Já noite a mãe surgiu no barracão onde o jovem pastor se via no meio do rebando.
- Filho, podes aqui chegar? O teu pai não me contou nada sobre a ida lá à Quinta...
Puxando por uma ovelha grande, o pastor aproximou-se da mãe que mal se via na escuridão e comunicou-lhe:
- Estou a tratar do negócio...
- Não me digas que sempre vais entregar o rebanho todo?
- Consegui ficar com o rebanho, mas tenho de devolver o que falta do dinheiro em gado...
- E quantas ovelhas serão?
- Cinco...
A ovelha deu um esticão, mas o pastor não a largou.
- Estou a marcar as cinco que devo entregar amanhã.
- Ai Graças a Deus - e colocou as mãos em oração olhando o céu negro - E o teu pai, o que disse?
- Nada mãe, nada!
Havia algo no coração que necessitava dizer à mãe. Mas temia o resultado ou reacção da antecessora. Veio para a rua sempre a puxar pela ovelha e aproveitando a Lua deu-lhe uma pincelada com uma cor no pescoço. Por fim largou-a e esta regressou ao meio do rebanho.
- Temos de falar mãe!
- O que se passa agora!
- O pai tem de ir trabalhar... ganhar o seu sustento... Eu não vou andar aqui a vida toda com o gado para ele gastar os poucos tostões na taberna... Nem pense.
A mãe virou as costas ao filho. Sabia que ele tinha razão, mas agora dizê-lo ao casmurro e bruto do marido... Depois:
- Sei que vai ser difícil, mas pode ser que este caso o tenha acordado para a realidade.
- Mãe, acorde! Se não se impuser ele vai continuar a gastar o dinheiro sem destino. Encoste-o à parede... Sem dinheiro dele... não há comida...
- Filho, filho, tu achas que seria capaz de deixar o teu pai morrer à fome? Nunca na vida...
Principiou a chorar, num pranto baixo, mas que não passou despercebido ao filho varão. O rapaz aproximou-se segurou-a nos ombros e aproveitando novamente a luz lunar, confrontou-a:
- Mas vai deixar morrer os filhos…
O pranto era agora bem maior. Embrulhou as mãos no xaile e partiu do curral. Já no cimo da pequena encosta que dava acesso ao caminho ainda disse:
- Vou vender as coisas que herdei dos meus pais... à fome ninguém há-de morrer!
O filho largou a cancela e correu atrás da mãe e voltou-lhe a dizer:
- Não vende nada. E depois quando não tiver mais nada para vender? Mãe... o pai precisa de uma lição. E se não lha der... dou-lhe eu!
- Ai filho que vais desgraçar a nossa família... Não faças nada... Por enquanto... Deixa-me falar com o teu pai primeiro!
Regressou ao carreiro e quase correu caminho fora. Entretanto o jovem pegou no tarro com leite e seguiu em passo lento para casa.
A madrugada surgia de mansinho ao longe, quando o jovem pastor e o pai chegaram à orla da Quinta das Figueiras. Todavia ainda tinham um par de quilómetros até chegarem à casa. O sol elevava-se já por detrás da colina quando avistaram o enorme casario. Para o rapaz era a primeira vez que chegava ali, mas o pai conhecia bem aquele lugar pois trabalhara ali muito. Noutros tempos, noutras idades…
Sentaram-se ambos na parede defronte da escada e esperaram em silêncio. Um gato fugia encostado à parede enquanto os pardais saltitavam no terreiro defronte. Quando o velho capataz surgiu vindo da sua velha enxerga e encontrou dos dois homens admirou-se. Aproximou-se e cumprimentou:
- Olha quem cá está… Viva… bons olhos te vejam…
- Obrigado – respondeu o pai num tom triste.
- Não digam que vieram trazer o gado?
Olharam-se mutuamente e foi o filho a responder:
- Vimos discutir uns assuntos com a sua patroa por causa do rebanho.
- Aquela miúda é o diabo… Safa… Sai ao pai que Deus tem! Querem que a vá chamar?
- Não merece a pena aborrecer ninguém. Nós esperamos…
- A menina raramente se levanta cedo…
- Não importa… Vá à sua vida e não se empate por causa da gente…
Nesse mesmo instante surgiu na varanda a moça que atentava o pastor.
