Contos Tontos - 26
Do outro lado da secretária o médico abriu o sobrescrito, desdobrou o papel e percorreu todos os items. A mão esquerda foi à cabeça instintivamente, dando azo a que o entregador desconfiasse de algo.
Por fim disse:
- Bom está tudo... mais ou menos bom. Só há aqui um pormenor que pretendo esclarecido.
O doente recostado na cadeira, de perna traçada e mãos no joelho, avançou calmamente:
- Oiça Doutor... deixe-se de rodeios e diga o que se passa. Já percebi que há aí algo que não será bom. Vá diga lá o que tenho.
O médico continuava a observar o papel. A bola estava agora do seu lado. Dizer ou não a verdade pareceu ser a questão principal.
- Então Doutor diga o que lhe parece! Não tenho medo de nada. E não o culpo daquilo que tiver...
- Oiça... - respondeu finalmente - já percebi que é um homem pragmático. Assim digo-lhe tudo o que tem e qual vai ser o seu futuro.
- Vá desembuche...
- Bom o meu caro tem... um cancro em estado avançado... Mas tem tratamento.
O silêncio reinou na sala por uns curtos minutos. Até que:
- Quanto tempo terei de vida a partir de agora?
O médico não esperava aquela questão. Assim respirou antes de dar a resposta. Depois:
- Não imagino... Com tratamentos pode ainda durar muitos anos.
- Bom... digo-lhe já que não vou fazer qualquer tratamento. Nem direi à minha família o que tenho.
- Mas isso é um absurdo...
- Pode ser que sim. Mas a partir de agora se disser à minha família todos irão sofrer até eu morrer. Se morrer em breve só sofrerão com a minha morte e não com o meu sofrimento.
- Desculpe lá, mas se morrer em breve as pessoas sofrerão mais depressa com a sua morte. Ao invés, se tomar medicamentação vai poder viver mais anos e a sua família só sentirá a sua perda daqui a muito tempo.
O doente levantou-se da cadeira e contrapôs:
- Já viu com toda a certeza gente a definhar com os tratamentos, certo?
- Claro que sim, mas...
O outro interrompeu:
- Alguma vez deu conta do que sofre a família ao assistir ao lento murchar do familiar?
- Provavelmente não... mas... calculo...
- Então doutor... deixe-me morrer em paz. É só o que lhe peço!