Enquanto Beatriz devorava as “Viagens” da Magda Pais confortavelmente recostada num sofá e tendo a seus pés um Aissú atento e amigo, Malquíades sentado à secretária ia desfiando textos para o jornal.
Os dedos fugiam céleres por entre as teclas do portátil. Parava, relia, revia, modificava e continuava. De vez em quando passava as mãos pelo cabelo, sinal que dúvidas lhe haviam assaltado o espirito. Depois, numa quase ferocidade, voltava a escrever.
Era uma daquelas brandas tardes primaveris, sem nuvens e onde o sol quente invadia o lar através de uma janela e da qual se podia ver o pomar de laranjeiras, qual “orangery” no Palácio de Schönbrunn, em Viena. Uma paisagem bucólica carregada de beleza, paz e serenidade. Tal como ambos adoravam.
Beatriz fechou o livro, ergueu-se do sofá devagar e quase em silêncio, aproximou-se do namorado, envolveu-o naquele costumado abraço quente, beijou os cabelos desalinhados e quase em surdina perguntou:
- Queres um chá?
- Sim.
Entretanto o canito abriu um olho, espetou uma orelha para perceber onde iria a amiga, mas depressa regressou à sua sesta quando deu conta que a menina se dirigia para a cozinha. Se fosse a rua… Talvez mais tarde!
Duas chávenas fumegantes deram à sala um ar perfumado. Beatriz poisou uma ao lado de Malquíades e levou a outra consigo. Recuperou o livro e foi beberricando a infusão enquanto lia.
A tarde adormecia já no horizonte trazendo cores mescladas e dando à véspera um sabor morno. Beatriz saiu do seu lugar carregando o livro, aproximou-se da janela e encostada a esta foi recebendo o sol em cheio, continuando a ler.
Todavia, faltava ao momento uma musicalidade exterior que as janelas fechadas não permitiam. Portanto abriu uma para deixar que o ar da tarde penetrasse na sala tépida.
Da fora veio então um som característico de fim de dia… Um vento manso sibilava por entre a folhagem nova e viçosa enquanto bandos de pardais, pintassilgos, piscos, melros concorriam entre todos pela conquista do melhor poleiro para a noite que se avizinhava.
Disse Beatriz:
- Tenho pena que os quadros que pinto não possam ter som... ficava tão bem este aqui…
Malquíades encolheu os ombros num gesto de paciência e continuou a escrever. Por fim levantou-se, encostou-se à namorada observando a paisagem e exclamou:
- Definitivamente aqueles pássaros não se calam…
- Estes aqui? – perguntou admirada com o desabafo.
Mote: Um dia na tua família… do ponto de vista do teu animal de estimação
A luz da manhã incidiu nos seus olhos ainda fechados, acordando-o. Dormira bem! Espreguiçou-se e saiu da cama de forma calma. Voltou a espreguiçar-se…
Entrou no corredor e reparou numa roupa estranhamente espalhada pelo chão: umas calças de ganga aqui, uma blusa acolá, cuecas mais à frente, meias… e finalmente um soutien!
Pensou:
- Mas quem é esta que está cá hoje? Cada noite é uma diferente, pobre homem. Desde que a Beatriz se zangou com ele por causa daquela tal Constança…
Preocupado acabou por voltar atrás e foi-se novamente deitar. Enroscou-se e adormeceu.
Já ia alto o Sol quando ouviu chamar:
- Aissú, Aissú acorda… vamos à rua dar uma volta.
Abandonou novamente a sua cama devagar, aproximou-se de Malquíades e recebeu uma longa e saborosa festa. Finalmente a rua onde pode aliviar-se e rever a cadela do segundo andar, uma cocker que ele tanto adorava. E ela a ele!
Malquíades sempre fora de poucas palavras, mas de muitos afectos. Tardes inteiras deitados no sofá com o seu amigo a ler e ele a dormitar, numa modorra contagiante.
Regressaram ambos a casa.
- Vá companheiro… deixa-me arrumar esta roupa espalhada que à tarde tenho de sair…
Nova festa por baixo do seu focinho. Aissú devolveu-lhe uma lambedela em compensação. Era assim a amizade entre ambos… repleta de troca de mimos.
Voltou para o seu costumado lugar no sofá, quando não estava a dormir e aguardou que Malquíades o brindasse com aquele biscoito que ele tanto adorava.
