Sentado no peal de um prédio devoluto e que clandestinamente o albergava, Elizário mantinha a caixa de papelão no chão com uma simples moeda, sempre à espera que alguém se condoesse e deixasse uma redondinha, como ele gostava de lhe chamar.
Passara mais de meio século desde que partira da sua terra num velho navio de carga para vir cumprir o Serviço Militar Obrigatório para o Continente.
Saíra da Fajã de Santo Elói dois dias antes, pois a subida até ao cimo das Lagoas era obra dura e requeria persistência. Um naco de broa, um de inhame frito e uma botelha de vinho era tudo quanto carregava consigo quando trepou pela encosta íngreme por carreiros estreitos e perigosos enquanto olhava atrás de si o mar azul e infindável.
Certo dia perguntara ao Padre Josué o que havia depois do mar. O Padre teve dificuldade em responder a alguém que nunca soubera ler nem escrever quanto mais saber outras ciências.
Elizário não percebera a resposta, mas ali de cima via cada vez mais mar dando razão à sua ideia de que para lá do horizonte não existiria mais nada... senão mar.
Chegou à vila no dia seguinte e procurou no pequeno porto o navio que o levou. Embarcou para o fundo de um convés mal cheiroso e onde encontrou outros ilhéus.
- Viva boa tarde…
Acordado das suas tristes e longínquas memórias o açoriano não respondeu até que insistiram:
- Olá boa tarde... como se chama?
- Está falando comigo, senhor? - nunca perdera a forma delicada de falar da sua ilha.
- Estou sim. Como se chama?
À terceira lá veio o nome:
- Elizário, senhor!
- Não tem família?
- Nã' senhor!
Assentara praça num qualquer quartel e depressa partira para África ainda a tempo de apanhar o auge da guerra. Não a temeu. Pelo menos ali, tinha que comer, vestir, calçar e uma cama para dormir, em vez da enxerga pobre e peçonhenta que partilhava com um rancho de irmãos. E depois a morte sempre fora algo com a qual convivera toda a vida. Havia sido quatro irmãos, um tio, uma avó ou simplesmente muitos dos seus famintos companheiros que por entre inhames e milho corriam atrás de algum coelho descuidado.
Mas o seu maior receio fora mesmo o regresso à metrópole. Desse tempo padrasto guardou para sempre um pensamento: Acho que esta coisa não vai correr bem!
Naquele canto da taberna, Armandino e Izidoro falavam em surdina. Combinavam “umas coisas”, disseram eles ao Adérito quando este se tentou intrometer.
- A noite está fechada com nuvens, não há Lua… calha mesmo bem… - afirmava um.
- Então e o Lambranca? – duvidava o outro.
- Não te rales que hoje é sábado o dia da tosga da semana.
- Mas mesmo assim tenho medo!
- Não tenhas, Izidoro… Está tudo controlado. Amanhã tens laranjas na mesa e das boas!
- E se alguém desconfia? – insistia – Não quero chatices com o senhor José Joaquim que foi padrinho do meu pai…
- Ninguém vai saber! Daqui a nada cada um sai e encontramo-nos ao pé da oliveira velha. Quando chegares tosse, se me ouvires tossir entramos juntos pelo portal. Temos é de desviar aquela cancela de madeira. De acordo?
Izidoro puxou uma fumaça do cigarro, beberricou o resto do vinho quase azedo e confirmou com a cabeça.
Era a primeira aventura para roubar as laranjas do velho Joaquim. Todavia o problema mesmo era o seu capataz Lambranca, homem de espírito irascível, velhaco e pouco condescendente com quem roubava o patrão.
Conta-se, sem qualquer confirmação, que o Jesuíno desaparecera às mãos do capataz, só porque armara umas laçadas para tentar apanhar um javali na fazenda do outro. Mas ninguém tinha certeza de nada.
Perto da hora combinada Izidoro paga a sua despesa e sai. Encaminha-se para casa em busca de um saco. Por sua vez Armandino fica mais uns minutos, não fosse a malta desconfiar da saída simultânea.
Depois também ele abandonou o tasco despedindo-se de todos.
- Já vais? Olha que ainda é cedo…
- Tens razão Adelino, mas sinto que estou a chocar alguma. Vou até à deita a ver se isto passa.
