Beatriz sentiu o telemóvel tremer no bolso de trás das calças de ganga. Alguém lhe estaria a ligar, quiçá Malquíades, que após o esquecimento do jantar daquela sexta-feira, de má memória para ambos, fora votado a um longo castigo por ela imposto, mas que ele nem daria conta.
Continuou por isso a pintar calmamente uma enorme tela até que, já extenuada, decidiu parar. Recuou uns passos e ficou a observar o trabalho pictórico acabado de fazer. Esboçou um sorriso malandro como prova de que gostara do que via. Desembaraçou-se do avental sujo de tinta, descalçou as luvas, bebeu uma garrafa de água e finalmente sentou-se para ver o telemóvel.
Acertara na chamada de Malquíades. Ligou de volta:
- Olá boa noite, ligaste-me?
- Sim.
- E… - decididamente o homem não largava os monossílabos.
- Hummm… não sei como dizer isto…
Beatriz ergueu-se de um salto… Na sua cabeça aquela derradeira frase do namorado trazia algo estranho e o coração começou a bater mais depressa. Provavelmente esticara a corda em demasia e agora o namorado iria libertar-se dela, assim como quem estala os dedos de uma mão. Aquele homem era assim, por vezes, um ser estranho quase ausente, mas tinha um coração do tamanho do mundo onde todos cabiam e por isso amava-o profundamente. Todavia, e antes de dizer alguma coisa inconveniente, preferiu aguardar.
- Aceitei participar numa brincadeira de escrita com uns colegas da redacção do jornal e deram-me uma frase para eu desenvolver.
O coração de Beatriz aliviou-se… Respirou fundo, apaziguou o músculo cardíaco e mais desanuviada, acrescentou:
- E qual é o mote?
- Pois… é uma coisa de mulheres. Acho eu…
- Mas diz lá…
Malquíades leu:
A Constança precisa duma mascara capilar, mas o teu patrão só quer que vendas compotas de abobora com amêndoa. Convence-a a escolher a compota para usar.
- Desculpa, mas não percebi bem. Podes repetir, se fizeres favor? – assumiu Beatriz.
Malquíades repetiu o texto, lendo devagar e pausadamente. Depois aguardou que a namorada dissesse alguma coisa:
- Mas isso é mesmo um tema?
- Sim!
- Um tanto bizarro… não achas?
- Ainda bem que pensas assim. Julgava que era só eu.
- Só há aí uma coisa que estranhamente não entendo…
- E é o quê?
- Quem é a essa tipa que aí falam… a Constança, hem?
Estava tão embrenhado na revisão dos textos que acabara de escrever para o jornal que nem deu pelo telemóvel tocar, principalmente por aquele estar sem som. Eram quase 22 horas de uma sexta-feira invernosa.
Lá fora a chuva, sempre tão escassa, caía em torrentes quase diluvianas e o vento ajudava ao temporal. Um sopro sibilino, de alguma janela mal fechada, escutava-se…
Quando Malquíades descolou finalmente o olhar do monitor e o endossou para o aparelho telefónico que jazia a seu lado na secretária, percebeu que alguém lhe estava a tentar ligar.
Pegou nele e leu: Beatriz!
- Olá!
- Olá? Está tudo bem contigo?
- Sim.
- Pronto era só para saber…
Malquíades percebeu na voz da interlocutora algo que se assemelhava a um sarcasmo. Achou profundamente estranho, já que não era costume. Porém e sem saber muito bem porquê perguntou:
- Passa-se alguma coisa?
- Oh não, nada… Estás a trabalhar, não é?
- Sim.
Os monossílabos a imporem-se no diálogo de Malquíades… Como sempre!
- Vá fica bem e até amanhã.
- Até amanhã… - todavia a forma fria distante como do outro lado da linha se despediu denotava que algo estaria errado. Não percebia bem o que seria.
Beatriz desligou a chamada e Malquíades acabou de rever os textos. Ergueu-se por fim, espreguiçou-se, saiu calmamente do escritório e dirigiu-se à cozinha para recarregar a garrafa de água que sempre o acompanhava.
Recordou naqueles breves metros toda a história com a namorada. O seu olhar quase viperino que desconstruíra o coração da jovem, a paixão arrebatadora, depois transformada em amor profundo. O pedido estúpido e idiota que fizera a Andrelino para falar com ela, pedindo-lhe namoro por ele. Aquela tarde à beira-mar quando o sol se escondia por entre nuvens, céu e mar e onde ambos fizeram juras, tal qual os romances de cordel de um amor e uma cabana. Os segredos trocados ou melhor os segredos que Beatriz confessou perante o silêncio permanente do rapaz.
Encheu a garrafa virou as costas ao lava-loiça e reparou que na porta do frigorífico na parede oposta havia algo estranho. Aproximou-se devagar. Preso com um daqueles ímans trazidos do estrangeiro por um qualquer amigo, encontrou um papel escrito. Leu-o:
- Sexta-feira, 20 horas jantar com a Beatriz.
