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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Tontos - 23

Caía uma chuva miúda, quase pó! A luz mortiça dos candeeiros deixava antever traços finos e oblíquos de água fria. Alcina refugiou-se debaixo do toldo de uma velha loja de ferragens, fechada havia muitos anos. A noite não estava convidativa mas havia sempre quem estivesse disposto a comprar felicidade e prazer.

Tal como o antigo patrão que a iniciara naquela vida… Uma vida perdida ou talvez não. Doutra forma estaria, aos 36 anos, rodeada de um rancho de filhos que tinha de sustentar, um marido bêbado para aturar, o gado para tratar e as terras para amanhar.

Parou um carro. Saiu da cobertura, aproximou-se da janela que desceu lentamente. Entre sorrisos, disparou um costumado cumprimento:

- Boa noite, sortudo…

- Sortudo?

- Sim! Vejo que queres companhia. E estou aqui para te ajudar…

As frases eram invariavelmente as mesmas, proferidas naquele tom meloso de provocação libidinosa. Afastou-se do carro um pouco para que a apreciasse. O condutor não gostou do que viu e sem nada dizer, arrancou.

Mais à frente duas jovens tiveram mais sorte e entraram na viatura.

Alcina nem pestanejou. Já sabia que era assim. A sua idade trazia-lhe profundos sulcos na face, que nem as camadas de base conseguiam disfarçar.

Todavia o corpo parecia menos mau, assim julgava. Vestia nessa noite uma minisaia curta que mais parecia um cinto. Um top cotado e meias de renda. Por cima, um casaco comprido de um vermelho berrante mas atractivo.

Regressou ao toldo e sentou-se no degrau frio e molhado. Encostou a cabeça à parede e adormeceu. Nesse sono acabou por viajar ao seu passado, umas vezes fantástico, outras nem tanto. Parecia sentir ainda o cheiro do pão acabado de cozer e outrossim do corpo gordo e mal-cheiroso do velho que a possuíra pela primeira vez. Aquele sono levou-a de regresso à sua antiga escola, onde as letras e os números a animavam. E à mãe que desejava colocar a filha a estudar, mas o pai, austero e avaro, só pretendia dinheiro.

Sentiu um toque muito ao de leve no ombro. Acordou sobressaltada e deu de caras com um jovem rapaz que a mirava. Perguntou:

- Não achas que és muito novo para andares às meninas?

O jovem voluntário olhou para os colegas ao lado e sorriu. Insistiu:

- Posso ajudá-la nalguma coisa?

Alcina percebendo finalmente o equívoco, respondeu:

- Hum, só gostava de voltar a ser feliz!