Sentada na varanda num velhíssimo cadeirão e rodeada de uma profusão de vasos com flores de todas as cores e espécies, Guiomar olhava a rua de quase nenhum movimento. Era geralmente assim. Talvez ao fim de semana houvesse mais gente na rua, mas com pouca diferença. Ao longe o som estridente de um comboio que saía da estação ou de uma ambulância.
Vivia só, desde a morte do marido Gervásio, haveria dez anos. Os filhos haviam partido em busca de vidas próprias. Raramente falavam à mãe. Todavia diziam sempre:
“Se necessitar de alguma coisa ligue para este número de telefone…”
Guardava-os à vista mesmo ao lado do aparelho telefónico.
Entretanto todos os dias recebia a visita rápida das meninas da Misericórdia, que ali vinham entregar o que seria o seu almoço e jantar. E a elas devolvia invariavelmente uma flor que retirava de um dos seus vasos.
A roçar os 90 anos Guiomar olhava o mundo com serenidade. As pernas eram o seu pior problema e daí jamais sair de casa. Muito devagar saía do quarto para a sala e desta para a varanda. Ou o seu inverso. Tirando as meninas do meio-dia não falava com ninguém.
Assim quando se sentia mais só ligava para o filho, pois sabia que alguém lhe falaria. Pegava no papel com os números carregava nas teclas e aguardava. Do outro lado uma voz respondia-lhe:
- O número que pretende contactar não se encontra disponível. Por favor ligue mais tarde ou envie um SMS.
Um sorriso surgia então na face lavrada pelos anos.
Assim que Mário começou a andar, com pouco mais de um ano, depressa ganhou a alcunha de Faísca tal a velocidade com que corria. O epíteto fora-lhe atribuído pelo avô João, velho arrais da traineira Santa Ana.
Muito cedo o miúdo iniciou o seu gosto pelo mar e pela pesca. Tanto o avô como o pai Bento lavravam diariamente o mar colhendo pescado que vendiam ao desbarato, mas que ainda assim dava para alimentar as bocas de casa.
Aos cinco anos o petiz já conhecia todos os peixes e as suas variantes. Mais tarde, mal saía da escola, o Faísca corria para o porto em busca da pequena traineira familiar.
Encontrava quase sempre pai e avô a remendar redes, num trabalho moroso e chato, porém necessário. Sentava-se ao lado deles e olhava a linha do horizonte onde os diferentes azuis se tocavam. E desejava, queria, sentia o mar anil a bailar dentro de si.
O pai percebia aquele olhar e antes que lhe desse alguma ideia, determinou:
- Filho meu nunca será pescador! Não é vida para ninguém!
Mário não percebia, mas com o decorrer dos anos entendeu. Demasiado bem…
O tio Justino desaparecera no mar havia um par de anos, assim como os dois filhos numa noite de malagueiro onde uma onda maldita pegou na embarcação e a adernou até se afundar.
No entanto Mário não temia o mar… sabia que este seria muito mais forte e teimoso que ele e deste modo só havia que respeitar.
Aos quinze anos e após muitas promessas em não deixar de estudar partiu pela primeira vez com a família para o mar. Em terra a mãe chorava agarrada ao xaile que já enxugara muitas lágrimas.
- Uma noite destas fico viúva, sem sogro e sem filho…
As outras mulheres amenizavam a desconfiança, mas ela temia, temia, temia…
Naquela estreia Mário trouxe para casa o cabaz repleto de cavalas, carapaus, plins, pargos e bicudas, que a mãe iria provavelmente secar ao sol. O pai e o avô admiraram-se com a sorte dessa noite. E comentaram:
- O Faísca trouxe-nos sorte! – afirmou o velho lobo do mar.
- Sorte de principiante – acrescentou Bento.
No dia seguinte o jovem apareceu cedo para ajudar a remendar as redes e colocar as alfais na embarcação. O pai olhou para ele e chamou-o. Afastaram-se o suficiente para o avô não escutar a conversa:
- Sei que gostas do mar, vê-se nesse teu olhar que já foi também o meu.
Mário baixou os olhos para o chão onde uma estrela do mar secava ao sol. Mas nada disse e aguardou que o pai continuasse:
- Eu não quero ficar sem um filho, quero que estudes, que aprendas outras coisas, que partas para a cidade e saibas mais que eu.
Mas o jovem queria mais, muito mais. Desejava viver as mesmas aventuras que durante longos serões ouvira contar ao seu avô e ao pai. Queria sentir a verdadeira força do mar, sentir o mesmo medo que assaltou tantas vezes o espírito dos seus antecessores. Todavia para isso não podia partir. Simplesmente não podia.
Certa noite, porém, a vida haveria de mudar. Quando a velha traineira largou do porto de pesca levantou-se um vento Norte, brando. O velho João sentiu a brisa e alvitrou:
- Hum cheira-me que vamos ter borrasca…
Os pescadores que o acompanhavam teimaram:
- Ó Mestre não há que ter medo!
Mas João conhecia bem demais o mar e a aliança que este fazia tantas vezes com Éolo e que originava uma dança estranha e demais perigosa. Deste modo retornou a terra mesmo contra vontade da tripulação que via um dia sem dinheiro.
Quando atracou o mar era já uma revolução. Deu a ordem:
- Amarrem-me bem a “menina” qu’isto vai ser duro.
