O padre acabara de receber em confissão, uma notícia que o deixara prostrado. Devagar sacudiu uma pequena partícula branca que sobressaía da batina enquanto procurava na sua mente as palavras para uma resposta. Passou a mão pelo cabelo alvo e ajeitou um cruxifixo de madeira que carregava ao pescoço.
Por fim adiantou:
- Esse erro jamais poderá ser emendado! E o meu irmão sabe isso…
A fraternidade a que apelava o padre não carregava do mesmo sentido que aquela em que vivera mais de vinte anos. Todavia aceitou a irmandade mas não a resposta:
- Já vivi demasiado tempo para perceber que há muita coisa que posso fazer para me remir do meu erro. Não me venha dizer que nada há que se possa fazer?
A igreja estava em silêncio. A porta principal estava aberta e poderia dar acesso a outros crentes, mas estes eram cada vez em menor número e assim o perigo de alguém ouvir a conversa parecia ser nulo. A ética eclesiástica mandava perdoar, ensinar novos caminhos, colocar a palavra de Deus na frente dos pecadores e usá-la como arma que abalava consciências. Mas aquela falta parecia ser demasiada complicada para ser resolvida apenas com uma mera absolvição… A verdade nem sempre era vista como a melhor solução para este tipo de falha. E a sua denúncia pública advinda de confissão não fazia sentido. E pior… o seu estatuto como padre ficaria profundamente arruinado.
O tempo parecia correr lesto e o confessor pareceu ficar mais nervoso. Pelas frestas do pequeno cubículo o padre podia ver toda a nave principal da sua bela igreja. Não reparou em alguém que tivesse entretanto entrado.
- Estou tão abismado com a sua falta, que nem tenho uma resposta a seu gosto.
- Sei que sim, senhor Padre. Mas eu necessito de ter uma resposta rápida. A minha vida depende disso. A minha e demais pessoas… E só o senhor tem capacidade para me ajudar.
Um suspiro longo escutado pelo confessor retirou-lhe credibilidade. Do lado de fora o homem levantou-se numa reacção quase violenta e argumentou:
- Já entendi que não me vai ajudar. Vou procurar quem me valha. Eu apenas afirmei que não acredito em Jesus. Mas falo do treinador do Sporting… não do seu cruxificado.
Ajeitou a gravata quando pressentiu que a porta se preparava para ser aberta. Um homem corpulento, de tez pálida penetrou na sala estendendo a mão para a visita. Não obstante o aspecto volumoso parecia afável.
- Engenheiro Daniel Messias? Como está? – Cumprimentou.
A visita retribuiu:
- Muito bem, obrigado! Mas trate-me só pelo meu nome, se fizer favor.
O anfitrião sorriu com a franqueza e acrescentou:
- Claro. Faça o fineza de se sentar.
E continuou:
- Veio responder ao anúncio?
- Exactamente!
- Como compreende há uma série de questões que gostaria de ver esclarecidas…
- Com todo o gosto!
O entrevistador recostou-se na cadeira e desbobinou um ror de perguntas. Ao fim de quase uma hora declarou:
- Creio que preenche todos os nossos requisitos. Sabe do negócio, tem ideias precisas do que necessitamos… Isso é muito bom! Já agora posso só colocar uma questão do foro mais pessoal?
- Obviamente…
- Quais são neste momento os seus sonhos, os seus desejos?
Resposta contínua:
- Não tenho sonhos…
- Como não?
- É como lhe disse… Não são os sonhos que me fazem mover.
- Então como chegou aqui? Como se licenciou?
- Desde cedo tive consciência que os sonhos só me atrapalhavam. Por isso abdiquei deles e apenas dei valor à lógica da vida.
Atrapalhado por aquela postura e entrevistador sentiu-se atemorizado. No entanto foi acrescentando:
- Nunca desejou um brinquedo, ter uma namorada, comprar um carro?
- Nunca! Sinto que só devo ter aquilo que posso. Os sonhos só acarretam desilusão, ansiedade e obviamente depressão. Sou pragmático e realista. O curso que frequentei não correspondeu a um desejo, mas a um estudo lógico pois rapidamente percebi que esta seria a profissão com maior empregabilidade.
- Mas acredite, que o melhor do sonho não está na conquista final… Apenas no caminho até lá!
- Acredito que assim seja. Mas prefiro não sonhar… Nem de noite!
- Se ninguém sonhasse viveríamos muito longe desta realidade. O sonho é que faz andar o mundo…
- Fez. Não faz mais! Hoje vivemos num mundo adepto de certezas e pragmatismos. Ninguém mais quer saber se o sonho comanda a vida… Sonhar com algo, como forma de vida, é somente uma mera utopia… ultrapassada.
- Nunca vi o mundo por esse prisma… sinceramente. E nessa sua filosofia onde cabe a felicidade?
A pergunta tinha rasteira. A resposta dada esquivou-se a ela:
Mirou-se ao espelho e gostou do que viu. Estava completamente nua e assim pode com calma autoavaliar-se: o cabelo longo cor de avelã tapava-lhe quase todas as costas, a face parecia ter sido esculpida por um mestre renascentista, os olhos cor de azeitona pouco madura.
Descendo pode apreciar o pescoço pequeno. O peito saliente e firme destacava-se no corpo bronzeado. Finalmente um mui singelo traço de pêlos púbicos que terminava na zona mais íntima.
Passou a mão pelo ventre magro e sorriu ao mesmo tempo que imaginava quantas das suas amigas adorariam ter a sua beleza e formosura. Sentia-se perfeita!
Era sexta feira e a noite aproximava-se cálida e acolhedora. Os ingredientes perfeitos para a festa. Rodou nos calcanhares e pegou no telemóvel. Nenhuma mensagem.
Olhou as horas e achou que realmente ainda era muito cedo. Decidiu vestir-se informalmente e comer qualquer coisa antes de sair. Por fim um toque de mensagem alertou-a para alguma novidade.
Correu para o aparelho desbloqueou-o e leu:
- Festa cancelada, fica para próxima!
Irritada atirou com o aparelho para o sofá e deu um grito fino. No instante seguinte estava de volta ao telemóvel a enviar mensagens. Não gostou das respostas… Alguém a desconvidara… Como seria possível? A ela, a única que os rapazes adoravam conhecer… A rapariga mais bonita da sociedade… Aquela de quem todas tinham inveja…
Finalmente o telemóvel tocou. Não conheceu o número, todavia atendeu… Mal conseguia ouvir tal era a barulheira do outro lado… Pensou em desligar mas logo a seguir perguntou: