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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

A missa do Galo!

Pequeno conto de Natal dedicado à Isabel que escreve aqui!

 

Um choro forte que alastrou a toda a sala foi o primeiro sinal de vida.

O corpo ínfimo, frágil, ensanguentado surgiu nas mãos enluvadas do médico que logo o entregou à enfermeira que o limpou.

Aquele era um choro repleto de vida. André não evitou por isso que as lágrimas caíssem pela face jovem. Era uma sensação estranha ser pai… Tão estranha que nem sabia explicar o que sentia naquele preciso instante.

Ana descansava agora com o filho em cima do seu peito. Também ela chorou… de felicidade, alegria e acima de tudo de responsabilidade. A vida do casal sairia agora de uma nefelibata para um mundo mais assente e com mais ralações.

Já em casa ambos revezavam-se nos permanentes cuidados do inocente João, acabadinho de vir ao mundo. Até que Ana abordou o marido:

- Não comunicas à tua família o nascimento do Joãozinho?

Nenhuma resposta. Insistiu:

- Ouviste o que eu perguntei?

- Ouvi…

- Que vais fazer então?

- Nada!

- Os teus pais e as tuas irmãs deveriam ficar felizes em saber que há mais um elemento na família.

Rudemente devolveu:

- Tu e o menino é que são a minha única família.

Ana sabia da demanda que afastara o marido dos antecessores. Uma história bizarra com estranhas bravatas e palavras violentas que haviam originado a expulsão intempestiva de André de casa onde fora criado. Depois as cunhadas Lúcia e Júlia que nunca haviam defendido o irmão. Uma espécie de tragédia familiar sem qualquer sentido e que trucidara uma relação familiar.

Muito longe Alberto e Lucília viviam sós. Desde a aposentação de ambos que haviam optado por abandonar a cidade recolhendo-se na aldeia longínqua e pacata. Sem relações com os três filhos, o casal dedicava-se à horta e aos cinco canitos que lhes preenchiam os dias.

O Natal deixara de existir naquele lar. “Não faz qualquer sentido” dizia Lucília à cunhada Alcina. “Não tenho qualquer família a não ser vocês” assumia o velho Alberto ao irmão Fernando.

Por isso na velha casa, herança dos pais, morava uma tristeza cava, polvilhada de amargura. Eram duas almas sós que, naturalmente, evitavam falar do passado mais ou menos breve. Falando era como se mexessem num vespeiro.

Alberto alternava os seus dias entre a horta viçosa e o pomar colorido de laranjas, tanjaras, tangerinas ou dióspiros vermelhos. Só que a memória nunca desaparecia e muitas vezes, enquanto mondava as favas acabadinhas de nascer, deixava que as lágrimas caíssem pela face rasgadas por rugas de infelicidade.

Escondia portanto a sua amargura com o próprio afastamento da sociedade aldeã. Era raro vê-lo numa festa fosse ela pagã ou religiosa e muito menos no café. Ora, sempre que tinha de sair do povoado fazia-o pela calada da madrugada não fosse encontrar alguém.

Era véspera de Natal. A manhã clara e fria convertera-se numa tarde cinzenta e chuvosa. Uma nortada agreste descia da serra e gelava corpos e casas. Pelo fim da tarde Lucília perguntou ao marido:

- Hoje vamos à missa do Galo?

- À missa? Tu raramente vais à missa e hoje queres ir? O que te aconteceu, mulher?

- Nada homem…  Mas tenho o coração apertado de tanta tristeza que sinto que hoje far-me-ia bem ir à missa – confessou.

- Quem te proíbe? Vai!

- Também poderias vir…

- Não vou. Prefiro ficar em casa.

Lucília não disse mais nada. Eram perto das onze da noite quando saiu de casa para a igreja. O marido ficara já deitado a ler pela enésima vez “A Cidade e as Serras” quando a mulher se despediu.

Alcançou a igreja quase repleta e sentou-se logo atrás num dos poucos lugares vazios que encontrou. Havia muito tempo que não entrava ali. O silêncio daquele local sagrado pareceu esmagá-la.

Pensou em regressar, mas à sua volta sentaram-se mais pessoas que lhe foram sorrindo. Ela devolvia o cumprimento quase sem perceber.

Um conjunto de vozes iniciou a cantar. Os fiéis levantaram-se e o padre rodeado por uma série de acólitos aproximou-se do altar.