- Ó Armandino, arrefinfa-lhe um bagacito com mel antes de te deitares - Sugeriu um.
- Um bagacito sim mas quente… - referiu outro.
Num ápice instalou-se a confusão na taberna. Momento ideal para Armandino sair dali.
Entrou na noite fria, já que soprava uma brisa cortante. Virou no sentido de casa, mas assim que saiu do alcance da vista da taberna virou por um carreiro estreito. Valia-lhe conhecer bem o caminho já que a lua continuava sem aparecer em toda a sua plenitude. Caminhou uns bons minutos até chegar perto do lugar combinado com Izidoro. Assim que chegou aguardou que o parceiro tossisse. Escutou finalmente o sinal, respondeu com a sua tosse e rapidamente se encontraram perto do portal fechado.
Evitando fazer barulho retiraram as tábuas e finalmente entraram na fazenda. Devagar aproximaram-se da laranjeira carregada de frutos grandes e maduros.
O chão apresentava-se repleto de fruta que caira e que ninguém apanhara. Um desperdício comentavam muitos. Depois calmamente começaram a apanhá-las. Quase em surdina Armandino sugeriu:
- Vou tentar subir e filar as lá de cima. São maiores e mais saborosas. Tu fica atento não vá alguém aparecer.
- Certo…
Estavam naquele despautério há algum tempo quando a Izidoro pareceu escutar passos. Armandino também ouviu. Este virou-se para o parceiro tentando fazer-lhe sinal de silêncio não obstante a escuridão da noite.
Os passos surgiam mais próximos. No instante seguinte pararam, para logo recomeçarem. Entretanto izidoro aproveitou uma aragem mais forte e fugiu da laranjeira, escondendo-se por detrás de um arbusto. Por seu lado Armandino ficara quieto em cima da árvore até perceber o que iria acontecer. Ambos temiam o Lambranca e daí a quietude.
A noite mantinha-se fechada num bréu incomum prevendo uma madrugada de chuva. Enquanto Izidoro se aninhava cada vez mais, o outro vulto entrara também no cerrado e caminhava lentamente e quase em silêncio. Sem saber passou à frente de Izidoro no preciso momento que duas nuvens se desentenderam e deixaram passar um pouco da luz lunar. Foi o suficiente para o furtivo perceber que a visita era nem mais nem menos que o João Rebola outro conhecido amigo do alheio.
Não sendo o temível Lambranca, ainda assim Izidoro manteve-se no escuro.
João longe de imaginar que não era o único à caça de laranjas aproximou-se pé ante pé da frondosa árvore. Chegou ao tronco por onde Armandino subira, estendeu a mão em busca de um ramo e… encontrou uma bota velha e rôta.
Um momento surreal: João engole um berro e sai do local a correr temendo que o outro seja o capataz. Armandino por sua vez e sem pensar atira-se da árvore abaixo e foge em direcção a casa, deixando nos picos da laranjeira parte da roupa e da sua própria carne.
Entretanto e passado os primeiros momentos Izidoro sai do seu esconderijo, pega no saco das laranjas que sempre estivera a seu lado, salta o muro, recompõe as tábuas e segue devagar para casa.
Promete a si mesmo não voltar à aventura das laranjas... nem de algo que não seja seu!
Muito mais tarde Armandino diria dele:
- Escapou sem nada porque teve a sorte de principiante.
A tela pictórica estendida à sua frente dava-lhe ares a qualquer coisa, mas não se lembrava bem do quê. E já ali estava há um par de horas a observá-la.
De quando em vez um visitante passava, olhava para o quadro e seguia. Outros, tal como ele, ficavam ali mais algum tempo. Sentavam-se ao lado de Malquíades, sorriam para este e raros eram os que partilhavam comentários, sempre em línguas diferentes.
O quadro fora pintado por Beatriz e encontrava-se em exposição numa das mais conceituadas galerias de arte de Barcelona, situada no bairro gótico quase paredes meias com o museu Picasso.
O movimento ao redor da galeria era imenso, essencialmente turistas que passavam, espreitavam, entravam e por fim ficavam espantados com a beleza das telas que a namorada de Malquíades pintara nos últimos anos.
Beatriz, já com uma evidente barriga de grávida, tentava explicar aos visitantes as razões de cada tela num inglês bem pronunciado. Por vezes surgia um ou outro que falava catalão, língua que a pintora também dominava. O problema parecia ser o francês ou o alemão…
Num pequeno intervalo Beatriz sentou-se ao lado do namorado encostou a cabeça a Malquíades e perguntou:
- Há quanto tempo estás aqui sentado?
- Não sei. Perdi a noção dos minutos.
- Gostas deste quadro? – apontando para a tela enorme.
O jornalista luso gostava especialmente daquela tela, mas continuava sem saber as verdadeiras razões da sua preferência. Respondeu à namorada:
- Este desenho é curioso, diferente…
Beatriz ficou em suspenso a aguardar as restantes ideias do namorado.
- A palete de cores com os respectivos contrastes, a profundidade do desenho, aquela silhueta baça…
- Tu davas um excelente crítico de arte – interrompeu Beatriz.
- Nem penses… Não tenho competências para tal…
E mudando rapidamente de assunto:
- Como está a nossa Eva? – e passou com doçura a mão bela barriga redonda da futura mãe.
- Está bem. E recomenda-se… Amanhã vou fazer outra ecografia.
- Vou contigo.
- Acho bem… Ah… ainda não te perguntei… Como foi andar de avião pela primeira vez?
Silêncio.
- Ui… já percebi que não correu bem!
- Correu, correu… Pensei que fosse pior!
Malquíades poisou o queixo nas mãos e perguntou:
- Mas o que será que me lembra este quadro?
Subitamente:
- Como é que se chama?
- “Luz e sombra”!
- Tem piada… este título é o último tema do “Desafio dos Pássaros”!
Após alguns pequenos avanços e muitos recuos na vida, Malquíades conseguira finalmente assentar num trabalho onde, estranhamente, se sentia bem.
A sua primeira opção de emprego como jornalista não havia corrido de forma iluminada. Diversos conflitos com colegas e maioritariamente com o chefe da redacção, fizeram com que abandonasse o jornal mais cedo do que gostaria.
Saltitou de emprego em emprego (chegou mesmo a concorrer a Pai Natal!!!), até parar naquela agência onde a sua única função seria… escrever. Ao que constava figuras mais ou menos públicas tinham blogues, mas eram os outros que escreviam os supostos textos. Para Malquíades a situação era confortável desde que lhe pagassem. E pagavam… principescamente.
O pior mesmo ocorreu quando lhe encomendaram um texto sobre um tema quase filosófico. O tipo que solicitara o trabalho à agência era um pequeníssimo “bloguer” de nome bizarro e que se confundia com uma bebida. O tema versaria: “Sobre a vida adulta: Ainda não entendi o que é para fazer”.
- Que raio de tema escolheu este tipo… - pensou o escritor a soldo.
Perguntou quantos dias teria para escrever…
- Mais ou menos 15 dias, mas convém que escrevas quanto mais cedo melhor, porque recebe-se mais algum… – confidenciou o chefe.
Sentado à secretária na sua casa e enquanto afagava docemente o Aissú, o jornalista ficou muito tempo a matutar. De súbito, como era seu apanágio, virou-se para o portátil e começou furiosamente a escrever. Ao cabo de uns bons minutos parou, releu o que redigira sobre o tema encomendado e um sorriso meio traquina aflorou ao rosto.
Tocaram à campainha da rua.
- Quem será a esta hora? – perguntou, visivelmente desagradado.
Malquíades abriu a porta para surgir na sua frente… Beatriz. Linda como sempre.
- Bia? Mas… mas… Não estavas em Barcelona numa exposição?
- Estava sim – pondo-se em bicos dos pés espetou um ósculo no namorado.
Depois entrou e sentando-se no sofá, chamou-o:
- Anda, senta-te aqui ao pé de mim que tenho uma coisa para te dizer.
- Mau… que se passa?
- Estás preparado para me ouvires?
Nunca estava, mas mentiu:
- Sim… sim… estou…
- Estou grávida… Vais ser pai… - confessou com um sorriso luminoso.
Malquíades sentiu-se gelar. Um rol de emoções no coração… Pai? Iria ser pai? Mas ser pai era coisa de…
Olhou para o portátil e percebeu que tinha muita coisa para alterar no texto acabado de escrever.