- Ora viva… Pai e filho… E onde está o rebanho? – e olhava ao redor a ver se percebia alguma cabeça.
O rapaz afoito devolveu:
- É por causa desse negócio que cá estamos…
A jovem desceu as escadas e ficou defronte dos dois homens. Por fim:
- O que se passa?
- O que se passa é que a menina comprou um gado que não é de quem vendeu…
Virando-se para o pai inquiriu:
- Deixa ver se entendi… O senhor vendeu-me um rebanho que sabia não ser seu?
O jovem deu um passo em frente e assumiu:
- O gado é da casa, é o nosso sustento. Mas o meu pai vendeu-o para pagar a dívida ao taberneiro do vinho que lá tem bebido. E sem me dar conhecimento…
- Então e agora? Eu já paguei o rebanho… E das duas uma… Ou vem o rebanho ou o dinheiro…
Ambos os homens olharam-se, mas desta vez foi o pai a dizer:
- O dinheiro serviu para pagar a minha dívida… Temos aqui algum, mas não todo.
A rapariga deu uma volta sobre si própria, arranjou o cabelo solto e declarou:
- Não quero saber… Ou o gado ou o dinheiro.
A algazarra acordara mais alguém na casa pois no cimo da mesma escada onde estivera a jovem surgira uma senhora alta, magra e de negro vestido.
- Mas que discussão é esta logo pela manhã! Parece que estamos na feira de S. Romão…
Aproximou-se da aldeia em passo lento. Havia mais de uma semana que havia partido por não querer ver o pai naquele definhamento etílico. Agora não queria estar na estrada para não ser sempre apanhado pela rapariga. Uma dúvida triste e amargurada que lhe enublava os dias.
Meteu o gado no curral, fechou-o e encaminhou-se para casa. Sapatos saltitava a seu lado numa costumada brincadeira. Ao aproximar-se o jovem pastor deparou com a mãe sentada no degrau da porta e parecia chorar. Apressou o passo e chegado a casa olhou a mãe lavada em lágrimas.
- O teu pai… o teu pai…
Pensou o pior. Entrou de rompante, mas não viu ninguém. Percorreu a casa pequena e não viu o antecessor. Finalmente aproximou-se da mãe que continuava:
- O teu pai… o teu pai…
- O meu pai o quê?
Respirou fundo, fungou, assoou-se ao avental e declarou:
- O teu pai vendeu o rebanho…
- Vendeu o quê?
- O rebanho… Todinho…
- Mas como se só cheguei agora com ele. Não pode ser…
- Para ir para a taberna gastar tudo no maldito vinho… estamos desgraçados…
E voltou a carpir. O pastor percebeu num instante o que havia acontecido e decidiu por um fim naquela estória. Arregaçou as mangas e partiu em busca do antecessor. Ao aproximar-se da taberna percebeu lá dentro enorme algazarra e onde o cheiro a vinho, suor e tabaco se misturavam em partes iguais, criando um ambiente pesado e nauseabundo.
Irrompeu pelo estabelecimento, qual bode enraivecido, foi ao encontro do pai encostado ao balcão que nem o vira entrar e pegou pela gola do casaco e sem dizer uma palavra arrastou-o para o empedrado da rua. Principiava a cair uma chuva forte o que fez com que ninguém os seguisse. A turbulência sonora no minuto antes fora substituída por um silêncio fúnebre. Apenas o irmão do bêbado apareceu para tentar levantar o irmão. Todavia o filho não autorizou.
- Deixe-o… Não lhe toca… A conversa é comigo e com ele… Não se meta…
O outro recuou deixando-os sós.
A chuva caía agora com força. O jovem pegou novamente no pai e levou-o até à fonte onde mergulhou a cabeça no tanque de pedra. O pai estrebuchava, mas a pujança e a raiva do jovem não o deixava vir fora de água. O filho tirou-lhe finalmente a cabeça de dentro do tanque e gritou-lhe:
- Vai desfazer este negócio e é já!
Ainda preso ao álcool o pai respondeu ofegante:
- Não posso… já me pagaram…
- Quero lá saber… Vamos agora falar com quem comprou e devolver o dinheiro.