E foi. Demasiado! De tal forma que durante a noite o mar galgou para lá do molhe de pedra e invadiu a estrada. As pequenas embarcações subiam e desciam e algumas batiam com força contra as paredes do porto. Santa Ana não escapou à fúria e pela manhã já serena, João constatou o pior.
Entrou em casa cabisbaixo e triste. O filho Bento acabava de comer um naco de pão quando viu o pai. E percebeu…
Assim como Mário que com o pai correram ao porto.
O cabo partira-se e a velha embarcação surgia meia afundada no meio do cais. Mário não evitou uma lágrima e logo ali prometeu:
- Pai vou estudar e ganhar dinheiro suficiente para comprar uma traineira nova.
Bento passou o braço pelos ombros do filho e exclamou:
- Ser pescador não é só partir para o mar. É saber parar. Como o teu avô fez ontem. Estás a escutar os gritos das mulheres?
Escutava-se ao longe uma gritaria feminina.
- Sim pai!
- Alguém que se julgava saber mais que o teu avô, partiu ontem para o mar e não deve ter regressado. Portanto é preciso parar…
- Mas pai que irão vocês fazer?
- Eu? Fácil… vou pescar! Tenho cana e linha. O teu avô vai recordar! Também precisa.
Era uma daquelas noites de invernia onde o frio obrigava a que todos permanecessem em casa ao redor de um fogo crepitante e acolhedor. Todos, todos não, que os homens preferiam o ambiente enublado, azedo e assaz barulhento da taberna do Tó Careca.
Ao redor das mesas grupos de homens jogavam às cartas ou ao dominó. Não sendo a dinheiro todavia quem perdesse um conjunto de dez jogos pagava uma rodada aos adversários. Ou era a sueca com as cartas muitos negras e claramente conhecidas de todos ou então â tranca uma espécie de canastra, jogo trazido para a aldeia por um antigo emigrante.
Por detrás do balcão o Tó ia servindo copos de tinto ou cortados. Sempre de forma lenta e pausada que os seus setenta anos e as varizes não o deixavam andar mais depressa.
Com o passar das horas o vinho tendia a fazer das suas e a alterar o discernimento e as conversas dos jogadores.
A certa altura o Augusto levanta-se da mesa e enquanto o parceiro embaralha mal as cartas, declara:
- Vou beber este copo pela alma do Ernesto que nos deixou na passada semana.
E de um trago despejou o copo sujo de vinho tinto. Os outros imitaram-no, mas a conversa da alma não ficou por ali. Mais por causa do vinho que da sensatez, o diálogo seguiu um rumo bem diferente e não tardaria a transformar-se numa discussão onde todos se envolveram. Finalmente Augusto declara do cimo da sua profunda embriaguez:
- Só tenho medo dos vivos não dos mortos!
A declaração dita qual sentença caiu no ambiente como pedra num charco, deixando todos em silêncio. Foi finalmente o próprio Tó que mais em tom de brincadeira que a sério propôs:
- Aposto que não és capaz de ir ao cemitério, à campa do Ernesto e espetar lá um pau. Se o fizeres pago uma rodada a todos…
Gerou-se um burburinho na sala com diversas opiniões.
- Está muito frio… já é tarde… o homem tem medo…
Como Augusto era casmurro e ainda por cima ébrio, levantou-se da cadeira e meio a cambalear dirigiu-se à porta e declarou:
- Já venho! Prepara os copos…
Da noite, quando abriu a porta, veio um ar glaciar acompanhado de um vento que parecia tudo gelar. Augusto vestiu o seu velho, surrado e seboso sobretudo, apertou os poucos botões da veste, levantou a gola e partiu para o cemitério.
A noite de forte luar deixava-o ver o caminho que ele no entanto conhecia de cor. Debaixo de uma oliveira recentemente podada encontrou um pau que lhe pareceu conveniente e foi ao encontro da campa do amigo, recentemente falecido.
Nem cães nem gatos enjaneirados se escutavam na aldeia, apenas os seus passos na noite. Pairava isso sim um cheiro forte a lenha queimada. Numa ou noutra janela irradiava uma luz mortiça, oriunda de alguma candeia de azeite.
Calcorreou os caminhos de terra batida onde os rodados das carroças se distinguiam até chegar ao velho portão do cemitério. Empurrou-o e este rangeu como se acordasse. Facilmente descobriu o monte de terra que cobria a urna de Ernesto. Aproximou-se devagar agarrou com determinação no pau e dobrando-se espetou-o com força na terra.
Porém quando se quis endireitar algo o prendeu. Fez força, muita força e nesse momento começou a tremer. A bebedeira passara como por milagre, mas nem mesmo assim conseguia sair do sítio. Algo o prendia àquele lugar. Num ápice tudo lhe veio à memória… Acima de tudo os receios dos quais sempre duvidara.
A Negra chamava-o e Augusto não parecia ter vontade suficiente para sair daquele chamamento. Sentiu-se sufocar, o coração batia agora de forma descompassada. Caiu finalmente por terra.
O sol já ia alto quando Valéria entrou no velho cemitério. De súbito reparou num corpo que jazia sobre uma campa. Primeiro gritou, mas por fim recompôs-se e devagar aproximou-se. Encontrou Augusto gelado e morto.
Sem saber o que fazer a mulher rodou à volta do cadáver e percebeu que o velho sobretudo estava preso ao pau que enterrara na campa.