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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

A cor e a dor

Vou brunindo esta minha alma

Com pedaços de bela memória.

Eram dias luminosos, de calma

Alegrias sem fim, horas de glória.

 

Folheio agora páginas de vida,

Bizantinas sinto-as finalmente.

Porque ora o dia é uma ferida

De uma primavera sem gente.

 

De que cor são as minhas lágrimas,

Que sempre deveria ter vertido?

Seriam pérolas de Brel, dramas,

Orvalhos matinais caídos sem ruído.

 

Há neste sentimento uma certeza,

De surdos gritos, suspiros e dores.

Sei, nesta hora de doentia tristeza,

Que é momento de colher as flores.

Contos tontos - 38

Sentado num cadeirão fundo Domingos olhava, com profunda tristeza, para a esposa deitada na cama repleta de tubos, máscaras, monitores e boiões que penetravam no corpo da doente.

A espaços curtos vinha um enfermeiro ver como estavam todas as funções, acertava algo e despedia-se da visita:

- Verá que vai recuperar depressa…

- Obrigado…

Parecia ter sido há breves minutos aquele episódio da entrada no seu gabinete como candidata à Direcção dos Recursos Humanos.

A porta abriu-se e deixou passar uma jovem alta, loira, muito bem vestida e extremamente bonita. Domingos fixou os olhos naquela figura e o coração pareceu rebentar.

- Não pode ser… ela! Mas… mas… é tão parecida… - pensou.

Estendeu a mão num cumprimento.

- Domingos Jerónimo, muito prazer. Faça o favor de se sentar.

- Diana Tremês, muito gosto!

A mão dela, delgada e fria, mostrava ainda assim uma firmeza incomum nas mulheres que ele conhecera. A entrevista correu bem e Domingos logo considerou que a pessoa tinha o perfil ideal para chefiar os seus projectos.

Na despedida foi a vez da candidata assumir:

- Desculpe dizê-lo mas a sua cara não me é totalmente estranha.

- Oh… talvez nos tenhamos encontrado por aí… numa qualquer conferência…

- Não... a minha ideia é muito mais antiga… Mas peço desculpa…

Quando a jovem abriu a porta Domingos chamou:

- Oiça Diana…

Ela estancou e fechou a porta.

- Faça favor…

- Eu sei quem é… - e olhando para a paisagem que se espraiava à sua frente da enorme janela, continuou – És a Diana, “A blondie”, como te chamávamos na escola.

Diana abriu a boca num espanto e acrescentou:

- E tu eras o Domingos mais conhecido pelo “gargalhadas”.

- Sim… – devolveu corando.

- Como o mundo se torna pequeno. E és tu o dono desta empresa?

- Sou… criei-a há uns anos.

- Fico feliz por ti… Mas não quero influenciar a tua escolha por causa do nosso passado escolar.

O jovem riu-se… Mal sabia ela a paixão que ele tivera por ela. Ele e muitos outros. Por fim puxou do seu tom mais sério e disse:

- Certamente. O nosso passado não terá influencia… Até porque tenho outros candidatos a concurso.

Ela aproximou-se da porta, abriu-a e declarou:

- Lembro-me que os miúdos gozavam muito contigo por causa dos teus risos e gargalhadas… Mas sabes… nunca mais ouvi ninguém a rir com tanta satisfação como tu.

A porta fechou-se atrás dela.

Não retirou a marca donde iniciara a leitura pois sabia que teria de reler aquelas páginas, mas fechou o livro. Ergueu-se da cadeira, aproximou-se da cama e espanto… a mulher estava acordada.

Pegou na mão devagar onde estava um cateter apertou-a devagar e sorriu. Ela tentou sorrir por debaixo da máscara de oxigénio. Depois com a mão livre retirou o acessório médico e declarou em tom rouca, mas serena:

- Vou ter tantas saudades desse teu riso e das tuas gargalhadas…

Recolocou a máscara e fechou os olhos.

Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii…

As minhas palavras

Leio e releio novos e velhos livros,

Páginas ricamente repletas,

De histórias, romances e lágrimas,

Cores, alegrias e esperanças.

 

Leio e releio recentes e antigos poemas,

Compêndios perfeitos de outros cheiros.

Pedaços de dor em palavras impossíveis,

Muitas luzes, sonhos, gritos e paixões.

 

Leio e releio incontáveis palavras.

Carregadas de garra, força e ensejos.

São nacos de vozes impossíveis,

Recheadas de ideias e saudade.

 

Das minhas… oh das minhas,

sobram unicamente os desejos.

Desafio de escrita dos pássaros #2.12

Mote: Cada um come onde quer e repete se quiser!

Elizário, ao invés do companheiro Niza, adorava trabalhar no campo. Pelo menos sentia-se em casa, se bem que a flora continental fosse um pouco diferente da Fajã onde fora criado.

