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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos tontos! - 11

O público ia-se sentando no enorme anfiteatro. As duas filas da frente estavam reservadas para as personagens ilustres. Todavia ainda era demasiado cedo para chegarem. A verdade é que a sua última lição estava marcada somente para as dez horas.

Sentado atrás duma secretária que simpaticamente haviam colocado naquela espécie de palco, revia alguns rasbicos que havia escrito na noite anterior. Só que aquilo parecia um texto forçado, pouco adaptado ao seu último dia como professor. Ninguém esperaria dele uma lição onde desenvolvesse teorias para a cura desta ou daquela doença. Pretendiam, isso sim, um testemunho de vida, uma visão de alguém que fora uma referência no mundo médico. Os convidados continuavam a chegar. Alguns ao vê-lo já sentado esboçavam um aceno, que ele devolvia com um mero sorriso.

A sala estava agora quase cheia. Olhou o relógio, um Patek Phillipe que comprara em Zurique e que lhe custara uma pequena fortuna, e preparou-se para a lição final. Sentiu-se pela primeira vez, em mais de quarenta anos como professor, nervoso. Uma tremedeira estranha e que não conhecia. Respirou fundo.

Dez horas em ponto. Levantou-se da secretária e aproximou-se do púlpito, ajeitou o microfone à sua altura, enquanto olhou a plateia onde ainda se sentavam os derradeiros assistentes. Retirou os pequenos óculos duma caixa e aguardou a quietude da sala.

Tanta gente sua conhecida... Tanta! A aguardar uma lição inesquecível. E sem nada de relevante para comunicar... A não ser... E de repente fez-se luz. Os papéis que levara consigo guardou-os no bolso e fechando os olhos, deu início à lição:

- Bom dia caríssimos amigos. Dou início a esta última lição com a declaração de que só me restam três meses de vida. Diagnostiquei a mim mesmo uma doença do foro oncológico e vocês são assim os primeiros a saber!

Contos tontos! - 10

Alta, bonita, jovem, de pele alva e olhos muito azuis. Os seus genuínos cabelos loiros davam-lhe um ar ainda mais sofisticado.

Usava quase sempre vestidos clássicos, nunca curtos e sapatos rasos.

Estudara muito e com isso dedicara-se por inteiro a uma carreira profissional. Não se lhe conheciam amigos nem amigas.

Fria, calculista era sobejamente conhecida pelo seu mau feitio.

Muito competente no seu trabalho, ria pouco e não dava espaço a penetrarem no seu mundo. Defendia-se.

O convite naquela tarde para um jantar informal entre todos os colaboradores viera por mail e partira da gerencia da empresa . Ela resistiu quanto pode.

- Não me parece muito simpático não aparecer - disse-lhe um dos directores!

Enfim no dia e na hora prevista lá apareceu, vestida informalmente com umas calças de ganga e um camisolão de lã, que a noite previa-se fria. Mesmo assim surgiu deslumbrante.

A maioria dos colegas não a conheciam e secretamente fizeram diversas apreciações marialvas.

- Muita gira a miúda! Mas tem um feitio do piorio, dizem.

- Grande "brasa". Onde é que "isto" está a trabalhar?

Avisados do seu terrível feitio ninguém teve coragem de se aproximar dela durante o jantar. E ela assim ficou quase sempre sozinha falando apenas algumas palavras de circunstância com os colegas sentados na mesa a seu lado.

Assim que o jantar acabou diversos colaboradores juntaram-se e decidiram:

- Pessoal vamos para a "night"?

Tanto as mulheres e homens mais jovens assumiram com entusiasmo o compromisso. E combinaram em que carros iam. E partiram todos.

Ao invés ela ficou ali, só, a olhar a noite fria!

Vi e sente!

Vi o teu crescer lento,

tão lento que nem parecias vivo.

Vi os medos por ti elevarem-se,

a dramas e tragédias sem razão.

 

Vi o ventre de tua mãe ficar redondo,

qual fruta verde e vermelha.

Vi a alegria dos teus movimentos,

como se fosses um irrequieto.

 

Vi a azáfama em teu redor

como se fosses o único no mundo.

Vi a tua forma franzina mas serena,

oferecendo finalmente calma e alegria.

 

Vicente! Isto tudo eu vi

e senti!

 

 

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Contos tontos! - 9

Foi desfiando folhas atrás de folhas. Cadernos e mais cadernos... Dezenas deles!

Lia alguns textos e perguntava-se como nunca dera por nada. Poesias, contos, pequenas crónicas do quotidiano. Tudo manuscrito naquela letra redonda e professoral.Páginas e páginas onde alguém desfiara as mágoas de uma vida.

Partira subitamente levando consigo esse segredo. Que nunca desvendou... Descoberto numa velha mala de viagem já em desuso, Óscar não conseguiu evitar as lágrimas.

Bateram à porta. Apressadamente limpou a face a um lenço e respondeu:

- Entre.

A porta abriu-se e surgiu uma menina de olhar triste. Aproximou-se devagar e perguntou:

- Que estás a fazer avô?

Quase sem perceber que a criança seria demasiado nova para escutar um desabafo disse:

- Porque será que a tua mãe me escondeu isto de mim? Ela escrevia tão bem...

Uma outra voz respondeu então pela neta:

- Porque tu nunca tiveste tempo para ti... Como querias ter tempo para os outros?