Chegara àquele lar havia pouco tempo, mas a relação entre ambos assumira-se profunda e sem exigências. Havia ainda coisas para perceber e habituar-se, que compreendia essencialmente horários. Mas com o tempo Aissú acreditava conseguir lidar com facilidade com Malquíades. O único problema seriam aquelas meninas que todos os dias, ou melhor noites, surgiam na casa. Algumas temiam-no, é certo, mas também havia razão para tal porque ele nunca lhes mostrava grande simpatia e um rosnar era o sinal.
Sempre gostara de Beatriz… Mas esta deixara de aparecer… e ele tinha pena.
Um barulho confuso veio de dentro da casa, provavelmente do quarto onde uma amiga colorida dormia ainda… Não se moveu. Apenas abriu um olho e esticou uma orelha para se certificar.
De repente apareceu na sala envolta num roupão de Malquíades e com uma caixa repleta de biscoitos:
O autocarro negociava as curvas dos Pirinéus a boa velocidade. O condutor, um italiano de metro e meio, dirigia a viatura com perícia, sem nunca perder o controlo.
A noite caíra há muito e uma chuva miudinha obrigava o motorista transalpino a uma condução mais defensiva. Uma paragem prevista numa estação de serviço deu para os passageiros esticarem as pernas.
Malquíades procurou rede para telefonar a Beatriz, mas a operadora espanhola parecia não estar disponível. Finalmente o sinal de rede. Ligou:
- Olá rapaz, onde estás?
- Algures no meio de Espanha.
- Não imaginas onde?
- Não!
- A que horas calculas chegar…
- Provavelmente só ao fim do dia.
- Não te esqueças de me trazeres caramelos…
Nem respondeu! Desligou o equipamento e foi à loja comprar os doces.
Decididamente tinha de perder o medo de andar de avião… Aquela viagem a Paris demoraria, pelo menos, mais dois dias só por causa desse estúpido receio.
Voltou para o autocarro, sentou-se no seu lugar, olhou o relógio e encostou a cabeça à janela de forma a poder dormitar um pouco. A viatura voltou à estrada. A seu lado sentara-se logo em Versailles um português minhoto emigrado há meio século em França. Fugira à guerra de África e ficara por terras gaulesas assumindo todo o tipo de trabalhos. Na altura era um jovem… agora com o peso dos anos aceitara a reforma e vinha a Portugal somente para tratar de uns assuntos de heranças. Demasiado tagarela para o gosto de Malquíades, este ia respondendo, quase sempre com monossílabos, às questões formuladas pelo chato companheiro de viagem que lhe calhara em sorte. O emigrante, entretanto, admirou-se por um jornalista viajar de autocarro…
Finalmente veio o sono a ambos e cada um ajeitou-se como pode de forma a dormir. Lá fora o breu mantinha-se, cortado aqui e ali pelas luzes de uma ou outra viatura.
Tempo e quilómetros atravessaram a península…
De súbito o companheiro de Malquíades gritou a plenos pulmões:
- Já chegámos? Já chegámos?
Os passageiros agitaram-se confusos, assim como Malquíades que acordou sobressaltado e num alvoroço impróprio na sua pessoa. Entre admirado e estremunhado perguntou:
- Já chegámos à fronteira de Portugal?
- Não… ainda não. Mas chegámos a Salamanca.
Uma fúria perpassou pelo olhar do jornalista. Respirou fundo e finalmente devolveu num tom áspero que denunciava irritação:
- Oh homem, pela sua saúde, cale-se e deixe-nos dormir!
Mote: Acordaste nu, sem te recordar de nada, numa ilha deserta
Tinha os olhos fechados, mas percebeu que estava ao ar livre. Deveria ser do Sol a bater-lhe no corpo com força ou da água tépida que lhe beijava os pés.
As mãos estendidas qual Cristo cruxificado davam à situação uma bizarra anormalidade. Sentiu com a mão esquerda uma areia fina. O mesmo com a direita.
Por fim abriu um olho e deparou com um Sol inclemente e um céu anilado e sem nuvens. Abriu o outro olho, mexeu-se e percebeu estranhamente… que estava nu!
Ergueu-se e tentou perceber onde se encontrava. À sua frente uma praia calma fazia aterrar à beira-mar pequenas ondas. De um lado e do outro percebeu árvores…
Porém para Malquíades nada daquilo fazia sentido… Beliscou-se temendo que fosse novamente um sonho, mas depressa percebeu que não era.