- Já não tenho todo… devia na taberna…
- Já lhe disse que não quero saber…
E mergulhou a cabeça do pai novamente no tanque.
Quando finalmente pode respirar, o velho iniciou a vomitar. O chão alagava-se agora de tons de vinho, que a chuva ia lavando. Enfurecido o pastor encaminhou-se para a taberna e ficando à porta vociferou:
- Cambada de sacanas… a valerem-se da desgraça dos outros… Gostam de estórias, gostam? Têm aqui agora uma… - e apontou na direcção do pai - Mas esta é triste e são vocês que a irão contar… Se forem capazes…
Aquele Inverno parecia querer entrar pela Primavera tais eram os dias de chuva permanente e frio glaciar. As noites no largo eram assim triste e obrigatoriamente curtas. Para uns pela ausência daquelas estórias que o jovem pastor todos os serões inventava, para o autor pois era sinal de regressar a casa onde o pai permanecia cada vez mais tempo sem falar com a família, mantendo, contudo, um diálogo surdo com o garrafão de vinho e o copo que alternava entre cheio e vazio. Havia semanas que perdera o emprego por causa de uma bravata com o chefe. Agora deambulava pela aldeia e arredores. Uns confessavam que ele só queria vingança, outros que iria por termo à vida, outros ainda olhavam-no de longe e desdenhavam…
Quando finalmente surgiu o sol e a erva nasceu com mais vigor, o pastor partiu para mais uma das suas longas e distantes viagens. Com a sua normal juventude esquecera-se por completo da rapariga que tantas vezes o atentara. Todavia quando chegou ao cruzamento lembrou-se dela e preferiu não passar pelo meio da Quinta. Poderiam ocorrer novos encontros e ele não estava para aí virado.
Todos os rios, ribeiras e charcas brilhavam agora de água. Passou então perto de um regato onde o gado matou a sede. Sentou-se então por debaixo de um sobreiro, recostou-se a este e fechou os olhos. Sabia que Sapatos colocaria o gado no caminho da charneca assim que deixassem de beber e por isso descansou.
De súbito pareceu-lhe ouvir alguém a falar. Ergueu-se do seu lugar e rodando sobre os calcanhares foi tentando perceber donde viria a voz. Não viu ninguém.
O gado havia entretanto partido e por isso o pastor apressou o passo de forma a apanhar a cauda do rebanho. Começou por ver algumas cabeças brancas, para no meio ver outra que não era certamente de uma ovelha e de nenhuma cabra.
- Mas que coisa vai ali?
Apressou mais o passo para quase no instante seguinte descobrir a jovem menina que de vez em quando lhe aparecia sem que ele esperasse.
- Olá… - saudou ela numa voz viva e alegre.
- Olá – respondeu o pastor de modo rude, contrariado.
- Sabes… - acrescentou a jovem – estou muito zangada contigo.
- Porquê?
- Oh tu sabes porquê…
- Sei lá eu! Raramente lhe falo.
- Pois não, mas devias falar mais. Talvez perdesses esse medo ao falares comigo. Eu não faço mal…
- Ninguém faz até à primeira vez…
- Ai sim… e quando é que te fiz mal?
O jovem engoliu o silêncio e não respondeu. Todavia a jovem continuava a tocar os animais quase com sabedoria. O canito Sapatos aproximara-se do dono e caminhava a seu lado. Andaram assim em silêncio quilómetros, até que o pastor decidiu:
- A menina que me quer? Não me larga…
A jovem rodopiou no chão de terra enlameada e finalmente respondeu:
- Agora… nada! Mas um destes dias sei lá… Posso precisar de um pastor novo na quinta.
- Tire daí o sentido que não largo este gado… Nem pense… Preferia morrer.
- Está bem… é justo… Então quanto queres pelas tuas ovelhas? Eu compro-tas todas…
O guardador sem dar sinal baixou-se, apanhou uma pedra, calculou-lhe o peso e arremessou-a para longe. Aquela foi cair num pequeno charco fazendo um som característico ao bater na água funda. Depois respondeu:
- A menina, desculpe-me mas não tem dinheiro para as comprar…
Os dias corriam moles e lentos para o Outono. A espaços caía uma água constante, baça e chata. O gado não se preocupava com a pluviosidade e ia rapando terrenos de erva fresca e tenra. Por seu lado o jovem pastor fugia pouco da sua tarefa de guardar as ovelhas e algumas cabras, entre os muros das suas fazendas.