Lucília sentiu de súbito um toque de lado. Era o marido… Sem dizer nada encostou-se mais de forma a que Alberto se sentasse a seu lado.

Assistiram à missa como se fossem o mais normal casal da aldeia.

No final da cerimónia o pároco convidou, como era hábito, os fiéis presentes para que se aproximassem do presépio e beijassem a figura do menino. As pessoas juntaram-se então no meio da igreja e foram andando ao encontro do altar.

Lucília caminhava devagar. Seguia-a Alberto… contrariado! Passo a passo num calcorrear pesado como carregassem uma pesada cruz em cima dos seus próprios ombros.

Quando perceberam estavam ambos perante um presépio… vivo, feito de gente viva. De um lado André como se fosse José, do outro Ana qual Maria e no meio deitado num berço adaptado o menino…  João.

Desafio de escrita dos pássaros #15

Mote: O Pai Natal decidiu reformar-se e as entrevistas começam esta semana. Descreve uma dessas entrevistas na perspectiva do recrutador de recursos humanos: A Rena Rudolfo.

 

Coçou os apêndices corníferos que saiam da cabeça com as patas da frente e releu as respostas às simples questões formuladas. A candidatura “on-line” que exibia no seu computador fê-lo rir. Provavelmente para muitos esta ficaria logo excluída. Todavia Rudolfo apreciara a forma desempoeirada como o candidato respondera às perguntas.

Tem noção de qual será o seu futuro trabalho?

Hoje não sei, mas logo saberei.

Como se relaciona com as outras pessoas?

Não me relaciono. Os outros é que se relacionam comigo!

Acredita no Natal?

Acredito no que vocês quiserem.

Sabe o que é o espirito de Natal?

Sei… chama-se cartão de crédito.

Sabe quem é o Pai Natal?

Um tipo que se vendeu a uma empresa de bebidas que muitos bebem e poucos gostam.

Qual a razão que o levou a concorrer?

Estou no desemprego e necessito comprar ração para o Aissú, o meu canito.

Voltou a rir com gosto…

Chamou a “Corredora” uma rena que em tempos também guiara o Pai Natal por esses céus fora, mas que agora resumia a sua vida a ser secretária de Rudolfo.

- Diz…

- Chama este tipo cá… quero entrevistá-lo – e mostrou-lhe no computador a foto de Malquíades.

- É para já!

Passados alguns minutos a secretária bateu e entrou no gabinete. Foi avançando:

- O candidato perguntou se a entrevista poderia ser por Skype?

- Cá para mim… sem problema.

- Então marco para que horas?

- Sei lá… tenho aqui tantas candidaturas para ler… - Novamente as patas nas hastes – pergunta se às 5 será boa hora para ele.

- Marco então para as 5. Se ele não puder venho cá avisar então da nova hora.

- Boa.

À hora prevista Rudolfo ligou para um número e aguardou que atendessem. Tocou uma, duas e à terceira alguém atendeu. Malquíades surgiu no ecrán numa imagem meio difusa.

Rudolfo sem tempo a perder foi direito ao assunto:

- Sou o Rudolfo com a responsabilidade dos Recursos Humanos e estou aqui para o entrevistar. Tem alguma questão que pretenda fazer primeiro, antes de começarmos?

O director percebeu, mesmo à distância, o desconforto do entrevistado, mas aguardou que o jornalista dissesse algo mais. Finalmente ouviu:

- Desculpe poderia tirar a máscara? Não sei se já percebeu, mas o Carnaval ainda vem muito longe.

- Esta é a minha cara!

- Upps, então creio que a sua esposa não se tem portado bem, ultimamente!

Desafio de escrita dos pássaros #14

Mote: Não nasci para isto

Quando Malquíades entrou no restaurante encontrou Andrelino acompanhado por dois tipos que não conhecia. O amigo mal o viu ergueu-se e veio ao seu encontro de braços abertos:

- Ena homem, como estás? Faz tempo que não nos vemos…

- Viva parceiro…

Aproximaram-se da mesa:

- Adérito Candeias e Adail Marques.

- Boa tarde, muito prazer, Malquíades…

Andrelino não deixou que o amigo terminasse as apresentações:

- Senta-te aí.

Chamou o empregado e comunicou:

- Traga uma garrafa de água.

Deu uma palmada nas costas e atirou:

- Desculpa este convite para almoçar quase intempestivo, mas necessitamos da tua ajuda.

