A partilha perfeita
Havia umas semanas que o pai havia morrido, mas faltara-lhe a coragem de pegar nas coisas que ficaram do antecessor e dar-lhes destino. Ou dividir entre todos os herdeiros.
Mas um dia teria de ser… Não havia volta a dar.
Decidiu naquele sábado regressar à casa onde sempre fora feliz, num convívio perfeito entre pais, irmãos, primos, tios, amigos… e tanta, tanta gente.
O pai adorava ter a casa sempre cheia de gente. E, ao invés de muitos, foi a partir da morte da esposa que a casa mais se encheu. Dizia:
- Quando morrer deixarei de me divertir e de ver esta minha gente. E se sou o que sou a eles o devo… filhos incluídos.
Meteu a chave na fechadura, rodou-a e esta destrancou-se. Rodou a maçaneta, abriu a porta, esticou o braço e acendeu a luz. O corredor iluminou-se mostrando algumas teias de aranha que haviam tomado conta do local. Pé ante pé como se tivesse receio avançou e foi abrindo as diversas portas que encontrou e foi outrossim acendendo as luzes.
Finalmente entrou na biblioteca onde os livros moravam naquele silêncio que só eles. Entre duas prateleiras um quadro a óleo da mãe. Lindo… pensou ela.
Na secretária de pau santo, herança de família, encontrou um candeeiro velho, mas clássico e uma série de papéis pouco arrumados. Sentou-se no cadeirão e passou cada papel com cuidado. A maioria eram pequenos textos sem sentido e sem um fim lógico.
- Ideias rabiscadas… - e sorriu!
Já quase no fim do monte encontrou um que a chamou à atenção e onde se podiam ler uns versos com muitas emendas e claramente incompletos. Ergueu-o e leu o que era possível:
Nos teus cabelos
Cor de trigo maduro
Há seda, cetim e doçura,
Alegria e resistência.
Nos teus olhos de mar
Reside uma liberdade
Que sempre lutaste
Até o teu sangue jorrar.
Se leres estas palavras
Não chores de tristeza.
Ri porque estou contente
Brinca porque fui feliz.
Todavia não resistiu às lágrimas quando no final leu:
À minha adorada filha Cremilde.
Ergueu os olhos para o tecto e exclamou:
- Obrigado meu pai!
Num ápice pegou em todos os manuscritos que encontrou, desligou as luzes, fechou as portas e saiu de casa.
Quando os irmãos, dias mais tarde, se reuniram para dividirem o património dos pais, Cremilde antes que todos falassem, levantou-se da cadeira e declarou:
- Do pai não quero nada…
- Não queres nada, como?
- Eu tenho algo dele que vocês nunca tiveram…
- O que é que roubaste de nós? – perguntou a irmã mais velha.
Cremilde rodou nos sapatos, baixou-se para ficar ao nível mais baixo e respondeu com a serenidade dos eleitos:
- Não roubei nada mana, apenas tenho algo que nunca terás e que se chama orgulho no pai que tive, na pessoa que ele foi. E isso ninguém me tira.
Um silêncio caiu sobre a sala e todos se olharam comprometidos. Por fim acrescentou:
- Quanto ao resto dos bens repartam entre vós! Boa noite!
Abandonou a sala, aconchegou ao peito a pasta com os papéis do pai e sorriu!