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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Desafio de escrita dos pássaros #10

Mote: Já chegámos? Já chegámos?

O autocarro negociava as curvas dos Pirinéus a boa velocidade. O condutor, um italiano de metro e meio, dirigia a viatura com perícia, sem nunca perder o controlo.

A noite caíra há muito e uma chuva miudinha obrigava o motorista transalpino a uma condução mais defensiva. Uma paragem prevista numa estação de serviço deu para os passageiros esticarem as pernas.

Malquíades procurou rede para telefonar a Beatriz, mas a operadora espanhola parecia não estar disponível. Finalmente o sinal de rede. Ligou:

- Olá rapaz, onde estás?

- Algures no meio de Espanha.

- Não imaginas onde?

- Não!

- A que horas calculas chegar…

- Provavelmente só ao fim do dia.

- Não te esqueças de me trazeres caramelos…

Nem respondeu! Desligou o equipamento e foi à loja comprar os doces.

Decididamente tinha de perder o medo de andar de avião… Aquela viagem a Paris demoraria, pelo menos, mais dois dias só por causa desse estúpido receio.

Voltou para o autocarro, sentou-se no seu lugar, olhou o relógio e encostou a cabeça à janela de forma a poder dormitar um pouco. A viatura voltou à estrada. A seu lado sentara-se logo em Versailles um português minhoto emigrado há meio século em França. Fugira à guerra de África e ficara por terras gaulesas assumindo todo o tipo de trabalhos. Na altura era um jovem… agora com o peso dos anos aceitara a reforma e vinha a Portugal somente para tratar de uns assuntos de heranças. Demasiado tagarela para o gosto de Malquíades, este ia respondendo, quase sempre com monossílabos, às questões formuladas pelo chato companheiro de viagem que lhe calhara em sorte. O emigrante, entretanto, admirou-se por um jornalista viajar de autocarro…

Finalmente veio o sono a ambos e cada um ajeitou-se como pode de forma a dormir. Lá fora o breu mantinha-se, cortado aqui e ali pelas luzes de uma ou outra viatura.

Tempo e quilómetros atravessaram a península…

De súbito o companheiro de Malquíades gritou a plenos pulmões:

- Já chegámos? Já chegámos?

Os passageiros agitaram-se confusos, assim como Malquíades que acordou sobressaltado e num alvoroço impróprio na sua pessoa. Entre admirado e estremunhado perguntou:

- Já chegámos à fronteira de Portugal?

- Não… ainda não. Mas chegámos a Salamanca.

Uma fúria perpassou pelo olhar do jornalista. Respirou fundo e finalmente devolveu num tom áspero que denunciava irritação:

- Oh homem, pela sua saúde, cale-se e deixe-nos dormir!