- Se eu puder…

- Claro que podes… Estes cavalheiros estão ligados à política como assessores. Todavia não conseguem manter uma relação próxima e pacífica com a imprensa, que como sabes está sempre ávida de notícias.

O jornalista mantinha-se em silêncio enquanto beberricava a água. O amigo continuou:

- Perguntaram-me então se conhecia alguém no meio jornalístico que os pudesse ajudar. E claro lembrei-me de ti…

Um dos convidados chegou-se à frente no diálogo:

- Muitas notícias que lemos carecem de veracidade. Outras são obras de verdadeiros zoilos que a única coisa que pretendem é denegrir a imagem de um político.

Malquíades passou a mão pelo cabelo, percebendo aonde pretendiam chegar. No entanto continuou a escutar as propostas.

- Deste modo gostaríamos que nos acompanhasse como assessor de imprensa… - convidou o outro.

O escritor olhou para ambos à sua frente e devolveu:

- Portanto o que vocês querem é uma censura encapotada.

Um deles veio a terreiro.

- Censura? Nem pensar. Estamos num país livre e democrático.

Malquíades olhou em seu redor, baixou o tom de voz como se quisesse esconder alguma palavra e por fim disse:

- Nenhum de nós aqui nesta mesa sabe o que foi viver em ditadura.

Após alguns breves segundos em que o silêncio reinou foi a vez de Andrelino regressar à conversa:

- Isto não é censura, mas unicamente controlar a forma como dão as notícias. Um exemplo: conheces aquele Desafio dos Pássaros?

- Sim…

- Como já deves ter notado cada um escreve algo diferente sobre o mesmo tema. Na política também é assim…

Três pares de olhos expectantes incidiram sobre o jovem, mas este declarou sem rodeios:

- Peço imensa desculpa, mas não contem comigo para tal função!  Definitivamente não nasci para isto!

Serenamente pegou no casaco e abandonou o restaurante.

Desafio de escrita dos pássaros #13

Mote: Reescreve o final dum filme

A confusão estava instalada na enorme sala de reuniões do jornal. O chefe da redacção, Pigmélio Antunes, coadjuvado por um dos editores, o Filinto Brandão, lançara no início da reunião um tema para a mesa que se tornaria palco de terríveis bravatas.

A ideia de um desafio no sentido de se reescrever o final de um filme até tivera estranha aderência. O pior viera depois quando uns consideraram que o filme deveria ser o mesmo enquanto outros desejavam um livre critério.

Enquanto as ideias eram bramidas em vez de civicamente discutidas, Malquíades olhava aquele espectáculo quase degradante, mantendo-se em silêncio no canto da imensa mesa.

Quando o chefe percebeu que perdera o controlo da discussão gritou de forma a fazer-se ouvir:

- Ó pessoal vamos ter calma, sim? Aqui o Malquíades ainda não expressou a sua ideia e eu gostaria de saber o que ele pensa deste tema.

As hostes acalmaram após o berro do chefe e todos poisaram o olhar no jornalista. Malquíades sentia-se mal naquela posição onde era o centro das atenções. No entanto também tinha uma visão e seria interessante proferi-la. Recostou-se na cadeira, abriu o seu velho caderno de apontamentos onde rabiscara umas ideias e disse então:

- Ao invés de vós considero este exercício uma verdadeira perda de tempo e de recursos.

Um burburinho atravessou a sala. Continuou:

- Como sabem os filmes são geralmente simétricos o que equivale dizer que para se reescrever o final de um filme, teria de reescrever também o seu início e provavelmente o meio…

Algumas cabeças acenaram que sim, outras que não, mas o silêncio de todos imperou. O jovem continuou:

- Percebo qual a ideia subjacente, todavia creio que haverá outras formas da redacção testar a qualidade da escrita e das ideias dos restantes redactores.

O editor entrou em defesa do exercício:

- Isto não é um teste à escrita de todos vós. Longe disso e nem faria qualquer sentido.

- Ah não?

- Não… é simplesmente um teste aos nossos leitores.

- Pior que seres incompetente é seres parvo!

Um silêncio cavo penetrou na sala. Uma mosca ouvir-se-ia a voar. O editor levantou-se da mesa irado, pegou nalguns papéis e saiu célere da sala. Outros redactores também afrontados seguiram-no. No fim Pigmélio observou:

- Não havia necessidade desta quezília. A ideia foi unicamente minha…

- Então o parvo és tu! – declarou Malquíades.

E abandonou também a sala.