Encostado a um enorme penedo quase todo tapado de um musgo verde e viçoso, Júlio apoiou ambas as mãos no puído e negro bordão e serenamente olhou em seu redor enquanto aguardava. Como se de repente se fizesse luz no seu espírito toda aquela paisagem passou a fazer sentido.
Sorriu e o sorriso foi apreciado pela jovem que acabara de chegar.
- Bom dia avô. Estás a rir de quê ou de quem?
- Bom dia minha querida Marta, dá cá primeiro uma beijoca a este velhote…
Encostou-se a ela e a neta pespegou-lhe um beijo sonoro.
- Avô… cheiras sempre bem!
O velho voltou a rir. A neta insistiu:
- Mas conta lá de que estavas a rir há pouco?
- Tantas vezes que aqui parei, que aqui matutei como resolver problemas e nunca, mas nunca tinha reparado nesta beleza…
Com o bordão apontou da direita à esquerda. Do horizonte.
- És um romântico…
- Desculpa não tem nada a ver com romantismo… bem pelo contrário… realismo!
Endireitou-se e aproximando-se da parede de pedra cinzenta devolve à neta:
- Em que lugar tu poderias ver esta paisagem: a serra aqui encostada, esta planície que quase se assemelha a uma cova açoriana de um vulcão, depois o casario na encosta, encimado por aquele pinhal… E só agora é que percebi…
- Mas avô isto está assim há muitos anos.
- Pois está… mas o problema é teres consciência disso. Mas vamos embora senão não vês nada.
- Comecemos por aqui… mesmo - avançou a jovem.
- Bem esta estrada de terra batida onde estamos chama-se somente o Caminho do Fundo Felgar. Como sabes todo este bocado de terra direita tem o nome de Felgar. Depois há sítios que têm nomes mais específicos… Os Castanheiros são ali…
- Mas não vi nenhum, avô.
- É normal… já que em 2003, quando foi o grande incêndio do Parque Natural ardeu tudo. Há quem tenha tirado temperaturas de 60 graus tal era a imensidão do fogo. Entretanto esta encosta onde está o penedo a que me encostei chama-se Encosta do Curral. Queres ver?
Dando uns passos mais rápidos encostou-se uma vez mais à parede e chamando a neta apontou com o cajado.
- Esta casa em ruínas foi um antigo curral de cabras e ovelhas de um homem chamado Manuel Palrante. Solteirão empedernido certo é que um dia partiu daqui com o seu gado e nunca mais apareceu.
- Para onde terá ido?
- Ui… nem imagino. Mas as más línguas da aldeia sussurraram que ele tinha uma amiga para os lados de Alcobaça. Creio que nunca ninguém confirmou. Ainda por cima não tinha cá mais família… ficou tudo ao abandono.
- E agora?
O avô nem respondeu e continuou a ser o cicerone rústico.
- Isto aqui chama-se a Eira do Padre.
- Então houve cá um Padre?
- Dizem que sim, mas nunca o confirmei. Sei apenas que todo este bocado era dele mais um outro do lado de lá daquela eira que ali está de pedra.
- Chegaste alguma vez a trabalhar ali?
- Sim, sim… principalmente a debulhar favas e milho.
- Devia ser tão giro naquele tempo.
- Já leste as histórias escritas pelo teu tio Zé?
- Não… Porquê?
- Quando as leres perceberás…
- Oh avô… isso não vale – e aproximando-se do velhote beijou-o na face.
Mas o avô era um homem duro. Não obstante os olhos lindos da neta ainda assim resistia. Como sempre!
- Esta encosta é o Bajanco. Há muitos muitos anos, era eu rapazola, andava com os meus amigos na moinice quando dei conta que ali – e aponto com o bordão – havia muito fumo. Achei por bem vir aqui…
- E?
- O Ti’Manel Germano ao tentar queimar uma pouca de lenha deixou que o lume alastrasse ao restolho e deste às oliveiras. Quando aqui chegámos andava o homem em cima de uma delas a arder no tronco, com uma enxada a ver se a apagava.