Fechou os olhos e tentou rebobinar a sua mente até onde se recordava antes de acordar naquele ermo: assistira a um concerto com a Beatriz, depois fora a casa dela buscar o portátil e regressara a sua casa.
Finalmente um enorme vazio… até acordar ali sem roupa, sem ninguém ao seu redor e com uma vontade enorme em sair dali…
A maré subira e Malquíades recuou uns bons metros na praia. Pairava no ar uma leve brisa, amenizando o calor do astro-rei.
Ali não valeria a pena gritar porque provavelmente ninguém o escutaria. O enigma adensava-se, ainda por cima naquela altura em que tinha tanta coisa para escrever…
De súbito ocorreu-lhe uma ideia… Poderia ser parva, mas parecia ser a única com alguma lógica.
Ergueu-se da areia, olhou o céu do lado contrário do sol e perguntou como se alguém o escutasse:
- Tu que teclas nesse portátil diz lá quem é que me colocou aqui?
Um silêncio…
- Sim tu… o autor destas linhas… quem te mandou criar esta ideia?
Respondi:
- É comigo?
- Claro!
- Que me queres?
- Diz-me lá de quem foi a ideia de me colocarem aqui nesta ilha?
Com alguma relutância, respondi:
- Foi de um conjunto de pessoas.
- Essa gente não deve ter mais nada em que pensar do que estragar a vida.
- Estragar?
- Tu achas correcto que me tenham atirado, assim sem mais nem menos, para este ermo?
Fechou o livro, colocou-o ao lado, olhou o tecto e largou um profundo suspiro. Beatriz deitada no sofá deu conta e perguntou:
- Até onde foi esse suspiro?
O namorado não respondeu. Deixou-se ficar ali a cismar, numa lassidão incomum.
Na lareira ardia um fogo denso e crepitante que aquecia a sala. De um candeeiro vinha uma luz amarela quase tão quente quanto o lume. O ambiente propiciava ao sossego.
- Malquíades diz-me lá até onde foi esse suspiro? – teimou Beatriz.
Um silêncio. Por fim respondeu:
- Até a um tempo… longínquo!
Insistiu:
- Nunca falaste do teu passado, mas não é por não se falar, que ele deixou de existir. Sempre senti que há algo, aí nesse coração, mal resolvido…
Novo silêncio. As palavras eram sempre tiradas a ferros…
- O meu pai… Nunca conheci verdadeiramente o meu pai…
- Não queres falar disso agora?
- Não… - uma longa pausa - preferiria escrever… um dia!
Fez-se luz na mente de Beatriz. Talvez conseguisse que Malquíades escrevesse… Talvez! Ergueu-se do seu confortável poiso, foi à lareira, ajeitou o lume, aproximou-se finalmente do namorado, abraçou-o ternamente e sussurrou:
- Imagina que o teu pai sabia que iria morrer e antes disso escrevia-te uma carta. Ou dito de outra forma… escreve tu hoje uma carta ao menino que foste ontem…
A ideia, estranhamente, agradou a Malquíades. Saiu do seu lugar, foi à secretária e sacou do bloco. Regressou ao seu cadeirão e começou a escrever. Queimaram-se alguns quilos de lenha até que o bloco caiu nas mãos de Beatriz.
Esta pegou nele, desfolhou algumas páginas e leu:
“Meu filho,
Sei que estou longe, muito longe, mas acredites ou não, velarei sempre por ti.
Não tive culpa de não termos falado mais, brincado mais, ralhado mais. De nunca termos ido ao futebol, ao cinema ou simplesmente levar-te a uma festa de anos dos teus amigos.
Lamento profundamente este afastamento involuntário. A vida nem sempre é como gostaríamos.
Há algo ainda que me arrependo de nunca ter feito e se pudesse voltar atrás, crê-me, que o faria amiúde.
E parece tão simples, tão natural…
Bastava dizer: amo-te meu filho!
Algo que jamais proferi…
Desculpa e até um dia.
O teu pai.”
Lágrimas esvaíram em torrentes pela face bonita de Beatriz. Levantou-se, aproximou-se do namorado, cravou as mãos finas na face de Malquíades e beijou-o docemente. Declarou: