Aquela última viagem trouxera um pastor muito diferente. A primeira pessoa a notar foi a mãe que percebeu uma tristeza cava no olhar do filho. Se bem que o jovem nunca fosse um tagarela, a realidade é que nos últimos dias prevalecia o silêncio. Não imaginava o que se passaria no coração do seu rebento mais velho, mas ainda assim precisava saber. Pegando em toda a sua coragem de mãe aproximou-se uma noite do filho que olhava pela janela de vidros sujos, a chuva que caía com intensidade.
Passou a mão pelos cabelos desalinhados e dando-lhe um beijo na testa acabou por anunciar:
- Sei que não me irás dizer nada do que se passa dentro de ti, mas coração de mãe vai muito além do que possas imaginar. Por isso a única coisa que te vou perguntar é: o que posso fazer por ti?
O rapaz rodou a cabeça olhou a mãe nos olhos e aceitando a ajuda devolveu:
- Sabes quem poderá ter um livro?
- Um livro? Para quê?
- Para ler…
A mãe desconhecia o gosto do pastor pela leitura. Todavia lembrou-se:
- O senhor engenheiro do solar deve ter livros. Eu dou-me bem com a governanta e posso saber se ainda os tem.
- Fale com ela e pergunte se ele tem um certo livro…
- Ai isso não… se ele tiver vais lá tu falar com o senhor engenheiro.
- Mas mãe… eu não o conheço…
- Passas a conhecer!
Arrependido de ter falado o guardador levantou-se da cadeira e foi deitar-se.
- Até amanhã minha mãe.
- Até amanhã filho.
No dia seguinte à hora do almoço a mãe disse ao pastor:
- O senhor engenheiro quer que passes pela casa dele para veres lá um gado que ele lá tem. Creio que será alguma doença e tu poderás ajudá-lo.
O rapaz olhou-a com azedume. Para logo se tornar em doçura. Finalmente respondeu:
- Daqui a pouco passo por lá…
Todavia a antecessora sentenciou:
- Antes de ires lavas-te bem lavado e mudas de roupa… não te quero a cheirar a bedum…
- Mas mãe…
- É o que te digo…
Não valia a pena teimar com a mãe. Num alpendre interior o pastor encheu o velho chuveiro com água meio quente e colocou um alguidar por baixo. Depois despiu-se e lavou-se tão bem quanto pode.
Quando saiu já vestido e arranjado parecia outro. De tal forma que a mãe lhe disse:
- Ai que bonito que estás… Se as raparigas da aldeia te veem assim…
Sem dar continuidade à conversa o jovem comunicou:
- Vou a casa do engenheiro!
- Não fiques por lá muito tempo que o senhor tem mais que fazer…
A casa ficava numa encosta meio íngreme, mas o rapaz subiu com facilidade. Encontrou em enorme portão verde, muito mal estimado e meio escangalhado. Empurrou-o, aquele rangeu e entrou. De súbito escutou dois cães a ladrar e viu-os ao longe. Vinham em grande correria e vendo-os pensou em fugir. Um assobio travou-os.
- És tu o jovem pastor? - escutou.
- Sou sim, senhor engenheiro…
- Sobe a rampa e vem cá acima.
Obedeceu com desenvoltura e deu de caras com um enorme casarão que dificilmente se via da estrada. Uma escadaria principal dividia-se em duas quase perto do chão. Subiu-as e vendo a porta aberta entrou.
Pairava um cheiro a mofo. Continuou a entrar até que voltou a voz:
- Aqui à tua esquerda. Entra se fizeres favor.
Aproximou-se da porta que estava aberta e penetrou na divisão. Deu de caras um homem forte e de cabelo branco, que agarrava uma bengala entre as mãos.
- Ora então tu é que és o pastor contador de estórias…
Passaram-se Invernos e Verões sem que ninguém percebesse. O jovem pastor continuava o seu vai-vém com o seu rebanho. O pai moderara-se e havia algum tempo que mantinha o emprego. A vida parecia correr bem… Somente as estórias no largo haviam desaparecido totalmente, para enorme tristeza de alguns que sempre que apanhavam o pastor faziam sentir isso. Mas ele não se atemorizava e respondia a preceito.