Poucos dias haviam passado desde que chegara à aldeia saloia, que ele percebeu ficar situada nos arrabaldes de Lisboa. O patrão, tal como ele, nascera no meio de couves, batatas, milho e palha e desde muito novo aprendera a correr atrás de uma charrua puxada a mulas teimosas. De forma que sempre que a noite chegava era vê-los a conversar amenamente sobre tratos e amanhos. Por seu lado o alentejano num ápice cansou-se de andar de enxada na mão a alinhar regos e a mondar batatas e logo que pode partiu para Lisboa onde esperava, afiançava ele, ganhar nova vida. Um abraço de despedida entre os companheiros de armas fora um momento único.

- Cuida-te ó Flores…

- Tu também Niza…

Certa noite Joaquim Belmoço confessou à esposa:

- Vê lá que tive de ir ao Alentejo buscar um açoriano para me ajudar na terra, olhem qu’isto… só a mim.

- Homem, a vida dá tanta volta… - confirmou Almerinda.

Entretanto aproximou-se o Verão e Joaquim perguntou ao florentino:

- Então homem, quando pensas ir de férias?

- Ir de quê?

- Férias? Não sabes o que são férias?

- Não senhor! – respondeu confuso o ilhéu.

- Ó pá… tu não existes… Ora bem férias… - fez uma pausa tentando escolher as melhores palavras - são dias em que tu não tens de vir trabalhar.

- Não tenho de trabalhar? Como não tenho de trabalhar? Não brinque comigo, patrão! Ninguém faz isso…

Elizário não percebia, de todo. Belmoço esclarecia:

- São agora as novas leis… Quem trabalha tem direito a uns dias de férias!

Para o açoriano mantinha-se a dúvida e a incerteza.

- Mas o gado também vai de férias, senhor?

Belmoço deu uma sonora gargalhada, respondendo:

- Não, claro que não vai! Fica aqui!

Elizário acrescentou:

- O patrão sabe tão bem como eu que o gado tem de comer todos os dias…

- E cada um deles come onde quer e repete se quiser, não é? – avançou Joaquim mantendo um rasgadíssimo sorriso.

- Isso mesmo patrão… Os animais estão sempre com fome.

- Grande verdade…

Elizário encerrou-se estranhamente num profundo silêncio. Por fim, em tom brando e receoso, assumiu:

- Senhor, não me deixe ir de férias!

Desafio de escrita dos pássaros #2.11

Mote: Actualizem-me, por favor!

Desde que regressara do hospital o açoriano passara a ser mais moderado nos esforços. Essencialmente nestes... No entanto continuava a cuidar do quintal com afinco e porque não dizê-lo com uma ternura própria de quem amou um chão fecundo
A menina da casa aumentava de volume conquanto avançava na gravidez. O marido cuidava dela com esmero, carinho e muito amor. E Elizário sorria em silêncio pois admirava o que via.
Por aqueles dias lembrava-se da mãe já falecida, também ela constantemente grávida, mas que não recebia um avo de carinho do pai. Era a irmã mais velha quem acabava sempre por ajudar a progenitora nos afazeres domésticos.
Outros tempos, pensava o veterano, enquanto lia um livro sentado numa cadeira no fundo do quintal, debaixo de uma frondosa laranjeira, onde as couves galegas, os tomateiros e as cebolas cresciam ordenadamente.
O velho soldado aprendera a ler na tropa, mas fora ali naquela família que o acolhera sem saber porquê, que desenvolvera o gosto pela verdadeira leitura. Primeiro uns livros quase infantis entregues pelo jovem benfeitor, para depois crescer o desejo de ler coisas diferentes.
Na casa havia muitos livros numa sala que servia de biblioteca. Elizário adorava sentar-se num velho cadeirão e olhar os volumes bem arrumados.
Um dia a conterrânea entrou na sala e reparando no velho soldado disse:
- Pode ler o quiser. Escolha, esteja completamente à-vontade!
Depois chegou-se a uma prateleira, retirou um livro, mirou-o e com um aceno de cabeça de concordância entregou-o a Elizário.
- Comece por este… “O Conde de Monte Cristo”. Uma história antiga, que creio irá gostar.
- Obrigado menina! – agradeceu com aquela humildade simples que sempre o caracterizara.
Depois remeteu-se ao silêncio enquanto folheava devagar o livro. Algumas poucas gravuras ilustravam a obra e ele ficou a olhá-las com genuína atenção.
De súbito o futuro pai entrou na sala e com um sorriso rasgado solicitou:
- Actualizem-me por favor…
Sem saber o que dizer Elizário olhou a amiga em busca de socorro para as palavras. Foi ela que acabou por desvendar o assunto:
- Querido, estava a dizer ao futuro avô que estes livros que aqui estão são para serem lidos.
O florentino adorava aquele epíteto de avô. Mas como poderia sê-lo se nunca fora pai? Entretanto a futura parturiente continuou:
- Já viste o que lhe entreguei para ler?
Mostrou a lombada do volume ricamente encadernado e disse ele:

- Perfeito!

Desafio de escrita dos pássaros #2.10

Mote: Não tenho tempo para te aturar.

