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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Santa Ana

Assim que Mário começou a andar, com pouco mais de um ano, depressa ganhou a alcunha de Faísca tal a velocidade com que corria. O epíteto fora-lhe atribuído pelo avô João, velho arrais da traineira Santa Ana.

Muito cedo o miúdo iniciou o seu gosto pelo mar e pela pesca. Tanto o avô como o pai Bento lavravam diariamente o mar colhendo pescado que vendiam ao desbarato, mas que ainda assim dava para alimentar as bocas de casa.

Aos cinco anos o petiz já conhecia todos os peixes e as suas variantes. Mais tarde, mal saía da escola, o Faísca corria para o porto em busca da pequena traineira familiar.

Encontrava quase sempre pai e avô a remendar redes, num trabalho moroso e chato, porém necessário. Sentava-se ao lado deles e olhava a linha do horizonte onde os diferentes azuis se tocavam. E desejava, queria, sentia o mar anil a bailar dentro de si.

O pai percebia aquele olhar e antes que lhe desse alguma ideia, determinou:

- Filho meu nunca será pescador! Não é vida para ninguém!

Mário não percebia, mas com o decorrer dos anos entendeu. Demasiado bem…

O tio Justino desaparecera no mar havia um par de anos, assim como os dois filhos numa noite de malagueiro onde uma onda maldita pegou na embarcação e a adernou até se afundar.

No entanto Mário não temia o mar… sabia que este seria muito mais forte e teimoso que ele e deste modo só havia que respeitar.

Aos quinze anos e após muitas promessas em não deixar de estudar partiu pela primeira vez com a família para o mar. Em terra a mãe chorava agarrada ao xaile que já enxugara muitas lágrimas.

- Uma noite destas fico viúva, sem sogro e sem filho…

As outras mulheres amenizavam a desconfiança, mas ela temia, temia, temia…

Naquela estreia Mário trouxe para casa o cabaz repleto de cavalas, carapaus, plins, pargos e bicudas, que a mãe iria provavelmente secar ao sol. O pai e o avô admiraram-se com a sorte dessa noite. E comentaram:

- O Faísca trouxe-nos sorte! – afirmou o velho lobo do mar.

- Sorte de principiante – acrescentou Bento.

No dia seguinte o jovem apareceu cedo para ajudar a remendar as redes e colocar as alfais na embarcação. O pai olhou para ele e chamou-o. Afastaram-se o suficiente para o avô não escutar a conversa:

- Sei que gostas do mar, vê-se nesse teu olhar que já foi também o meu.

Mário baixou os olhos para o chão onde uma estrela do mar secava ao sol. Mas nada disse e aguardou que o pai continuasse:

- Eu não quero ficar sem um filho, quero que estudes, que aprendas outras coisas, que partas para a cidade e saibas mais que eu.

Mas o jovem queria mais, muito mais. Desejava viver as mesmas aventuras que durante longos serões ouvira contar ao seu avô e ao pai. Queria sentir a verdadeira força do mar, sentir o mesmo medo que assaltou tantas vezes o espírito dos seus antecessores. Todavia para isso não podia partir. Simplesmente não podia.

Certa noite, porém, a vida haveria de mudar. Quando a velha traineira largou do porto de pesca levantou-se um vento Norte, brando. O velho João sentiu a brisa e alvitrou:

- Hum cheira-me que vamos ter borrasca…

Os pescadores que o acompanhavam teimaram:

- Ó Mestre não há que ter medo!

Mas João conhecia bem demais o mar e a aliança que este fazia tantas vezes com Éolo e que originava uma dança estranha e demais perigosa. Deste modo retornou a terra mesmo contra vontade da tripulação que via um dia sem dinheiro.

Quando atracou o mar era já uma revolução. Deu a ordem:

- Amarrem-me bem a “menina” qu’isto vai ser duro.

E foi. Demasiado! De tal forma que durante a noite o mar galgou para lá do molhe de pedra e invadiu a estrada. As pequenas embarcações subiam e desciam e algumas batiam com força contra as paredes do porto. Santa Ana não escapou à fúria e pela manhã já serena, João constatou o pior.

Entrou em casa cabisbaixo e triste. O filho Bento acabava de comer um naco de pão quando viu o pai. E percebeu…

Assim como Mário que com o pai correram ao porto.

O cabo partira-se e a velha embarcação surgia meia afundada no meio do cais. Mário não evitou uma lágrima e logo ali prometeu:

- Pai vou estudar e ganhar dinheiro suficiente para comprar uma traineira nova.

Bento passou o braço pelos ombros do filho e exclamou:

- Ser pescador não é só partir para o mar. É saber parar. Como o teu avô fez ontem. Estás a escutar os gritos das mulheres?

Escutava-se ao longe uma gritaria feminina.

- Sim pai!

- Alguém que se julgava saber mais que o teu avô, partiu ontem para o mar e não deve ter regressado. Portanto é preciso parar…

- Mas pai que irão vocês fazer?

- Eu? Fácil… vou pescar! Tenho cana e linha. O teu avô vai recordar! Também precisa.