Entretanto o canito Sapatos também envelhecera e já raramente seguia com o dono. Por isso surgiu o Poeta devido à forma como conseguia mais aquele osso com carne. Com a frase: este cão parece um poeta a mendigar carne, é que nasceu o seu nome.
Não obstante estar ainda a aprender o serviço, já se desenrascava a preceito e conseguia com qualidade colocar o gado no caminho certo. Perdia-se por vezes atrás de algum coelho o que irritava o pastor:
- Poeta por onde andaste? Que coisa essa de andares sempre atrás dos bichos…
Havia muito tempo que a menina da Quinta das Figueiras não aparecia ao jovem pastor. A última frase deste deixara-a de coração destroçado, mas ao invés de desistir apercebeu-se que teria de conquistar o coração do pastor de forma mais subtil. Para tal necessitava de saber os seus gostos e desejos.
Sem que ele percebesse esperou-o dias a fio na encruzilhada. Mas vendo-o um dia ao longe escondeu-se dele. Trazia sempre consigo um bom naco de carne que originava que Poeta desaparecesse durante algum tempo.
Percebeu assim a ligação do pastor com o gado, a terra, as plantas… Aquilo era uma mistura perfeita entre homem e natureza. Mas um dia a jovem percebeu que o pastor … escrevia.
Não sabia o quê, mas o rapaz estava longos minutos a rabiscar qualquer coisa numa espécie de sebenta velha. Seriam as estórias que inventava ou apenas coisas diferentes? Seria por ali que teria de pegar o seu homem. Agora necessitava de saber como…
Dias mais tarde quando estava de regresso, o pastor encontrou um livro no chão. Parou a mirá-lo e olhando em seu redor baixou-se para lhe pegar. Leu o título: “O Conde de Monte Cristo”. Nunca ouvira falar da obra, mas pareceu-lhe enorme com a letra bem miúda. Sem dar por isso sentou-se numa pedra e começou a ler. E a cada página seguia-se outra e mais outra. Devorou páginas sem saber enquanto o gado se afastava de si. Quando de repente ouviu o cão ladrar é que percebeu o que acontecera: o gado fugira para o lado da Quinta das Figueiras. Correu a tentar reencaminhá-las, mas algumas já haviam entrado no prado verde e suculento. E o Poeta não conseguira controlá-las a todas.
Esgueirando-se conseguiu finalmente juntar as ovelhas e regressou ao caminho.
Quando chegou ao curral percebeu que o gado já estava quase todo na rua. Primeiro assustou-se, porque prendera bem a cancela na noite anterior, para logo descobrir o pai que ajudava a retirar o resto do rebanho.
- Bom dia, que faz aqui? - perguntou com inequívoco mau modo.
O pai não enunciou qualquer azedume e num tom que impunha alguma autoridade respondeu:
- Vou levar as ovelhas que escolheste à quinta. Foi meu o erro... sou eu que irei dar a cara.
O Pastor correu a cancela e mais não disse colocando-se a caminho pela estrada de terra batida. Corria um vento frio vindo da serra. Mas o jovem nada sentia... apenas uma raiva que não traduzia em palavras, apenas em passos lestos.
Por detrás da colina surgia a madrugada. O céu estava salpicado de umas nuvens que foram desaparecendo conforme o dia clareou. Caminharam, pai e filho, calados durante todo o tempo. Entretanto Sapatos fazia com competência a sua função e o gado que o conhecia bem raramente lhe desobedecia.
Devoraram quilómetros até que chegados a uma bifurcação o pai parou e olhando para o filho questionou:
- São estas marcadas as que vamos devolver?
- Sim! Depois de as entregar pode voltar para casa. Vou à minha vida.