A imagem da amazona bonita e persistente acabara por desaparecer e agora a única preocupação do guardador seria os futuros borregos prestes a vir ao mundo.
Todas as manhãs percorria o estábulo em busca de uma cria nova e se a achava procurava saber onde estaria a mãe, quase sempre perto. Depois ajeitava o teto da monja da ovelha na boca do filho e este depressa ganhava o jeito.
Quando não havia crias abria os portões e deixava que os animais saíssem com calma, mas sempre liderados por Sapatos que as encaminhava para o terreno certo.
Era uma vida calma, sem correrias nem apoquentações. Talvez a única preocupação seria inventar a estória para a noite. Mas bastava uma pedra bizarra no leito do ribeiro, um gesto ou uma brincadeira de uma qualquer cabra e logo o rapaz inventava mais uma aventura para contar ao serão.
À noite após a mesmíssima ceia de todos os dias, o contador de estórias acercava-se do largo, sentava-se na velha e puída pedra e antes de começar a falar alguém lhe fazia a pergunta sacramental:
- O que bebes hoje?
- Nada, obrigado… Tu sabes que eu não bebo…
- Pois é, esqueço-me, qu’é tu queres?
- Bom cá vai…
De repente uma voz entrou-lhe pela cabeça e veio atormentar-lhe o espírito:
- Já ouvi dizer que és um bom contador de estórias…
Ergueu então o olhar e percebeu, para seu enorme espanto, a figura esbelta da menina que no Verão o havia atentado mais que uma vez. O pastor por breves instantes pareceu perder a compostura, mas olhou o Sapatos que dormitava a seus pés e por fim iniciou o relato.
A jovem sentara-se entre dois ouvintes atentos e parecia estar imbuída do mesmo espírito dos demais, escutando as aventuras falsas, mas bem faladas pelo jovem pastor.
O enredo parecia desta vez ser mais complicado e tortuoso tal era a revolta de pensamentos com a presença da jovem, mas num ápice o contador desembaraçou-se do novelo criado matando quase as personagens e pondo um fim apocaliptico à história.
Os ouvintes ficaram tristes e um a um foram abandonando o lugar. A maioria regressou a casa, todavia alguns foram para a taberna afogar as tristezas da estória em copos de traçadinho e bagaçosy. No largo ficou apenas o casal jovem. Afastado…
A jovem tomou a iniciativa de se aproximar e perguntou:
- Não tens estórias de príncipes e princesas?
O pastor percebeu um breve sorriso trocista e após um anormal e longo silêncio respondeu:
- Tenho… Mas as princesas são más e o príncipes pior ainda…
Quando à noite, após a ceia fraca e repetida donde se destacava o permanente feijão pequeno regado com um fio de azeite, entrou no largo repleto de homens sentiu-se diferente das noites de outrora. Havia ali algo que não o faziam sentir-se confortável. Todavia…
- Ena, já chegaste? Mas eu vi-te ontem…
- Sim cheguei ontem.
- Nem apareceste…
- Estava muito cansado… Preferi ir dormir.
- Agora também dormes? -perguntou um outro dando uma sonora gargalhada.
Os outros imitaram-no nos risos.
- Queres o quê para beber?
- Oh nada… eu não bebo… Tu sabes…
Depois arranjou um lugar entre dois e sentou-se. Recostou-se e fechou os olhos. Os presentes olhavam-no com espanto até que alguém avançou:
- Então não trouxeste nenhuma estória?
O pastor sentiu uma certa melancolia a invadi-lo e pensou contar a estória verdadeira em vez de usar a imaginação. Respondeu:
- Claro que tenho…
E iniciou a relatar os seus últimos acontecimentos. Ainda estava no início quando um dos ouvintes declarou.
- Essa não tem piada… Conta uma das outras…
O rapaz quase que riu… Então… a eles não interessava uma estória verdadeira, mas somente um relato com acontecimentos impossíveis, figuras inexistentes e finais felizes. Tudo o que pudesse corresponder à realidade não interessava.
Eis que o jovem inicia a sua nova aventura. Inventando cada situação, cada diálogo, cada demanda o pastor angariava cada vez mais ouvintes que o escutavam com profunda atenção vivendo cada relato como se ele tivesse sido verdadeiro.
Sempre que o caso tinha um final feliz, havia alguém que pagava a rodada. Daí muitos dos ouvintes tentarem introduzir no relato uns elementos que originasse mais finais felizs. Todavia o autor nunca o aceitava para enorme desespero de alguns.
Quando terminava dizia:
- E foi assim que tudo aconteceu. E amanhã há mais!
Mas naquela noite alguém se aproximou dele e apresentando-se acabou por questionar:
- Donde tiras essas estórias? São curiosos os teus relatos…
O guardador, perante a pergunta, tentou desaparecer por entre a multidão masculina que para ali viera para o escutar, mas o mais que conseguiu foi fugir apenas uns metros para ser rapidamente alcançado por um braço.
- Desculpa a ousadia, mas sabes ler?
- Porque quer saber?
Não ligando à questão continuou:
- Se não sabes ler também não sabes escrever. Mas as suas estórias têm uma genuidade única. Se quiseres levo-te comigo, gravo umas histórias tuas e depois publico-as em livro. Pode ser?
O pastor não percebera patavina do que o outro dissera, mas como tinha pressa para chegar a casa disse simplesmente que sim.
O regresso do pastor à aldeia foi saudado com enorme alegria pela mãe e pelos irmãos mais novos, que viam no guardador um viajante do mundo, mal imaginando que o jovem apenas se afastava da aldeia algumas léguas.
Mas coração de mãe é único e depressa percebeu que o seu infante mais velho viera diferente. Ele que sempre conseguia ver alegria em tudo o que fazia, regressara soturno, tristonho, como se aquela não fosse a sua casa.
Após a ceia deitou-se sem fazer a sua costumada visita ao largo onde alguns o aguardavam e às suas novas estórias. No quarto pequeno já dormiam os irmãos, mas o jovem ficou desperto noite fora.
Na madrugada seguinte levantou-se muito cedo como era seu hábito, roubou um bolo seco da arca, chamou o seu amigo Sapatos, que dormira na ombreira da porta e foi até ao curral buscar o gado e partindo de seguida para as terras de casa.
Atravessou a ribeira que já levava algum caudal após uns dias de água forte e procurou um lameiro perto. Aí chegado largou o gado e foi sentar-se numa pedra gasta que ficava virada para o ribeiro. A seu lado deitou-se Sapatos, o inseparável cão branco de patas pretas. Depois foi descaindo pela pedra, descalçou-se e enfiou os pés sujos na água límpida e fria.
Por ali ficou longo tempo, com o pensamento longe, muito longe dali. A tempos olhava o gado sempre irrequieto e deva instruções ao canito que cumpria cm rigor e saber.
- Não as deixes ir para o rio… vai… vai… tira-as daí!
Voltou então aos pensamentos até que:
- Bom dia, alegria!
O jovem ergueu o olhar para a maviosa voz feminina e deparou com a menina dos outros dias. Admirado, confuso, estranhou a sua presença ali, respirou fundo e acabou por responder:
- Bom dia… menina!
A cachopa, desempoeirada, levantou um pouco e vestido e atravessou a vau o regato, molhando também ela os pés e a franja da saia. Do outro lado o pastor tremia de… nem sabia bem… se de medo, vergonha… não sabia. A jovem ajeitou-se então e sentando ao lado do rapaz, introduzindo os pés na água, disse:
- Pareces triste por me veres…
Após um mui breve silêncio masculino:
- Nem triste nem contente…
Depois:
- Como me descobriste aqui?
- Falei com a tua mãe… Calculou que viesses para aqui com o gado…
As faces do pastor ficaram rubras, mas manteve o silêncio e a compostura. Ela continuou:
- Gostei muito da tua mãe e dos teus irmãos… Não conheci foi o teu pai!
Não acusando a ousadia dela, o jovem guardador acabou por perguntar:
- Não estás muito longe de casa?
- Estou, mas o Sebas leva-me para casa depressa.
