Nunca conhecera verdadeiramente o medo. Nem mesmo naquela manhã em que fora chamado ao Director da escola. Sentira-se temeroso é certo, mas medo, medo não tivera.
A não ser naquela vez... Aí sim fora uma experiência inolvidável.
Era já noite cerrada quando Malquíades e o amigo Andrelino entraram no salão de baile, cheiinho quase até à porta. Com dificuldade foram passando por entre os espectadores até encontrarem um local mais aprazível de forma a perceberem o ambiente… feminino.
Na pista uns amigos viram-nos e sorriram. Ao intervalo juntaram-se todos no bar. Como de costume Malquíades mantinha-se em silêncio. Uma ou outra rapariga metia-se com ele, mas raramente respondia.
De repente apareceu junto do grupo uma jovem muito bonita que pediu a outra qualquer coisa. Ambas falaram, mas pouco se percebia tal era o barulho ambiente. Desconhecida de quase todos foi naturalmente apresentada. Quando chegou a vez de Malquíades, aquela pareceu estremecer tal a forma como ele a olhou. Os seus olhos verdes amendoados denunciavam alguém sereno e confiante.
Quando a música recomeçou as raparigas regressaram ao salão levando os rapazes atrás. Já dançavam alguns pares quando Malquíades convidou a rapariga que chegara no fim, para dançar. Esta acenou que sim e ambos dançaram um longo “pasodoble”.
Logo veio outra moda e mais uma e o par não se desfez. Os amigos admiravam-se com Malquíades. Entretanto novo intervalo.
- Parceiro… toma cuidado que essa com quem andas a dançar é casada… - avisou Andrelino.
Entretanto Malquíades percebeu que o seu par abandonava o baile sem dizer nada. Mas antes de sair a jovem procurou no meio da multidão o olhar do rapaz. Sem mais este declarou:
- Não esperes por mim.
Andrelino abriu os olhos de espanto.
A noite estava muito fria. Corria uma aragem forte evidenciando o cheiro a terra molhada. Malquíades percebeu ao longe, sob a luz de um candeeiro donde emanava uma luz mortiça, a figura esbelta do seu par. Devagar, como se andasse a passear perseguiu a bela jovem aproveitando a penumbra. De vez em quando esta parava aguardando que o rapaz ganhasse algum terreno. Ao chegar ao portão fez um breve compasso de espera e olhou para trás. Finalmente entrou na singela moradia.
Malquíades aproximou-se serenamente e preparou-se para entrar na casa.
De súbito sentiu uma mão forte a agarrá-lo no ombro, enquanto uma voz pujante gritava ao seu ouvido:
Embrulhado na vergonha da sua consciência Malquíades aguardava sentado numa velha cadeira que o Director da escola o chamasse ao gabinete.
A gorda e anafada Umbelina fora buscá-lo de propósito à sala, naquele seu passo lento e pastoso, deixando nos outros alunos da aula uma estranha sensação de desconforto.
Enquanto percorria os corredores sentia que nada valera a pena. Aquele estalo pregado no Nelson por amor platónico à Vanessa, uma menina bonita, mas parva e que não lhe ligava patavina, só lhe trouxera dissabores. E os piores, provavelmente, ainda estariam para chegar.
A sala pequena era uma espécie de antecâmara para um eventual degredo. Temia profundamente o futuro. As mãos entrelaçadas, os olhos irrequietos a percorrerem o espaço alvo e vazio, o coração tão minúsculo que queria mirrar no peito.
A porta do gabinete abriu-se finalmente saindo de lá o adversário com cara de poucos amigos. O Director ordenou que Nelson se sentasse e olhando para Malquíades fez sinal com a cabeça para entrar.
Devagar o menino ergueu-se e passou na frente do antagonista e do velho professor entrando na sala. Esta era enorme terminando ao fundo numa secretária repleta de papéis, um velho telefone e um candeeiro, donde saía uma luz mortiça. Na frente uma cadeira onde foi convidado a sentar-se.
O Director cruzou os braços em cima do tampo da secretária, puxou os óculos para a frente e de olhar fixo no aluno por cima dos aros, atirou:
- Que me tens a dizer?
Malquíades tremia. A sua voz presa, o coração novamente aos pulos. Só soube gaguejar:
- Des… desculpe! N... não foi por mal…
- Não é a mim que tens de pedir desculpa… como deves calcular!
O silêncio invadiu a sala. O aluno mordia o lábio superior enquanto o Director aguardava… algo mais.
Mas o aluno gostava pouco de falar… E o professor sabia-o. Por isso e percebendo que dali não sairia mais nada, sentenciou:
- Vais ao Nelson, que está ali fora, pedir desculpa…
Acenou com a cabeça num consentimento enquanto fixava o olhar num taco de madeira podre.
O professor levantou-se então e encaminhou-se para a porta. Aguardou que Malquíades chegasse perto dele. Na sala era a vez de Nelson parecer nervoso.
- Então… - avançou o professor.
O agressor aproximou-se de Nelson e quase em surdina declarou:
- Para a próxima levas um murro na boca para não vires aqui “chibar”!
Malquíades entrou em casa apressado, carregando a pesada mochila e numa fugaz ida ao quarto largou-a em cima da cama para logo procurar a cozinha.
O almoço estava na mesa. Devorou-o num ápice e em silêncio. De seguida tentou escapar de casa para a brincadeira. Porém a mãe, qual polícia atenta, tinha o dedo indicador apontado na direcção do quarto.
Já sabia ao que ia… Os idiotas trabalhos da escola. Sempre os trabalhos da escola. A sentença, essa, também a conhecia de cor: sem os deveres feitos não haveria brincadeira.
Pegou nos livros e nos cadernos e foi lendo e escrevendo. Primeiro a Língua Portuguesa com a cópia, ao que se seguiram as respostas ao texto. Depois aquilo do Estudo do Meio… Desta vez as soluções eram escritas no próprio livro (mas não com muita força, que os livros são para devolver no fim do ano, dissera-lhe a mãe).
Finalmente as contas.
A mãe, conhecendo o filho como ninguém perfilava-se à porta do quarto. Sabia da pouca capacidade que o jovem exibia para se concentrar e mais ainda da facilidade com que se distraía. Pelo rabo do olho Malquíades percebia a mãe estrategicamente colocada. Não haveria hipótese de fuga sem que os trabalhos estivessem completados.
Aquilo era uma guerra surda e muda, desde o início do ano lectivo. E provavelmente perdida.
Naqueles momentos desejava ardentemente não ter mãe, responsabilidades, escola…
Segurou na fotografia descolorida da mãe ainda jovem e recordou com profunda saudade as chegadas diárias da escola, com graça os olhares reprovadores quando tentava escapar sem os trabalhos feitos, com dor as lágrimas que a antecessora vertera quando se viu viúva. Lembrava-se tão bem como se tudo tivesse ocorrido no dia anterior.
Sempre fora pessoa de muito poucas palavras. Preferia escutar… Por isso a sua relação com a mãe fora assente em muitos silêncios, que ambos entendiam quase como se falassem. Bastava por vezes um olhar reprovador, um imperativo indicador, um gesto simples com a cabeça para perceber que não valeria a pena esticar a corda. Sorriu só de recordar.
As contas complicadas, a aritmética com aquela tabuada mecânica e monótona que mais parecia uma lenga-lenga e finalmente aquelas longas e estúpidas perguntas sobre pesos e medidas que Malquíades olimpicamente detestava. Era por esta altura que o menino então falava, dando voz à sua imensa revolta: