Sentado na pequena sala vazia Edgar agarrou-se à bengala com ambas as mãos e em cima destas poisou a testa.
Por fim deixou que as lágrimas caíssem na carpete surrada e descolorida. Em silêncio.
À sua frente no caixão negro repousava o seu grande e único amor. Setenta anos de vida em comum. Cinco filhos, doze netos e muitos bisnetos, perdera-lhe o conto, e uma vida cheia de tanta… vida.
Mas naquele instante estava só. Sabia que em breve seria ele… do outro lado. E quando fosse tinha consciência que não teria ninguém a chorar por ele.
Sempre considerara os filhos como outras faces de si mesmo. Fossem as raparigas ou os rapazes. Ajudara-os sempre que lhe era solicitado. E amara-os muito.
Assim como Eugénia, a defunta, que abdicara de uma carreira como professora em prol dos gaiatos.
Todavia a solidão familiar invadira-lhes a vida a partir do momento que optaram por viverem num lar, tendo vendido todas as parcas coisas que tinham. Não deixariam nada a filhos e netos. Nem bens nem preocupações de nenhuma espécie.
Mas seria o mínimo, os filhos virem despedir-se da mãe.
Ergueu a cabeça e olhou um dos círios que iluminavam baçamente a sala. Naquela flamejar constante mas incerto Edgar sentiu que a sua vida fora um pouco como aquela vela.
A início pujante e forte, para no final se resumir a um coto e a uma luz mortiça que morria devagar
Tinha horas de nascido quando ouviu pela primeira vez o som estridente de uma locomotiva a apitar, o que o fez chorar. No entanto dias depois já se habituara.
Os pais eram guardas de uma cancela onde com frequência passavam viaturas, pessoas e animais.
José Lúcio foi por ali vivendo e vendo os comboios a passar. Os primeiros a carvão com demasiado fumo e barulho ao que se seguiram as máquinas a diesel, também elas barulhentas. Aprendeu todos os horários e conhecia como ninguém os maquinistas que lhe acenavam com alegria.
O apeadeiro ficava a poucos quilómetros mas o jovem jamais por lá aparecera. Assim que o trem passava Zé punha-se no meio dos carris até ver desaparecer a última carruagem numa curva onde as linhas paralelas pareciam tocar-se.
Todas as noites, sempre que se deitava na cama malcheirosa com um rancho de irmãos, ficava a tentar adivinhar o que haveria para lá daquela curva. Algo que nunca perguntara a ninguém. Uns diziam que para um dos lados seria a capital Lisboa, o país, o mundo. E para o outro lado, o que haveria? Ninguém falava disso.
A escola era numa aldeia longínqua. Estivesse frio ou calor, chuva ou vento, José Lúcio punha-se sempre a caminho. No entanto, cedo percebeu que o conhecimento lhe daria vantagem. Mas ao mesmo tempo temia as respostas a tantas perguntas que invadiam o seu cérebro e que nunca formulara a ninguém.
Sempre que podia ajudava pai e mãe a subir e a descer a cancela e nunca vira nenhum acidente. Ainda bem pensava ele.
Mas todos os dias olhava a estrada de ferro que levava tanta gente…
Certa madrugada, já com 16 anos, pegou num bornal encheu-o com o que podia levar para comer e partiu linha fora à descoberta do que haveria para lá da curva…