O seu coração quase explodiu. Procurou as horas de forma apressada no telemóvel e concluiu:
- Xiiiiiiiiii… grande bronca, esqueci-me completamente do jantar!
Mote: Estás na fila para o purgatório e Hitler está à tua frente. Ninguém o quer aceitar e a fila não anda. Escreve a tua intervenção para convencer um dos lados a aceitá-lo
Quando chegou encontrou uma fila enorme. Aproximou-se do último:
- Boa tarde, o que se passa aqui?
- Boa tarde…. Há uma embrulhada qualquer lá para a frente.
- Sabe o que é?
- Parece que não querem deixar entrar alguém…
- Isso faz algum sentido?
- Não sei. É a primeira vez que estou na fila para o Purgatório.
- Há quanto tempo aqui está?
- Humm… deixe cá ver… Praí há uns 15 anos.
- Acha que posso lá ir?
- Vá, vá… não se empate comigo…
Foi passando pelo aglomerado até que ao fim de muito tempo encontrou novo amontoado de cabeças. Aproximou-se devagar até que chegou perto duma porta onde duas pessoas trocavam-se de razões:
- Então boa tarde… o que passa aqui? – Questionou.
Um dos contendores respondeu célere:
- Este espécime de gente quer entrar no Purgatório e eu não quero… – respondeu o que parecia ser o porteiro, apontando para alguém de estatura média, bigode pequeno e uma franja ridícula que lhe tapava metade da testa.
- Mas porquê pode-se saber?
O outro mirou-o de cima a baixo e devolveu:
- Então não o conhece?
- Sim conheço e depois? Tem direito ao seu lugar no Purgatório como os outros.
- Deve estar doido não? Este nem morto passará aqui!
- Desculpe, mas morto já ele está. E há mais de 70 anos.
- Não quero saber… Não entra, pronto! Um tipo destes que mandou matar milhões… de judeus… e outros.
Irredutível o guarda era tempo de pegar nos seus trunfos e jogá-los. De outra forma dificilmente se sairia daquele estranho impasse.
- Diga-me lá uma coisa… Sabe quem eu sou?
Sem que o outro respondesse, continuou:
- Está a imaginar com quem está a lidar?
- Não sei nem quero saber… Até poderia ser o “Celito” ou o “CR7”. Para mim era igual. Este não entra. Ponto.
- Eu sou o… Malquíades – comunicou.
Um silêncio, a maçã-de-adão subiu e desceu por mais de uma vez, um rubor subiu às faces e as mãos tremeram. Por fim, refeito do susto, gaguejou:
- O… o… o… verdadeiro Malquíades?
- Eu mesmo!
Sem mais palavras franqueou a porta desviou-se e com uma vénia acrescentou:
- Desculpe o mal-entendido. Passem, passem os dois se fizerem favor.
Sentado numa esplanada Malquíades olhava o mar em todo o seu esplendor. A linha do horizonte divida-se entre o anil do oceano e os tons alaranjados de fim de tarde onde o sol tendia a desaparecer. Corria uma brisa leve.
Olhou o relógio e mostrou real preocupação. Espreitou para lá do caminho, mas só via gente desconhecida como se olhando fizesse aparecer alguém.
Pegou no cachimbo, encheu o fornilho, calcou o tabaco, furou-o para que o ar circulasse e finalmente acendeu-o. No ar pairou um ar doce e perfumado do fumo.
No instante seguinte Andrelino sentou-se sem que Malquíades tivesse dado conta da sua chegada. Finalmente:
- Então?
- A Beatriz disse que não…
O jovem puxou de uma fumaça, expirou o fumo, beberricou a cerveja que tinha à sua frente, recostou-se na cadeira e ficou a olhar novamente o mar. Andrelino pediu ao empregado também uma imperial e aguardou que o amigo se recompusesse do choque. Já de cerveja na mão bebeu um bom bocado e atacou:
- Estavas à espera de quê? Que eu fosse lá pedir namoro em teu nome e ela caísse nos meus braços? Sinceramente acho que ela fez muito bem…
Malquíades continuava a fumar em silêncio. O outro continuou num ataque cerrado:
- Essa tua mania de que só de olhares para uma mulher ela fica caída por ti, não faz qualquer sentido. E depois… já quase te tramaste por isso. Ou esqueceste-te que fui eu que te livrei de sarilhos?
Abanou a cabeça negativamente.
- Sabes que falar nunca foi o meu forte… E se lhe escrevesse uma carta - lembrou.
- Ouve lá… sabes em que século estás? O Cyrano de Bérgerac é que escrevia cartas… no século XVII. Se queres a miúda tens de ir falar com ela e dizer-lhe o que sentes. As mulheres adoram isso. Admira-me que sejas assim… Tu a escreveres és um ás… Que ideia é essa de não falares com as mulheres? Tens medo?
Malquíades bateu de lado com o fornilho no tacão do sapato deixando que a cinza se espalhasse. Respondeu então:
- Medo não… - e após um breve silêncio – vergonha…
- Eh pá vergonha? Vergonha é roubar e ser apanhado! Tens de ir ter com ela e roubar-lhe o coração senão outro o apanha. E agora parceiro?