Encolheu os ombros pois não sabia quem seria o Sebas… Provavelmente algum criado, pensou.
Sapatos ladrou repentinamente. Duas cabras haviam saltado o muro e pastavam no terreno vizinho. O pastor deu um salto e mesmo descalço correu para as cabras conseguindo ao fim de um pedaço colocá-las novamente no seu terreno. Voltou à ribeira e aí lavou os pés negros de terra. Respirou fundo.
Perguntou ela, afoita:
- Não tens nenhuma namorada?
Respondeu ele misterioso:
- Tenho, mas não vive cá…
Pela primeira vez o jovem pastor viu tristeza no olhar dela!
Sentado no cimo de um grosso penedo, o jovem pastor olhava para a bela paisagem que se abria na sua frente. Um pouco abaixo, na encosta, as ovelhas ratavam a erva rala após umas noites passadas de uma chuva miudinha.
No instante seguinte soou um assobio estridente. Gritou:
- Vai Sapatos, à esquerda…
Não necessitava dizer mais nada. O cão correu em grande velocidade, ladrando para recolocar as cabras na charneca. Algumas dispersaram, mas o animal com perícia obrigou-as a juntarem-se ao restante rebanho. Depois subiu a encosta e voltou a deitar-se perto do dono, ciente que este o premiaria com algo.
O guardador descascava uma maçãs ainda meio verdes e entregou duas ao amigo que comeu com sofreguidão. Mas o jovem não tirava os olhos do horizonte. Matutava.
Por fim desceu do penedo e caminhou pela encosta, atravessou o rebanho e finalmente desceu umas escadas de pedra para entrar numa velha mina de água. Aqui pegou no velho cantil e após o ter enchido bebeu. Entretanto o canito bebia do excedente que saía da mina.
Subiu a encosta, trepou ao penedo e ali voltou a ficar. A cisma adviera-lhe daquela cachopa que dias antes o havia interpelado. Que raio… que coisa… A figura não lhe desaparecia da mente. Depois olhou para Sapatos e perguntou:
- Sabes alguma coisa de mulheres?
O cão olhava-o com aquele seu olhar meigo, ergueu-se e ladrou. O jovem parecia ter entendido… E devolveu:
- Pois eu também não…
Olhou o céu e percebeu que ao longe uns novelos cinzentos que cresciam para o seu lado. Voltou a descer do enorme calhau e disse ao cão:
- Vai buscá-las Sapatos. Vem aí chuva e não me quero molhar. Vamos para o barracão velho e ficamos lá esta noite. Vá, põe-nas a andar.
O cão colocou-se a caminho e minutos depois já gado, pastor e cão fugiam da eventual intempérie. Ao longe começava-se a escutar o ribombar dos trovões, mas a chuva ainda não chegara. Foi no instante seguinte a ter arrecadado o gado no velho mas útil barracão que um relâmpago iluminou o fim de tarde dando início à trovoada.
Durante toda a noite a chuva tombou com persistência e relâmpagos e trovões sucediam-se quase em simultâneo.
Deitado na palha farta o jovem continuava taciturno. Sapatos percebeu e poisou o focinho na barriga magra do dono aceitando o carinho que o pastor lhe dedicava, naquelas festas insubstituíveis. Compromissos assumidos sem palavras. Dar e receber, somente.
Por fim o jovem adormeceu para acordar a meio da noite sobressaltado. Ergueu-se e ficou à escuta. A chuva continuava a cair, a que se juntava o balir doce das ovelhas… nada mais. Voltou a recostar-se na palha, colocou as mãos atrás da cabeça ficou a olhar o céu através duma velha e suja janela de vidro. Perdera o sono.
A manhã acordou fresca, mas luminosa. Os pássaros andavam já numa correria e as ovelhas principiavam a pedir comida através de um balir insistente.
Gado na rua, naco de broa e pedaço de queijo na mão dos quais retirava a côdea e cascas e dava a Sapatos e ei-los novamente a caminho… de qualquer lugar. A noite fora quase de vigia e por isso teve muito tempo para decidir:
- Sapatos, vamos regressar à aldeia. Vem aí o tempo frio…
Quando chegaram a uma bifurcação o jovem decidiu:
- Deixa, desta vez não vamos por aí, vamos passar à volta da quinta… Não quero ser outra vez apanhado.
