Contos tontos - 21
A noite havia sido tórrida. Entre ambos uma miríade de beijos, carícias e desejos desvendados. Finalmente cansados, foi ela a primeira a falar.
- E se ninguém conseguisse mentir? – Perguntou naquela voz melosa de mulher apaixonada.
Ele olhou-a de soslaio e percebeu que a pergunta tinha outra intenção que apenas uma mera resposta dele. Ainda assim arriscou:
- Não haveria Pai Natal. Nem Natal. Nem prendas, nem subsídios (ups… mas isso já não há!!!). Não haveria política, nem políticos. Nem votos, nem eleitores… - ele parecia momentaneamente perdido e imparável na resposta.
-… Não haveria traição, nem tristeza. Nem palavras ocas, nem promessas vãs. Nem sorrisos disfarçados, nem alegrias desmedidas.
Ela ergueu-se do seu conforto e mesmo desnudada depositou nos lábios do amante um beijo e uma nova questão:
- Acreditas que haja quem não minta?
Ele cruzou os braços por debaixo da cabeça e olhando o tecto alvo desabafou:
- Eu! Eu não minto. Posso eventualmente omitir mas não minto.
Ela insistiu:
- Mas se todos nós não conseguíssemos mentir? Apenas disséssemos a verdade?
Ele respirou fundo como estivesse a fazer um frete e devolveu:
- A vida era demasiado insossa para ser vivida. O que apimenta os dias é o risco de sermos levados a mentir.
- Mas ainda agora disseste que não mentias…
Apanhado na contradição esfarrapou uma má desculpa:
- Falava em termos da nossa sociedade, como está ora constituída…
- Sabes que mentir é feio?
- E dizer a verdade magoa...
Ela deitou-se na cama sedosa e foi a sua vez de fixar o tecto. Por fim insistiu num tom pouco amistoso:
- É preferível viver numa mentira permanente… só porque a verdade dói?
Ele calou-se. A conversa toldara-se num tema pouco simpático. A noite fora (quase) perfeita… Um jantar, uma dança breve, aqueles primeiros toques. Levantou-se então da cama, nu e dirigiu-se à casa de banho. Regressou com a escova de dentes enfiada na boca e a espuma a fugir pelos cantos e a sucessiva acção da escova a bailar. Após a passageira irritação ela olhou com ternura e vaidade, o corpo musculado e esbelto do amante, sorriu interiormente e pensou:
- A este homem jamais será revelada a verdade, porque há-se sempre julgar que lhe mentem! Ou será que não?