E seguiu pelo caminho que daria acesso à imensa charneca. O canito de súbito apercebendo-se de que algumas ovelhas não seguiam o dono correu atrás delas, mas no instante seguinte o pastor chamou-o:
- Deixa Sapatos… essas já não são nossas… Anda deixa-as!
O jovem pastor regressou ao seu passo lento, observando a paisagem e a natureza. Mas foi com espanto que percebeu a presença de alguém mais à frente semi escondido nas árvores. No início pensou ser um outro pastor com quem raramente se cruzava para, quando chegou ao local, dar de caras com ela. Uma raiva subiu-lhe à garganta, mas naquele instante lembrou-se de uma velha frase do seu avô:
- Mais vale aquilo que fica por dizer do que aquilo que se diz!
E assim nem parou apenas dizendo ao passar:
- Bom dia menina.
A jovem estava de pé junto ao seu cavalo preferido e retorquiu:
- Bom dia…
Vendo que o pastor não parava a jovem iniciou a caminhar ao lado do rapaz e foi dizendo:
- Devo-te um pedido de desculpas!
- Nada há a desculpar…
- Há sim…
O silêncio dele enervava-a, mas percebeu que a única forma de ele se defender. Tinha tanta coisa para lhe dizer, mas temia a sua reacção. Respirou fundo aproximou-se mais dele e pegando no braço virou-o para ela e assumiu:
Sentadas na enorme sala, ricamente decorada, mãe e filha olhavam em redor como se ambas quisessem fugir a uma conversa, que nenhuma delas ousava ter. Uma porque sabia que perdera a razão. A outra porque percebia que a filha não era já uma criança. E provavelmente o coração prendera-se algures…
Coube à progenitora abrir então a demanda:
- Não tens nada para me dizer?
- O quê, mamã?
A filha respondeu num tom seco como estivesse muito segura de si. Todavia a mãe percebia o nervosismo da jovem através de umas mãos inquietas, tique que conhecia desde criança. Portanto o ataque teria de ser agora:
- A menina acha que tem procedido bem nos últimos meses, não acha?
- Eu não fiz nada de mal…
- Ai não… Sai de casa a desoras, entra quando quer, faz negócios nas minhas costas, maltrata as pessoas, usa de um poder que não lhe foi conferido e ainda tem a ousadia de me dizer que não fez nada de mal…
A rapariga encolheu-se qual cachorro atemorizado com um trovão forte. Por fim ganhou coragem e contra-atacou:
- O que a mamã queria é eu fosse aprender a bordar ou a fazer outras coisas como no seu tempo. Eu não quero isso… gosto da terra, dos cavalos, do gado…
A viúva olhou o quadro do marido pendurado na parede, como a rogar bom-senso e rigor para uma menina que parecia ter perdido a verdadeira noção do correcto. Respirou fundo e regressou ao questionário:
- Explique-me então essa história de ter estado na aldeia a ouvir relatos fantásticos do pastor… Não negue que não esteve lá…
Um tom rubro subiu à face da jovem, enquanto se desculpava:
- É verdade mamã que estive lá, sim, mas nessa noite o capataz levou-me na charrete, aquela antiga, mas rápida…
A resposta veio seca, rápida e ríspida:
- Velozes foram os cavalos… - e levantando-se aproximou-se da janela donde via o seu belo e bem tratado jardim.
Aquela casa fora herdada pelo marido, mas ela é que reformulara todo o edifício. Desde cima a baixo, tudo passara por si. Por isso olhando o horizonte, disse:
- Nada do que daqui se vê, nada é meu. É tudo seu… ou será quando eu, um dia, partir. Mas até lá…
A filha mantinha-se sentada desfiando nada com os dedos inquietos. Por fim ergueu-se do canapé e aproximando-se da mãe assumiu:
- Tenho tantas saudades dele… - e principiou a chorar.
- Também eu tenho saudades do seu pai. Faz-me tanta falta!
A jovem ergueu os olhos lavados em lágrimas para a mãe e assumiu: