O pai levantou-se do seu velho cadeirão onde se sentava geralmente para ler e aproximou-se da filha, que acabara de entrar com a sua velha chave, para a oscular. Porém ao olhar para a jovem percebe uma mancha invulgar e demasiado rosada na face e que lhe apanhava o olho esquerdo.
- Tens a cara vermelha... Que te aconteceu para ficares assim?
A rapariga levou a palma da mão à face como que a tentar esconder o que o pai já vira.
- Não sei papá! Acordei assim esta manhã... Algum bicho que me mordeu...
- Hummm! Essa hiperemia não me parece natural.
O pai e as suas conhecidas expressões médicas, na maioria imperceptíveis.
- Esta quê?
- Hiperemia.... vermelhidão... - esclareceu e teimou - isso não tem nada bom aspecto.
- Pai deixa ... não me dói, deve ter sido um bicho qualquer. Sabes como sou alérgica.
O pai pegou no livro que estava a ler e devagar colocou-o em cima da secretária. Depois saiu da sala, pegou no casaco pendurado no bengaleiro do corredor e vestiu-o. Tudo em silêncio. A filha seguia-o com o olhar sem perceber porque se estava a vestir. Finalmente encheu-se de coragem e perguntou:
- Vais a algum lado?
- Vou dar conta desse mosquito que te magoou!
O pânico subiu aos olhos da jovem e aproximando-se insistiu:
- O que vais fazer papá? Diz-me...
O pai pegou no casaco que envolvia a filha e aconchegou-a. Depois abraçou-a ternamente quando percebeu que a filha chorava.
- Porquê pai, porquê?
O pai antes de sair comunicou em tom que não deixava dúvidas:
- Não sais daqui até eu vir. Certo?
- Certo... papá!
Uma campaínha tocou insistente. O jovem levantou-se do sofá meio a trambulhar, dirigiu-se à porta, espreitou pelo óculo e assustou-se com o que viu:
- Ai que estou tramado... - confessou em tom sumido.
A campaínha voltou a tocar insistentemente!
Minutos mais tarde alguns traseuntes escutaram um grito e baque seco no chão.
Quando entrou em casa viu que a filha chorava convulsivamente.
- Pai, pai o que fizeste? - perguntou a soluçar.
- Eu? O que fiz? Nada... - e mostrando um saco - só fui à farmácia buscar medicamentos para ti.
- Pai não me mintas... por favor...
- Não estou a mentir... Mas porque estás a chorar assim?
- Porque o Rafael morreu. Dizem que se atirou da varanda...
- Olha quem diria... um mosquito que não sabia voar.
Dedicado a todas as mulheres que não conseguem eliminar os mosquitos que lhes atormentam os dias!
Orlando saiu de casa muito cedo e logo ajustou ainda mais o grosso casaco ao corpo, tal o frio. O sol por detrás do Monte Luz ainda não surgira, mas a madrugada já dava sinal de acordar. O céu limpo ainda apresentava uns tons de cinzento, ténues reflexos da noite que ainda não terminara por completo. Consigo o fiel Bravo, um cão arraçado de Serra de Estrela que ele encontrara perdido e abandonado. Durante dias deu-lhe de comer e beber, tratou-lhe das feridas, baptizando-o pela forma como o animal sempre aceitou os cuidados médicos que lhe ministrava, sem um queixume.
- És um bravo! – dissera-lhe após mais um tratamento supostamente doloroso. Da expressão para o nome foi uma luz...
Desceu o empedrado húmido, virou à esquerda e entrou num caminho de terra batida onde ao fundo um curral se erguia. Orlando abriu a cancela deixando que os animais saíssem para o caminho. Depois seguiu até ao Terreiro Grande, com as ovelhas na sua frente e sempre controladas pelo canito e onde as aguardava a erva viçosa e fresca da manhã.
Ao aproximar-se o rebanho estancou perante o portão fechado. Sabia aquele de cor o destino. Orlando passou por entre as ovelhas e fez correr o portão de ferro.
O gado entrou de rompante e começou logo a comer. Serenamente o pastor deixou que os animais entrassem e cerrou o portão. Por fim e em passo lento foi ao encontro do seu lugar favorito. Uma pedra que ele colocara de propósito por debaixo de um abrunheiro dava-lha a visão de toda a propriedade.
Com ele o Bravo. Sempre.
Sentou-se na pedra, despiu o casaco, retirou do bornal um naco de pão e um pedaço de chouriço e comeu com satisfação. O canito não tinha fome já que enchera a barriga com a ração logo pela madrugada, e assim deitou-se aos pés do dono e dormitava, tendo sempre um olho meio aberto, não fosse alguma ovelha fazer das suas e ele ter que a colocar no local.
Havia perto de um ano que Orlando abandonara a cidade. Cansara-se das pessoas estéreis, do trânsito caótico, dos almoços e jantares barulhentos e sem graça. Das invejas e dos mexericos.
Um dia viera por mero acaso à aldeia dos pais e … apaixonara-se pelo local. Tinha estado demasiados anos afastado do lugarejo e quando finalmente ali regressou não quis voltar para a cidade. Mas a sua vida era na capital…
Quando a pandemia o obrigou ao teletrabalho, Orlando decidiu que seria o momento ideal para largar tudo e ir para a aldeia. Não imaginava o que fosse fazer, mas aquele lugar clamava por si.
Despediu-se da multinacional onde exercia um lugar relevante, vendeu a casa, trocou o carro desportivo por uma carrinha de caixa aberta e fez-se à estrada até chegar à aldeia. Consigo levava algumas roupas e o desejo único de ficar.
Num ápice fez amizade com muitos locais e numa tarde acabou por comprar uma grosa de ovelhas ao Manuel Vasculho, um velho e sabido pastor. E ainda recebeu um velho cajado... de oferta, que nunca usou.
Recostou-se ao abrunheiro, cerrou os olhos e ficou à escuta. Naquele preciso instante apenas se ouvia o balir brando das ovelhas, o sopro suave de uma brisa que descia da montanha e a chilreada frenética dos pintassilgos.
Depois abriu os olhos e perscutou a paisagem… misturas dos verdes secos das oliveiras com os verdes claros da erva viçosa e no meio os verdes carregados dos sargaços invasores.
Uma ovelha aproximou-se lentamamente do pastor. Sabia ao que vinha…
Orlando como que acordou do seu manso torpor ao sentir a ovelha, meteu a mão no bornal e de lá retirou uma meia dúzia de favas que deu a comer ao animal. Outras vieram a correr ao mesmo...
A porta abriu-se deixando que a equipa médica entrasse. Ao fundo o Director clínico. Os súbditos de Hipócrates espalharam-se pelas cadeiras para finalmente iniciarem a reunião.
- Então que caso clínico é esse que me querem mostrar?
Um dos médicos levantou-se da cadeira:
- Caro colega temos um caso bizarro e estranho com uma doente que esteve em coma durante algum tempo e quando acordou não falava…
- Perfeitamente natural… Queria o quê… que fizesse um discurso à nação, colega?
- Pois ela não fala… mas…
- Mas o quê Doutor? Desembuche…
- Nem sei como lhe dizer… caro Director…
Do fundo da sala uma jovem médica ergueu-se da cadeira e declarou:
- A doente mia…
Um silêncio. O Director ergueu-se devagar, saiu da cadeira e começou a passar a mão pela face. Depois:
- Ele está aí! Outra vez! Como pode ser possível?
Ninguém falava. O silêncio era quase tumular. Por fim esclareceu:
- Ao invés do que pensam este não é caso único.
- Ohhhhhh – responderam em uníssono.
- Já há uns anos tivemos um caso assim.
- E tem cura? - perguntou alguém.
- Tem. Eliminem os gatos da respiração dela. Verão que deixará de miar!
Naquele preciso instante apenas se ouviam os pintassilgos que nas árvores chilreavam com primaveril alegria, incólumes ao chamamento. Entretanto surgiu vindo do fundo do quintal uma esbelta jovem carregando debaixo do braço um velho e remendado alguidar de barro, vazio. Aproximou-se em passo lento da casa e respondeu num tom áspero:
- Chamou-me mãe?
A antecessora aguardou no pequeno alpendre, no cimo de umas escadas de pedra que a filha se aproximasse. Gastara a força que ainda lhe restava nos gritos e mal conseguia falar. Juntas, a mãe perguntou em tom profundamente sumido:
- Sabes onde o teu pai deixou o garrafão?
A filha passou à frente da mãe em silêncio, virou-lhe as costas e entrou na casa pouco asseada arrastando atrás de si a fraca figura para finalmente responder:
- Tem-no vocês no bucho… beberam-no todo ontem… Cambada de bêbados! Não têm vergonha...
Rosa Maria era a filha de 15 anos de um casal que via no álcool a sua essência. O pai trabalhava no que arranjava, mas num ápice gastava o pouco dinheiro que ganhava na taberna. A mãe não conseguia fazer nada já que estava quase sempre sob o efeito do vinho. Era a jovem e esbelta cachopa que tentava, com assaz dificuldade, tocar a casa para a frente. Umas limpezas aqui, umas ceifas acolá e até um subtil assédio por parte de um patrão a que Rosa fez-se desentendida, mas que lhe haviam valido umas notas boas!
Filha do meio, tinha quatro irmãos, todos rapazes. Os dois mais velhos já haviam partido para longe em busca de melhores vidas. Os mais novos procuraram refúgio na casa de uns tios, que sem filhos, aceitaram as crianças de bom grado e desde tenra idade.
Restara, portanto, Rosa… a flor mais bela da aldeia! Os cabelos pretos, os olhos negros e o corpo formoso faziam da ainda adolescente uma rara beldade. E alvo de incontáveis e impossíveis desejos marialvas!
A mãe com a voz arrastada ainda sob o efeito dos vapores etílicos da última noite, atirou com raiva, espumando:
- Cabra, porca, foste tu que escondeste o garrafão. És uma velhaca!
A jovem ignorou as acusações e sem proferir uma palavra foi à sua luta doméstica.
- Rosa, oh Rosa, minha filha, ajuda-me! Por favor! - pediu encarecida a bêbada, numa voz cada vez mais rouca e sumida e quase a chorar!
Surgindo na entrada a jovem devolveu novamente num tom áspero:
- Se quer ajuda atire-se pelas escadas abaixo… Pode ser que algo de bom lhe aconteça...
Voltou para dentro para limpar a sujidade deixada algures pelos pais na noite anterior.
A mãe olhou-se num velho espelho, muito baço que havia na entrada: uma face sem expressão, o olhar mortiço, as rugas a rasgarem-lhe a face. Depois mirou as mãos engelhadas, as roupas sujas e rasgadas, os sapatos rôtos. Por fim aquela dor que sentia no fundo do peito, lugar onde mora a alma, disseram-lhe certa vez.
Saiu para o alpendre aproximando-se devagar das escadas íngremes e pouco niveladas. Do lado de fora um frágil corrimão de ferro velho e quase todo podre, à sua frente a escadaria... A cabeça latejava, mas as palavras de Rosa mordiam-lhe ainda. Baixou-se então e olhando os degraus com uma invulgar bonomia, deixou-se por fim cair…
Os diversos baques secos fizeram Rosa vir a correr ao cimo da escada. No fundo a mãe jazia imóvel, surgindo na terra um fio de sangue que um cão faminto veio gulosamente lamber.