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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

O Pai Natal

Assim que percebeu pelas frinchas o primeiro raio de sol, saiu do seu costumado buraco.

Estava frio, muito frio. Os velhos e surrados cobertores ou o que restava deles e que usava para se tapar, eram claramente insuficientes para as noites gélidas da cidade.

Havia alguns anos que dormia na rua. Não imaginava quantos, pois os dias passavam por si como os parasitas que lhe cobriam o corpo sujo. Nem se recordava da última vez que tomara banho.

À noite era costume aparecerem umas pessoas que distribuíam comida e agasalhos e até medicamentos, quando se justificava. Mas ele nessa altura fugia sempre para longe onde ninguém o visse. Assim que partiam regressava ao seu nicho.

Durante muitos anos ele fora o grande mestre, o senhor de todos os conhecimentos e por isso respeitado. Depois, um dia passou de imprescindível a supérfluo. Despedido e sem coragem para voltar para casa refugiou-se, nesse fim de tarde, na bebida e mais tarde num vão de um prédio semi abandonado. Ele e outros!

Arrumou o caixote tapando as suas parcas tralhas que fora acumulando e partiu em busca de algo para comer. Jamais mendigara e por isso socorria-se dos caixotes do lixo onde havia sempre qualquer coisa que dava para ele aproveitar.

O movimento da cidade naquela manhã avolumava-se. Chegou perto de um contentor negro, abriu a tampa mas nem chegou a espreitar pois sentiu uma mão nas costas. Deu um salto súbito, para logo reconhecer um companheiro de infortúnio:

- Olá Chingalim – cumprimentou o recém-chegado.

- Viva Ginga.

Os nomes verdadeiros haviam desaparecido.

- Achas que há aqui alguma coisa que se coma?

- Costuma haver… - e reabriu a tampa, donde retirou diversas caixas, para comunicar:

- Olha temos almoço... Repara…

O Ginga olhou, meteu a mão e acrescentou:

- Ena tivemos sorte… Deve ser desta época do Natal…

Dentro das caixas grossos nacos de pizza intactos e outros acepipes que alguém aventara fora. Sentados no chão ao lado do caixote ambos foram consolando o estômago.

Após o repasto Chingalim despediu-se do colega e partiu. Procurava algo proveitoso, especialmente roupas. Palmilhou, durante todo o dia, quilómetros e chafurdou em dezenas de caixotes.

A maioria dos transeuntes fugiam dele com nojo do seu aspecto e do seu cheiro. Todavia Deolindo – o seu nome verdadeiro – já estava habituado. Também em tempos fora assim.

Um vento glaciar soprava agora com invulgar força obrigando-o a regressar ao seu abrigo de papel não fosse o vento levá-lo. Enfiou-se dentro da caixa que fora de um frigorífico e embrulhou-se na pouca roupa que tinha à mão, alguma dela encontrada nessa tarde.

Naquele instante e no abrigo partilhado com diversos sem-abrigo só estava ele e assim ficou durante muito tempo. Enrolou-se nos trapos tentando aquecer-se e aproveitou para viajar até um passado já longínquo.

O Natal… como podia esquecer as festas lá de casa com tanta gente, tanta comida, tanta alegria? Hoje estava só e a família residia lá longe na memória e nas recordações. Sentiu dentro do caixote o vento frio de fim de tarde e encolheu-se ainda mais.

Depois escutou vozes que seriam certamente dos seus companheiros de infortúnio que regressavam.

Retornou às suas lembranças e não conseguiu evitar que uma lágrima caísse pela face e se embrenhasse na longuíssima barba branca.

Os primeiros tempos de rua haviam sido duros. As saudades dos filhos e da mulher pareciam não parar de aumentar. Que seria deles? Crescidos… adultos.

Serenamente preso às memórias acabou por adormecer.

Acordou quando sentiu a caixa abanar de forma incomum. Estava gelado e acabou por sair do seu covil, quando deu de caras com uma quantidade de gente de diversas idades, todos vestidos com aqueles conhecidos casacos de voluntários.

- Boa noite – cumprimentou uma voz feminina.

- B’noite – respondeu a medo.

- Tem frio?

Acenou que sim com a cabeça. E logo caiu no seu colo um par de cobertores novos.

- Tem fome?

Acenou que não. Mas outrém depositou-lhe na mão uma embalagem de plástico com sopa quente.

- Aproveite que está quentinha…

Deolindo escutou as indicações e levantou os olhos para a voz. Os seus olhares cruzaram-se por breves instantes. Depois o sem-abrigo fixou-se no chão frio da lage.

- Oiça lá não quer ir com a gente tomar um banho? – perguntou outra voz.

Acenou que não.

- Como se chama? – retornou a primeira voz.

- Chingalim – respondeu em surdina.

- Isso não é nome… é alcunha. Vá diga-me o seu nome verdadeiro…

A mesma voz feminina parecia querer acordar alguns fantasmas. Mas foi respondendo:

- Não me lembro!

- Vá faça um esforço… Diga lá como se chama.

- Deolindo…

A figura que o interpelara recuou. E afastou-se dando lugar a outros voluntários. Entretanto Chingalim aproveitou para se embrulhar nos novos abafos. Só que alguém o destapou e pediu:

- Importa-se de se colocar de pé se fizer favor.

A forma autoritária fez com que Deolindo levantasse o olhar percebendo que fora um polícia que dera a ordem. Amedrontado tentou afastar-se, mas alguém se colocou à frente impedindo a sua eventual fuga.

De súbito um menino aproximou-se e exclamou com uma voz saborosa de criança:

- Xiii… o senhor parece o Pai Natal.

Alguém por detrás comentou:

- Pois parece o Pai Natal, mas é só o teu avô!