- Poderia ter morrido.
- Pois poderia, mas mandei-o sair da oliveira e com a enxada fiz uma vala para que o fogo não alastrasse através do restolho.
- Avô?
- Sim querida…
- O que é o restolho? – perguntou a jovem fazendo uma cara triste.
Um afago do velho na cabeça da menina e explicou:
- Naquele tempo semeava-se por aqui trigo que depois de ceifado deixa uns talos no chão. É isso o restolho que estava seco.
- Ahhh!
Continuaram a caminhar quando se ergue uma enorme parede à esquerda.
- O cemitério velho!
- Não sabia que havia um cemitério aqui…
- Quantas vezes vieste visitar-me? Uma meia dúzia. Vens e vais logo…
- Tens razão avô, mas isto aqui… é tão bonito mesmo sendo tão rústico. Apenas se escuta a própria natureza…
O avô gostou daquela expressão… Achou-a feliz e disse:
- Um dia lá no jornal escreves uma crónica sob o título “O som da Natureza”… - depois gargalhou!
- Se calhar… Não me parece má ideia.
- Sigamos.
A estrada de terra batida curvou para a direita para logo se endireitar. De um lado e do outro erguiam-se velhos muros de pedra disformes e cinzentas.
- Erguer estes muros devia dar cá um trabalhão…
- E o pior era partir a pedra. Porque pedra há aqui muita, mas nem todas têm o tamanho necessário para este trabalho. Assim havia homens que a única coisa que faziam era partir pedra o dia todo com uma marreta.
- Que coisa avô!
- Pois, mas naquele tempo não havia outros trabalhos. Claro havia sempre a agricultura e a pastorícia, mas nem todos tinham terras e gado. Vidas duras, vidas duras…
Caminhavam devagar. Marta diz de repente:
- Olha chegámos ao alcatrão…
O avô pára e observa o local como se estivesse à procura de algo. Depois:
- Para a direita vamos para a aldeia…
- E para a esquerda?
- Seguindo o alcatrão ali mais à frente há uma série de fazendas com nomes muito curiosos… - e piscando o olho à neta sorriu.
- Boa… Sabes que adoro essas curiosidades toponímicas…
Um breve compasso de espera e então desfiou:
- Covão de Inferno, Vale Escuro, Cova do Relógio, Marrã, Fetalhinhos… eu sei lá… olha Penedos Gordos...
- Estes nomes são fantásticos avô. Certamente não sabes a origem deles?
- Perderam-se no tempo… - Entretanto olhou a serra e decidiu – Vamos embora que se está a fazer tarde.
- Tarde avô? Ainda é dia… e vai ser por muito tempo.
- Enganas-te… Quando o sol se esconder por detrás daquela ladeira - e aponto novamente com o velho cajado - cairá um frio que nem imaginas.
- A sério, avô?
- Fica por aí e verás… Eu vou andando que já não corro como tu…
- Acabou então a visita?
- Por agora sim! Mas toma consciência que nestas aldeias longe das cidades, escondidas entre matos e pedras nada é perene.
Mas o ar pesado e triste do jovem não deixava o pai crer nas palavras do filho. De vez em quando era a mãe que esfregando com doçura a farta cabeleira de Artur, o questionava:
- Então rapaz como está a escola?
- Mãe… pareces o pai… sempre a fazer perguntas.
- Peço desculpa, mas coração de mãe sente que algo em ti não está bem… ou estarei enganada?
- Estás enganada… Posso acabar de estudar?
- Pronto, pronto, desculpa!
Um dia já noite bem metida Nuno acaba por perguntar a Catarina:
- Acreditas nele?
- Hummm! Não sei… Sinto que há nele algo que o atormenta… disso posso quase jurar. Mas não imagino o que será…
- Começo a ficar preocupado… Tem 13 anos… uma idade claramente difícil…
- Pois Nuno, mas o teu filho sabe bem o caminho dele! Alguma paixoneta de adolescente… digo eu!
