Desafio de escrita dos pássaros #10
Mote: Já chegámos? Já chegámos?
O autocarro negociava as curvas dos Pirinéus a boa velocidade. O condutor, um italiano de metro e meio, dirigia a viatura com perícia, sem nunca perder o controlo.
A noite caíra há muito e uma chuva miudinha obrigava o motorista transalpino a uma condução mais defensiva. Uma paragem prevista numa estação de serviço deu para os passageiros esticarem as pernas.
Malquíades procurou rede para telefonar a Beatriz, mas a operadora espanhola parecia não estar disponível. Finalmente o sinal de rede. Ligou:
- Olá rapaz, onde estás?
- Algures no meio de Espanha.
- Não imaginas onde?
- Não!
- A que horas calculas chegar…
- Provavelmente só ao fim do dia.
- Não te esqueças de me trazeres caramelos…
Nem respondeu! Desligou o equipamento e foi à loja comprar os doces.
Decididamente tinha de perder o medo de andar de avião… Aquela viagem a Paris demoraria, pelo menos, mais dois dias só por causa desse estúpido receio.
Voltou para o autocarro, sentou-se no seu lugar, olhou o relógio e encostou a cabeça à janela de forma a poder dormitar um pouco. A viatura voltou à estrada. A seu lado sentara-se logo em Versailles um português minhoto emigrado há meio século em França. Fugira à guerra de África e ficara por terras gaulesas assumindo todo o tipo de trabalhos. Na altura era um jovem… agora com o peso dos anos aceitara a reforma e vinha a Portugal somente para tratar de uns assuntos de heranças. Demasiado tagarela para o gosto de Malquíades, este ia respondendo, quase sempre com monossílabos, às questões formuladas pelo chato companheiro de viagem que lhe calhara em sorte. O emigrante, entretanto, admirou-se por um jornalista viajar de autocarro…
Finalmente veio o sono a ambos e cada um ajeitou-se como pode de forma a dormir. Lá fora o breu mantinha-se, cortado aqui e ali pelas luzes de uma ou outra viatura.
Tempo e quilómetros atravessaram a península…
De súbito o companheiro de Malquíades gritou a plenos pulmões:
- Já chegámos? Já chegámos?
Os passageiros agitaram-se confusos, assim como Malquíades que acordou sobressaltado e num alvoroço impróprio na sua pessoa. Entre admirado e estremunhado perguntou:
- Já chegámos à fronteira de Portugal?
- Não… ainda não. Mas chegámos a Salamanca.
Uma fúria perpassou pelo olhar do jornalista. Respirou fundo e finalmente devolveu num tom áspero que denunciava irritação:
- Oh homem, pela sua saúde, cale-se e deixe-nos dormir!