
- O quê? Você já escreveu o conto sobre uma tal cor que faltava?
- Correcto.
- Então deixe-me ler… - e foi abrindo o envelope donde retirou as folhas impressas.
Depois sentou-se no enorme cadeirão de pau-santo e ficou a ler o texto. Entretanto vendo o jovem de pé, convidou:
- Sente-se.
O escritor agradeceu sentando-se e ao invés da primeira vez, embrenhou-se na leitura de um livro que trouxera enquanto aguardava a resposta do editor. Tinha consciência que o texto era muito diferente de todos os outros, todavia interiormente temia que as coisas não corressem como calculara.
Passados alguns minutos percebeu alguma agitação no seu oponente. Ergueu o olhar no mesmo instante que o editor se levantou do robusto cadeirão e dando uma palmada forte na secretária deixou que uma gargalhada inundasse o amplo gabinete.
- Ahahahahahahahahah! Era isto, era isto que eu esperava de si!
- Ai sim – respondeu com um pouco de ironia, o jovem.
O editor voltou a rir com gosto. Contudo havia algo que lhe mordia a curiosidade.
- Explique-me lá como soube que era esta a cor que eu queria.
- Simplesmente porque o senhor não queria cor nenhuma, mas unicamente saber como sairia eu deste desafio.
- Você para além de ser bom escritor é espeeeeeeerto. Parabéns pelo texto e vamos seguir para a publicação do livro.
- Fico deveras contente por ter gostado.
- Mas posso fazer uma derradeira questão? – insistiu o editor.
- Faça favor…
- Como é que raio se lembrou da “cordeburroquandofoge”?
Entrou em casa em silêncio. Descarregou a mala pesada no corredor, descalçou os sapatos substiutuindo-os por uns chanatos puídos e rotos, despiu o casado pendurando-o no bengaleiro e finalmente entrou na cozinha. A mulher cercada de tachos e panelas a fumegar sorriu quando o viu chegar:
- Olá amor... - e mirando-o, continuou - que tens? Vens com cara de caso...
O marido aproximou-se dela osculou-a na cabeça enquanto respondia:
- Boa noite querida. Não tenho nada... é só cansaço.
Dirigiu-se à mesa onde já residiam apenas dois pratos e perguntou:
- Os miúdos?
- Estão na faculdade até tarde. Têm frequências amanhã, creio.
- Precisamos falar.
- Ai home? O que se passa? Eu bem vi que não estavas bem - e puxando de uma cadeira sentou-se em frente do marido.
Este enfiou a cabeça entre as mãos e mantinha-se em silêncio.
- Ai marido, diz-me tudo. Seja bom ou mau... Estamos cá para resolver as coisas. Como sempre fizemos.
- Desta vez não sei...
- Ai... não me digas que foste despedido?
- Não... mulher. Nisso está óptimo... É outra coisa.
- Tu não me deixes neste estado que ainda me dá um fanico.
- Sabes como engordei nesta pandemia.
- Pois sei... não tens roupa nenhuma que te sirva...
- Ora já viste a minha vida?
- Ai home' que não percebo o teu problema... Não me digas que apanhaste o bicho? - e sem deixar cair a fala - eu bem que te avisei, mas tu nunca acreditas em mim.
- Não mulher pára! Não é nada disso.
- Então é o quê!
- Já viste se o Sporting ganhar o campeonato não tenho roupa que me sirva para ir para a rua comemorar?
Nasceu numa noite de tempestade. No quarto para além da parturiente, a parteira que mais não era que a própria avó.
Serafim cresceu ao Deus dará! Nunca foi registado, nem baptizado. Quando chegou à idade escolar não apareceu pois nem sequer existia não obstante todos o conhecerem na aldeia.
Cedo procurou trabalho para ganhar uns cobres. Guardar umas ovelhas aqui, limpar as camas das vacas ali, descamisar milho acolá.
Quando morreu o pai e logo a seguir a mãe ficou sozinho na velha e pobre casa, já que os irmáos haviam partido para outros destinos.
Um dia Serafim viu-a ao longe. Parecia um anjo, igual aos que surgiam na procissáo das Festas em Honra de Nossa Senhora das Dores que nunca ia mas via passar. Seguiu-a e percebeu onde morava. Teria mais ou menos a sua idade e era linda, linda, linda!
À noite na sua enxerga sonhara com ela. E viajara!
Não lhe conhecia nome e cedo percebeu que ela vivia fora da aldeia, talvez na cidade. Mas ainda assim sentia-a como dele.