Seria pelo menos mais um dia de caminhada, mas era preferível a ter de atravessar uma vez mais a quinta e arriscar-se a ser apanhado.
Dois dias depois, a quinta das Figueiras ficara lá muito para trás e o jovem assobiava uma melodia qualquer. A estrada de terra batida era pouco frequentada e daí usá-la quando desejava andar mais depressa.
Foi Sapatos o primeiro a dar sinal, para depois o próprio gado agitar-se e tentar resguardar-se como podia. O pastor colocou-se na frente quando percebeu que ao fundo da estrada uma nuvem de pó que se aproximava rapidamente.
- Sapatos encosta-as, vá, xô! – e ajudava com o cajado a manter o gado longe da estrada.
Já perto percebeu que era uma espécie de carroça com uma só pessoa e que cavalgava com velocidade. Todavia no momento seguinte o cavalo quase se ergueu no ar tal a força com que o obrigaram a parar.
- Olá pastor, por aqui?
Ela outra vez… O rapaz encostou-se ao cajado e mostrando uma calma que interiormente não tinha respondeu:
- Sim, mas acho que estes terrenos não são seus, pois não?
Tinha abandonado a aldeia havia alguns dias. Acompanhavam-no um rebanho de ovelhas e cabras. Estas últimas não obstante a natural irreverência mantinham-se no caminho com o restante gado.
No bornal carregava um naco valente de broa, um chouriço que surripiara da conserva de azeite da mãe e mais uma mão cheia de queijos, também eles guardados em azeite.
Era usual o jovem partir dias seguidos com o gado, nunca se sabia bem para onde. Dias ou semanas depois chegava com o gado gordo e ele magro, porém feliz.
Para além das ovelhas, o pastor fazia-se sempre acompanhar por um rafeiro todo branco excluindo as patas pretas. Daí o nome de “Sapatos” que desde muito cedo o canito percebera que era consigo que falavam. Animal esperto sabia tocar as ovelhas para dentro do caminho como nenhum outro. E nem era necessário o dono assobiar…
Quando regressava contava estórias fantásticas que ninguém acreditava, mas adoravam escutar. Geralmente faziam-no na praça do pelourinho onde, em noites quentes os aldeões se juntavam numa anormal algazarra, sempre acompanhados dos traçadinhos. A maioria deles contavam mentiras de caças e amanhos impossíveis. Discutiam teorias e filosofias. Riam em gargalhadas sonoras.
Entretanto quando o pastor chegava ao largo todos se calavam. Sabiam que viriam novos relatos, novas aventuras.
- Senta-te aqui, home’! Há quantos dias saíste?
Com um sorriso e uma calma que a todos enervava o jovem pastor ia devolvendo respostas, umas atrás das outras.
Daquela vez partira de madrugada aproveitando a maresia. Alguma erva ainda molhada encharcou as botas, mas ele não se preocupou. Continuou a sua marcha lenta. Parou ao fim de duas horas para escolher um dos dois caminhos que lhe apareciam. Conhecia-os ambos, todavia um deles passava por dentro da Quinta das Figueiras. Em tempos o dono autorizou-o a passar, somente, nunca a pernoitar. Na dúvida olhou o cão que se coçava essencialmente pelas serugas que se haviam enrolado no pêlo e perguntou-lhe:
- Para onde companheiro?
O astuto bicho arrancou dali e dirigiu-se pelo caminho da quinta. O pastor seguiu-o confiando no instinto animal.
Algumas léguas depois, penetrou nos terrenos alheios da tal herdade e por isso apressou o passo obrigando o gado a segui-lo. Estava já a sair quando de súbito surgiu vindo de algures um alazão carregando uma amazona de longos cabelos ao vento. Aproximou-se do rapaz, desmontou e cumprimentou:
- Boa tarde…
Sem receios, retribuiu o cumprimento:
- Boa tarde menina.
- Quem és tu?
- Oh… um pobre pastor com autorização do dono destas terras para aqui passar sem parar.
- E porque não páras?
- O patrão não quer… está no seu direito… Já faz um grande favor deixar-me aqui passar…
A jovem rodeou-o, mirou-o de cima a baixo e insistiu:
- Porque não páras aqui para descansar?
Demasiadas perguntas e ele sem vontade de responder. Mas…
- Porque quero chegar à charneca antes de anoitecer. Fique bem!
Assumiu o caminho.
- Sabias que o meu pai morreu?
- Não menina… O seu pai era o dono disto? – e apontou com o cajado a imensidão de terra que o horizonte deixava ver.
- Sim…
- Agora é a menina a dona…
- Certo! E por isso estás autorizado a ficar aqui…
- Não menina! Agradeço, mas tenho de ir!
Mas a jovem não o largou e remontando no cavalo caminhou devagar a seu lado. A determinada altura:
- Como se chama o teu cão?
- Sapatos!
Ela deu uma imensa gargalhada. Depois mirou melhor o canito e percebeu o nome. Voltou a rir com vontade.
Havia umas semanas que o pai havia morrido, mas faltara-lhe a coragem de pegar nas coisas que ficaram do antecessor e dar-lhes destino. Ou dividir entre todos os herdeiros.
Mas um dia teria de ser… Não havia volta a dar.
Decidiu naquele sábado regressar à casa onde sempre fora feliz, num convívio perfeito entre pais, irmãos, primos, tios, amigos… e tanta, tanta gente.
O pai adorava ter a casa sempre cheia de gente. E, ao invés de muitos, foi a partir da morte da esposa que a casa mais se encheu. Dizia:
- Quando morrer deixarei de me divertir e de ver esta minha gente. E se sou o que sou a eles o devo… filhos incluídos.
Meteu a chave na fechadura, rodou-a e esta destrancou-se. Rodou a maçaneta, abriu a porta, esticou o braço e acendeu a luz. O corredor iluminou-se mostrando algumas teias de aranha que haviam tomado conta do local. Pé ante pé como se tivesse receio avançou e foi abrindo as diversas portas que encontrou e foi outrossim acendendo as luzes.
Finalmente entrou na biblioteca onde os livros moravam naquele silêncio que só eles. Entre duas prateleiras um quadro a óleo da mãe. Lindo… pensou ela.
Na secretária de pau santo, herança de família, encontrou um candeeiro velho, mas clássico e uma série de papéis pouco arrumados. Sentou-se no cadeirão e passou cada papel com cuidado. A maioria eram pequenos textos sem sentido e sem um fim lógico.
- Ideias rabiscadas… - e sorriu!
Já quase no fim do monte encontrou um que a chamou à atenção e onde se podiam ler uns versos com muitas emendas e claramente incompletos. Ergueu-o e leu o que era possível:
Nos teus cabelos
Cor de trigo maduro
Há seda, cetim e doçura,
Alegria e resistência.
Nos teus olhos de mar
Reside uma liberdade
Que sempre lutaste
Até o teu sangue jorrar.
Se leres estas palavras
Não chores de tristeza.
Ri porque estou contente
Brinca porque fui feliz.
Todavia não resistiu às lágrimas quando no final leu:
À minha adorada filha Cremilde.
Ergueu os olhos para o tecto e exclamou:
- Obrigado meu pai!
Num ápice pegou em todos os manuscritos que encontrou, desligou as luzes, fechou as portas e saiu de casa.
Quando os irmãos, dias mais tarde, se reuniram para dividirem o património dos pais, Cremilde antes que todos falassem, levantou-se da cadeira e declarou:
- Do pai não quero nada…
- Não queres nada, como?
- Eu tenho algo dele que vocês nunca tiveram…
- O que é que roubaste de nós? – perguntou a irmã mais velha.
Cremilde rodou nos sapatos, baixou-se para ficar ao nível mais baixo e respondeu com a serenidade dos eleitos:
- Não roubei nada mana, apenas tenho algo que nunca terás e que se chama orgulho no pai que tive, na pessoa que ele foi. E isso ninguém me tira.
Um silêncio caiu sobre a sala e todos se olharam comprometidos. Por fim acrescentou:
- Quanto ao resto dos bens repartam entre vós! Boa noite!
Abandonou a sala, aconchegou ao peito a pasta com os papéis do pai e sorriu!