Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

A aposta

Era uma daquelas noites de invernia onde o frio obrigava a que todos permanecessem em casa ao redor de um fogo crepitante e acolhedor. Todos, todos não, que os homens preferiam o ambiente enublado, azedo e assaz barulhento da taberna do Tó Careca.

Ao redor das mesas grupos de homens jogavam às cartas ou ao dominó. Não sendo a dinheiro todavia quem perdesse um conjunto de dez jogos pagava uma rodada aos adversários. Ou era a sueca com as cartas muitos negras e claramente conhecidas de todos ou então â tranca uma espécie de canastra, jogo trazido para a aldeia por um antigo emigrante.

Por detrás do balcão o Tó ia servindo copos de tinto ou cortados. Sempre de forma lenta e pausada que os seus setenta anos e as varizes não o deixavam andar mais depressa.

Com o passar das horas o vinho tendia a fazer das suas e a alterar o discernimento e as conversas dos jogadores.

A certa altura o Augusto levanta-se da mesa e enquanto o parceiro embaralha mal as cartas, declara:

- Vou beber este copo pela alma do Ernesto que nos deixou na passada semana.

E de um trago despejou o copo sujo de vinho tinto. Os outros imitaram-no, mas a conversa da alma não ficou por ali. Mais por causa do vinho que da sensatez, o diálogo seguiu um rumo bem diferente e não tardaria a transformar-se numa discussão onde todos se envolveram. Finalmente Augusto declara do cimo da sua profunda embriaguez:

- Só tenho medo dos vivos não dos mortos!

A declaração dita qual sentença caiu no ambiente como pedra num charco, deixando todos em silêncio. Foi finalmente o próprio Tó que mais em tom de brincadeira que a sério propôs:

- Aposto que não és capaz de ir ao cemitério, à campa do Ernesto e espetar lá um pau. Se o fizeres pago uma rodada a todos…

Gerou-se um burburinho na sala com diversas opiniões.

- Está muito frio… já é tarde… o homem tem medo…

Como Augusto era casmurro e ainda por cima ébrio, levantou-se da cadeira e meio a cambalear dirigiu-se à porta e declarou:

- Já venho! Prepara os copos…

Da noite, quando abriu a porta, veio um ar glaciar acompanhado de um vento que parecia tudo gelar. Augusto vestiu o seu velho, surrado e seboso sobretudo, apertou os poucos botões da veste, levantou a gola e partiu para o cemitério.

A noite de forte luar deixava-o ver o caminho que ele no entanto conhecia de cor. Debaixo de uma oliveira recentemente podada encontrou um pau que lhe pareceu conveniente e foi ao encontro da campa do amigo, recentemente falecido.

Nem cães nem gatos enjaneirados se escutavam na aldeia, apenas os seus passos na noite. Pairava isso sim um cheiro forte a lenha queimada. Numa ou noutra janela irradiava uma luz mortiça, oriunda de alguma candeia de azeite.

Calcorreou os caminhos de terra batida onde os rodados das carroças se distinguiam até chegar ao velho portão do cemitério. Empurrou-o e este rangeu como se acordasse. Facilmente descobriu o monte de terra que cobria a urna de Ernesto. Aproximou-se devagar agarrou com determinação no pau e dobrando-se espetou-o com força na terra.

Porém quando se quis endireitar algo o prendeu. Fez força, muita força e nesse momento começou a tremer. A bebedeira passara como por milagre, mas nem mesmo assim conseguia sair do sítio. Algo o prendia àquele lugar. Num ápice tudo lhe veio à memória… Acima de tudo os receios dos quais sempre duvidara.

A Negra chamava-o e Augusto não parecia ter vontade suficiente para sair daquele chamamento. Sentiu-se sufocar, o coração batia agora de forma descompassada. Caiu finalmente por terra.

O sol já ia alto quando Valéria entrou no velho cemitério. De súbito reparou num corpo que jazia sobre uma campa. Primeiro gritou, mas por fim recompôs-se e devagar aproximou-se. Encontrou Augusto gelado e morto.

Sem saber o que fazer a mulher rodou à volta do cadáver e percebeu que o velho sobretudo estava preso ao pau que enterrara na campa.

Augusto morrera de susto! De si mesmo!