O pai levanta-se de sopetão, olha para a mulher e devolve:
- Isso foi coisa que nunca me passou pela cabeça… é isso… conheço aquele ar… vazio e distante.
A mulher olhou divertida o marido e soltou uma gargalhada:
- Ai sabes? Será que ainda te lembras?
- Ainda… ainda... - e com um sorriso matreiro pegou então na mão de Catarina e seguiram ambos para o quarto.
No dia seguinte Nuno percebeu que o Dia de S. Valentim se aproximava e coincidentemente o filho parecia cada vez mais acabrunhado. Teria de abordar o assunto com pinças, não fosse a confiança entre ambos ser posta em causa.
À hora de jantar Nuno arriscou tudo:
- Então Artur já compraste alguma prenda para dar à tua namorada? - e riu-se.
Artur surpreso pela assertividade da pergunta levantou os olhos para o pai e respondeu:
- Ainda não... Ela quer uns brincos em cristal de Murano!
Nuno abriu muito os olhos e comentou com o ar mais natural:
- Desejo estranho da cachopa!
De súbito Catarina que abandonara a mesa sem que filho e o marido tivessem percebido da sua ausência, regressou à sala, estendeu a mão a Artur e foi dizendo:
- Tens aqui um par… em azul cobalto que trouxe de Veneza, na minha viagem de finalistas! Oferece-lhos!
O rei não era grande exemplo pois era tão gordo como a sua filha mais velha, ao invés da rainha que parecia uma radiografia: de frente parecia estar de lado e de lado não se via.
A princesa, por isso, andava muito triste…
Um dia apareceu no ancião castelo um jovem esbelto e robusto. Pediu uma audiência ao rei que foi obviamente recusada. Até que ele disse: venho tratar da princesa… aquela que rebola!
Foi logo recebido pelo monarca que desconfiou do plebeu. Todavia deu-lhe hipótese de se explicar.
Após as explicações o rei concordou com o tratamento e mandou chamar a princesa. Esta rebolou até à sala do trono e perante o rei:
- Que quereis de mim, meu pai e senhor?
- Eis o homem que irá resolver o teu problema dessa gordura.
- Não tem solução – e começou a chorar.
Entrou o jovem em cena que declarou:
- Princesa… sei como resolver o seu problema. Mas terá de confiar em mim. Sempre. Asseguro-lhe que emagrece.
A princesa olhou para o rapaz e segui-o. Partiram ambos na madrugada seguinte do castelo a pé, mas ainda não voltaram…
Sentado no peal da porta Jacinto desenha na lama da estrada riscos indecifráveis. A seu lado o ti’Leandro segura o chapéu de chuva como se fosse uma bengala. Permanecem em silêncio.
Para no instante seguinte o Jacinto perguntar:
- Alguma vês viste as terras como este ano?
- Que têm?
- Estão verdes. Verdes, verdes!
- É desta chuva que não pára.
- Sabes… gosto de ver as terras assim… Já tinha saudades…
- Encharcadas?
- Sim, mas férteis… também!
- E daqui a um par de meses tens aí o verde da azeitona…
- ‘Inda é cedo! Nem há chora…
- O tempo passa depressa…
Calaram-se ambos! Passou entretanto um miúdo de bicicleta que desceu a rua demasiado depressa. Ao fundo não consegue travar e entra na terra e na lama. Sobe depois a rua, triste, carregando a “bicla” à mão. A sua roupa tem agora um tom verde… da erva que o recebeu e amparou na queda. Passa pelos idosos tenta sorrir, mas eles devolvem:
- Estás todo pintado de verde…
- Foi da erva… escorreguei ali… - e apontou com a cabeça, como se eles não tivessem visto.
Depois, sem mais, seguiu. Entretanto:
- Não te disse Jacinto… este verde invernoso nem sempre nos dá alegrias.