Certa tarde quando regressava a casa após ter sachado um chão de batatas, percebeu que ela caminhava no sentido contrário ao seu e que se cruzariam. Baixou então os olhos na sua humildade e sujidade e apressou o passo. Ao passar por ela cumprimentou numa interjeição incompreensível. Ela devolveu para logo vir atrás dele.
- Boa tarde, sou a Juliana - estendendo-lhe a máo.
A sua voz era ainda mais bonita do que imaginara. A mão branca, límpida assim esticada parecia quase um crime sujá-la. Mas ela manteve-a diretita. Ele então bateu com a sua mão nas calças de forma a afugentar a sujidade e tocou apenas no ponta dos dedos:
- Serafim, o meu nome é Serafim!
Ela olhou aquele monte de terra ambulante e descaradamente convidou:
- Hoje na festa irei dançar consigo já que náo o conheço.
Atrapalhado o jovem nem soube o que dizer, apenas:
- Eu não posso ir!
- Não pode porquê?
Teria de dizer a verdade, mas não sabia como.
- Porque não posso.
Virou as costas à menina repentinamente e seguiu de passo ainda mais apressado até casa.
Após ter comido umas batatas frias quase negras com uns tomates demasiado maduros estendeu-se e quase chorou. Nem sabia se era de vergonha...
Adormeceu para acordar com alguém a chamá-lo:
- Serafim, ó Serafim, estás em casa, home'?
- Já vou, já vou.
Junto à cancela de madeira meia partida o Asdrúbal, o seu único amigo, aguardava. A noite caíra e ouvia-se ao longe os sons da música.
- Que me queres?
- Mandaram-me vir buscar-te para ires à festa.
- Já disse esta tarde que não vou... nunca fui a nenhuma festa.
- Pois esta terás de ir.
- Não vou, já disse - e virando as costas ao amigo entrou em casa.
Depois pegou num velho balde e foi até à fonte buscar água. Colocou esta em cima de uma velha bacia e iniciou uma espécie de lavagem das mãos e da cara. Estava neste preparo quando bem perto de si escutou atrás de si aquela maviosa voz.
- Serafim, pedi-lhe para vir á festa. Porque não vem?
O jovem virou-se devagar, olhou-a bem no fundo e por fim assumiu:
- Menina... não vou porque sou um pobre diabo de quem todos fogem.
Não convencida Juliana rematou:
- Serafim vai agora comigo a minha casa que há lá quem trate de si.
Todavia o jovem não foi, recusou-se peremptoriamente.
Entretanto no dia seguinte o jovem foi visto a tomar banho no rio quase gelado.
Acordou repentinamente. Olhou o despertador que iluminava 2 e 13. Ergueu-se e recostou-se na cama. Estendeu a mão, acendeu a luz da mesa de cabeceira e pegou no cachimbo. De seguida a bolsa de plástico com as farripas castanhas do tabaco e por fim o calcador e restantes utensílios.
Com as pontas dos dedos indicador e polegar foi retirando farripas castanhas e foi carregando o fornilho negro. De seguido calcou o conteúdo. Voltou a encher até ficar repleto e bem calcado. Por fim pegou no picão e espetou-o até sentir o fim do fornilho.
Foi o momento de o acender. Pegou num fósforo e ateou-o. Com a chama viva aproximou-a da boca do fornilho, levou a boquilha aos lábios e aspirou. A chama entrou então por entre as farripas secas acendendo-as.
O fumo começou a subir e finalmente recostou-se ainda mais à cabeceira da cama. Ao seu lado na cama residiam um monte de folhas brancas de tamanho A4, uns blocos quadriculados, uma velha máquina de escrever e uma série de lápis e canetas. Na outra mesa de cabeceira dormiam alguns copos sujos e no chão algumas garrafas vazias de vinho.
Mirou aquela feira e enterrou-se no meio dos lençóis que havia muito não conheciam lavagem. Continuou a fumar. Assim que esvaziou o cachimbo levantou-se da cama e acendeu a luz do quarto. Pairava no ar um cheiro nauseabundo e pestilento onde o aroma adocicado do fumo do cachimbo se misturava com o cheiro de vinho azedo.
Tinha pouco mais de seis horas para acabar o seu livro. Assim fora o último acordo após demasiados adiamentos. Mas a preguiça…
De súbito escutou o telefone a tocar. Ouvia-o, mas desconhecia onde estava. Quando o encontrou olhou o aparelho e viu escrito o nome do seu editor.
Para logo a seguir soar uma sinatética de uma mensagem. Leu:
“Estou à tua porta. Já percebi que estás acordado porque vi luz no quarto. Deixa-me entrar”. Aproximou-se da janela e deparou com uma figura magra que encostado a um poste de electricidade, lhe acenou.