- Não tenho tempo para te aturar.
- Hããã
- Já te disse... chispa daqui...
Niza olhava a mulher e alternava o olhar com o amigo Elizário.
- Mas o que é que te aconteceu? - perguntou o alentejano.
A mulher apanhava uma roupa estendida e dava pouca atenção ao recém-chegado.
- Tu és mouco? Já te disse para ires embora. Vai à vida que a morte está certa...
Mas o outro não estava com ideias de desistir e teimou:
- Endoideceste? Escapei à guerra e em vez de me receberes de braços abertos repudias-me?
Ela nem respondeu. Niza voltou-lhe então as costas e dando uma palmada em Elizário, acabou por confidenciar:
- A minha irmã deve ter perdido o juízo. Só pode...
O açoriano apaziguou:
- Tem calma... deves ter feito alguma...
- Eu? Há três anos que saí daqui.
E virando costas decidiu:
- Vá vamos embora… Regressemos a Lisboa.
O florentino não gostou da ideia e olhando para o homem que lhe dera a boleia comunicou ao companheiro de armas:
- Eu não saio daqui…
- Ai homem não me faças isso…
- Niza… eu só sei trabalhar no campo e tratar de animais… Não sei viver em Lisboa.
- Elizário tu não te ponhas com ideias que eu aqui não fico…
Encaminhou-se então para a boleia que os levara até àquele lugar. Subiu os degraus para a cabine e deixando a porta aberta chamou pelo amigo:
- Anda homem… Aqui não aprendemos nada!
- Não preciso aprender, preciso ganhar a vida… - respondeu.
- E achas que é aqui que o vais conseguir? Se assim pensas ainda estás mais tonto do que eu imaginava…
Elizário olhava ao redor e via uma aldeia onde o branco e a luz solar parecia preponderante. Ao invés da sua aldeia onde a chuva e o nevoeiro eram uma constante durante quase todo o ano. Depois na capital não havia nada que o estimulasse a regressar. Ali provavelmente arranjaria uma horta e alguém que lhe desse trabalho…
- Desculpa, mas não vou com vocês… Prefiro ficar aqui…
No meio deste diálogo surgiu uma terceira voz:
- Não tenho o dia todo para estar aqui. Está a fazer-se noite e quero chegar a casa ainda hoje… Venham comigo que eu dou-vos trabalho em Lisboa.
Elizário surpreendido com a oferta, olhou o homem e pela primeira vez em muitos meses, mostrou um sorriso sincero.

Desafio de escrita dos pássaros #2.9

Mote: Tive uma ideia!

Após o logro que fora a madrinha de guerra, Elizário regressou ao quartel para ser desmobilizado e eventualmente regressar à sua ilha. Todavia preferiu ficar na capital onde calculava que a vida lhe sorriria. Pelo menos era o que lhe afiançava o seu companheiro de armas, o Niza, que alimentara também a ideia de que ficar na capital seria melhor que regressar aos confins da aldeia onde nada havia de diferente.

Só que o açoriano não sabia viver na cidade. Com o parceiro de armas alugou um quarto reles enquanto procuravam trabalho. De vez em quando caçavam um biscate aqui outro ali, mas nada seguro e que lhes desse algum futuro.

Quando acabou o dinheiro foram viver para a rua… Deambularam pela cidade efervescente duma revolução que supostamente devolveria muito aos mais pobres. Porém continuaram em busca de um Sol que parecia não ter nascido para eles.

Niza era vivaço, ladino e conseguia, quase sempre, algo das pessoas. Elizário mais soturno apresentava normalmente um ar triste, acabrunhado. E foi com este ar que o açoriano lançou mão da esmola alheia. Preferia trabalhar, mas qual quê… não conseguia.

A primeira noite passaram ambos num vão de uma escada de um prédio velho e abandonado. Acordaram aos primeiros raios de Sol com o corpo dorido e mal dormido:

- Isto não pode ser – afirmava Niza com convicção.

- O que é que não pode ser?

- Dormirmos assim ao relento… Fomos soldados, lutamos por este país e agora…

Uma velha boina passou a receber os parcos tostões que alguém lá colocava, mas, ainda assim, quase sempre insuficiente para as necessidades mínimas de cada um.

Os dias passavam muito devagar. Escutava-se na rua que as coisas iriam melhorar muito em breve, mas Elizário via pouco luminoso o seu futuro.

Um dia perto das docas viu um cargueiro atracado, parecido com o que o trouxera das Flores. Abordou um dos tripulantes para perceber se poderia regressar à sua terra com eles, mas pediram-lhe algum dinheiro que ele não tinha. E também não tinham necessidade de mão de obra.

E assim Elizário viu com tristeza a esperança de regressar à sua terra, zarpar Tejo fora!

Foi nesse mesmo dia que Niza também já cansado, sujo e esfomeado confessou a Elizário:

- Tive uma ideia!

- Ai… – receou o florentino.

Duas horas mais tarde estavam ambos sentados na cabine duma carrinha a caminho do Alentejo.