Neste momento escrever tornou-se quase um vício. Custa-me estar sem passar para o papel branco (por enquanto) aquilo que sinto. E como sinto.
Durante muitos anos achei que escrever era uma arte menor. Artistas, artistas eram os pintores, os músicos, os escultores. Porém fui apercebendo que este meu conceito traía com veêmencia a minha vontade. E assim quando um dia em Trás-os-Montes ouvi uma referência, achei que esse era o momento para recomeçar a escrever.
Com maior ou menor qualidade, tanto se me dá. Certo é que desde esse dia em que decidi reiniciar a escrever, mais de 30 histórias sairam deste pobre coração. Para além de outras colaborações contínuas.
Reconheço todavia que ainda não era bem isto que gostaria de um dia publicar. Alimento a ideia de escrever um romance, não daqules de fazer chorar as pedras das calçadas, mas um livro onde me revisse como um todo. A ideia surge-me como uma luz de farol. Mas não permanece o suficiente para iluminar o meu espírito vadio. Aguardo assim serenamente que essa luz surja para ficar e me guiar, não no caminho do sucesso, que esse é esporádico e volátil, mas no trilho da alegria e do prazer de fazer algo que se gosta realmente.
Durante muitos e muitos anos foi rabiscando uns textos em blocos, cadernos ou até alguns foram escritos à máquina de escrever. Hoje comecei a recuperar alguns desses textos. A maioria são pedaços tristes, mal escritos e a requererem revisão. Mas prefiro deixá-los assim (quase) como o original. Chamarei a esta rubrica "Do baú..." e inicio com um pequeno e pobre poema que já não me lembrava de ter escrito mas que agora faz todo o sentido.
Acordou estremunhado como se tivesse dormido séculos. Deu por si sentado numa enorme sala toda pintada de branco. Ao seu redor não havia ninguém nem outro assento. Olhou à volta e não conseguiu perceber onde estava. Em frente apenas os traços de algo que poderia ser uma porta. Mas para piorar o cenário viu-se vestido todo de branco. Uma espécie de túnica envolvia-o em tudo semelhante aqueles acólitos que vira numa missa.
A porta abriu-se finalmente e alguém também de branco aproximou-se de Elizário. Completamente calvo ainda assim tinha um ar simpático.
- Elizário Mota, suponho.
- C… certo! – respondeu o ilhéu.
- Irmão quer fazer o favor de me acompanhar…
- Sim!
Passaram a porta e do outro lado o florentino pode observar um enorme prado verde, salpicado aqui e ali por velhos e frondosos carvalhos.
Caminharam no prado alguns metros e quando Elizário olhou para trás já não viu a porta que lhe dera passagem. Com a curiosidade a morder-lhe as entranhas acabou por perguntar:
- Onde estou senhor?
- Irmão… aqui tratamo-nos por irmão. E eu chamo-me Alcibíades.
- Pronto… não queria ofender… irmão… Alcibíades!
Mas a resposta não chegara, portanto insistiu:
- Então onde estou?
- No Céu. Irmão!
- No Céu? Onde é que fica isso? Uma vez levaram-me ao Paraíso, mas ao Céu nunca fui!
- Mas aqui é o verdadeiro Céu… Onde estão as almas boas.
- As almas? Mas eu sou uma alma?
- O Irmão morreu, sabia?
- Eu não… Mas se morri como estou aqui a falar com… com o irmão?
- Porque neste momento é uma alma. E está aqui porque foi uma alma exemplar!
- Oiça… não brinque comigo… isto é uma partida, certo? – Perguntou Elizário já levemente irritado.
- Irmão… - devolveu Alcibíades numa voz calma e serena - Você morreu hoje e já entrou aqui. Há muitos que passam a vida a lutar para aqui chegarem e nunca conseguem.
Elizário botou a mão na cabeça e reparou que também não tinha cabelo. Depois continuou a andar em silêncio. Foi a vez do outro falar:
- Então é assim… aqui a nossa missão é tomar conta dos que estão na Terra. Assim o irmão tem uma de duas opções: ou retira alguém que conheça que tenha falecido e que possa estar no Purgatório ou no Inferno e virá para aqui ou então escolhe uma pessoa na Terra que irá guardar…
- Ó senhor… desculpe... Irmão… explique-me lá isso outra vez que eu não entendi.
- O Irmão Elizário conhece alguém que tenha morrido?
- Os meus irmãos, os meus pais, os cães e uma ovelha…
- Só pessoas…
- Pois… o meu pai e a minha mãe…
- E eles eram boas pessoas?
- Acho que sim… Pelo menos a minha mãe…
- E na Terra há gente que gostaria de cuidar?
A face de Elizário iluminou-se num sorriso.
- Claro que sim… as minhas meninas!
- Ora vê irmão… Agora é só escolher… Como um dia alguém o escolheu a si!
- Como diz Irmão? Alguém me escolheu?
- Exactamente…
- E quem foi, pode-se saber?
- Não… ninguém está autorizado a fazê-lo!
- Mas explique-me quando fui ajudado?
O outro tinha as mãos entrelaçadas nas costas, parou e olhando de frente para o açoriano declarou:
- A sua vida não foi fácil pois não?
- Não foi não…
- Até que um dia apareceu alguém e o ajudou?
- Verdade!
- E depois no hospital também esteve quase a morrer…
- Dizem que sim!
- Como vê alguém, a determinada altura, achou que o Irmão Elizário merecia uma nova vida.
- Mas quem terá sido?
- Não lhe posso dizer… definitivamente irmão!
- Acho que vou escolher as meninas para tomar conta…
- Com certeza Irmão. A partir de agora haverá uma nuvem por cima de si. Através dela poderá ver o que lhes está a acontecer e se for algo perigoso poderá naturalmente ajudá-las. Mas só uma de cada vez. Se as duas estiverem juntas terá de escolher apenas uma…
- Só uma?
- Só!
Agora sim, agora percebia o verdadeiro dilema de um pai.