Decorreram mais de dez minutos até que franqueou a porta.
- Desculpa a hora, mas não posso deixar que um talento como o teu seja desperdiçado. Achas que falta muito para acabar o livro?
O escritor de cachimbo vazio na mão, sentou-se na beira da cama e devolveu:
- Falta-me o fim… Serão no máximo três folhas, mas são mais importantes que o resto do livro.
- Porra homem acaba isso caneco. Mesmo que não fique bem agora ainda podes corrigir antes da publicação…
De súbito ocorreu uma ideia ao editor. Agora passá-la ao escritor é que seria mais difícil. A cabeça fervilhava e poderia ser uma ideia brilhante, mas o autor teria de concordar.
- Escuta… tive uma ideia.
- Sobre?
- O final do teu livro…
- Como assim?
- Entrega-o sem fim…
- Tu estás louco! – ergueu-se da cama e aproximou-se uma vez mais da janela.
- Posso estar, mas pode ser uma ideia genial… Pensa nisso agora.
- Não posso porque o título do livro está neste final apoteótico.
- Mas isso é fácil… Basta mudares o nome do livro…
O escritor aproximou-se do editor e ameaçou-o de forma ríspida:
- Nem penses, nunca na vida! Isto não é “A história interminável”…
- Eu sei companheiro, eu sei! Então termina a porcaria do livro – respondeu o editor já visivelmente irritado.
Saiu batendo com a porta.
Eram 3 horas de uma madrugada!
Quatro horas mais tarde a máquina de escrever, finalmente, calou-se!
Fixava atentamente o seu antagonista. Do outro lado da secretária ele conseguia ver a velocidade com que os olhos cruzavam as páginas. As folhas deslizavam na mão de forma célere para no momento seguinte pararem. Ergueu o olhar para perceber a avidez de uma resposta no outro olhar. - Então o que me diz? Tentou perceber antecipadamente através da troca de olhares alguma ideia, mas não conseguiu. Por fim o outro largou os papéis em cima da secretária poisou as enormes mãos por cima, dobrou-se sobre o móvel aproximando-se e finalmente: - Eh pá que coisa gira que você aqui me trouxe... - A sério? O outro levantou os polegares e continuou: - A ideia é fantástica, tem aqui textos fabulosos e eu estou pronto a apostar na edição deste livro. Nem queria acreditar. - Está mesmo a falar a sério? - Oiça... o meu tempo é escasso. Preferia estar agora num campo de golfe a dar uma tacadas que estar aqui. Portanto eu não perco tempo. Gostei desta sua ideia... - Minha e não só minha - interrompeu. - Seja de quem for... Quero publicar isto, mas necessito de mais um texto. - Mais um? - Sim, mais um! - Sobre o quê se posso saber... - Falta aqui uma cor... - Acredito que faltará mais que uma... - disse a sorrir convicto que era uma brincadeira. - Pois também sei que há muitas, mas há uma específica que gostaria de ver aqui retratada. Por aquela não esperava. Coçou a cabeça e avançou de forma trémula com medo da resposta. - E de que cor está a falar? - Pois esse será o seu próximo desafio... tentar adivinhar qual a cor que aqui falta! - Ena c'um caneco... por esta não esperava eu! - Puxe pela imaginação. Quando o tiver escrito ligue-me que eu o receberei com todo o gosto. Gostei de o conhecer. Até um destes dias. Estendeu a mão como despedida. O escritor aceitou, rodou nos sapatos e saiu mais triste que se tivessem recusado a publicação do livro. - Que cor será que falta? – desceu então as escadas em passo lento enquanto a cabeça fervilhava!
- Ah aqui está... é só aguardar aí na sala se fizer favor. O senhor doutor já a chama.
- Obrigado.
Na sala vazia havia uma pequena mesa onde se espalhavam revistas cor-de-rosa antigas com outras recentes, um jornal diário e um desportivo. Todavia não lhe apeteceu ler. Ficou a mirar o consultório e a sua decoração.
- Dona Almerinda Peres – chamaram.
Acordada da sua letargia, ergueu-se e deu de caras com um jovem médico de máscara azul-bebé a tapar-lhe a face.
- Boa tarde, faça favor de entrar - e apontou a porta do gabinete.
A doente passou na frente do médico, aspirou o aroma agradável do perfume e pensou:
“Tenho de lhe perguntar o nome da colónia.”
A consulta correu bem até que a determinada altura a cliente perguntou: