A tarde abrasava. Após uma alvorada em que a maresia amansara a fazenda, um sol a pino tisnava enfim o ar tal qual a boca de um forno antes de cozer broa. A simples brisa avolumava ainda mais o calor. Nos campos o feno doirado gemia ao brilho do astro-rei. Até a passarada buscava as beiras das pias, meadas de água verde e salobra, para refrescar a penugem. Impossível alguém sair de casa para trabalhar.
No amontoado de casas brancas e rasteiras, solenemente perfiladas como um exército em parada, que era a aldeia, a populaça dividia-se entre a sombra de uma soleira, na maioria mulheres, que teciam intermináveis tagarelices sobre tudo e nada, e a taberna do tio Faúlha, onde os homens enterravam nas cervejas e nos copos de vinho as forças do dia. Também aqui se desfiavam rosários de conversas onde a caça e o amanho cresciam como assuntos únicos e obrigatórios.
Na pacatez da sombra benfazeja de um velho e enorme sobreiro, Mário atenta no moio de favas por debulhar que dorme na laje cinzenta e escaldante, esperando pela aventura de um trilho intenso. Duas vacas cor de mel repousam no chão ao lado. Ruminam feno com a calma de quem sabe que a tarde está ganha. Pura ilusão! O homem, indeciso, busca no seu âmago o desejo imenso de ir trabalhar, mas a indolência daquela tarde abafada, empurra-o para o sossego e deleite.
De súbito e como de uma mola se tratasse, salta do seu banco de granito, ergue-se com rapidez e dirigi-se às vacas. Segura na arreata que envolve o cachaço do gado e arrasta este para a alfaia. Carrega a canga nas bestas, ajusta com vigor a cilha, atrela o trilho e num instante conduz o par para cima do cereal. O vento tentando adivinhar a vontade de Mário, sopra então com mais força, elevando no ar uma nuvem de pó branco que não passa indiferente ao pacato povo da aldeia. Na terraço da taberna os homens beberricam em copos mal lavados e repletos, vinho ou cerveja. Perscrutam o horizonte e comentam:
- Anda alguém a lavrar!
- Com este tempo tão seco? Não creio. Não há bico de arado que entre nesta terra ressequida.
- Para mim aquilo é para os lados do Algar. Portanto só pode ser o Mário a debulhar as favas.
- Deve ser, deve! Agora me lembro! Ontem passei encostadinho à eira dele e reparei que estava cheia. Mas agora trabalhar com este calor! Só de doidos.
Mas o doido continuava a puxar pelas vacas. Em círculos perfeitos:
- Iaa Faneca! Bora Florida – animava o agricultor.
De quando em vez lançava para o chão um olhar entendido. O bafo de calor prosseguia ajudado pelo suão quente, que descia serra abaixo e envolvia o povoado como um manto. Uma ligeira sombra duma velha oliveira começava a alastrar no recinto da eira. Parou então para dar algum repouso e água aos animais e aproveitou para virar a palha com uma forquilha de bicos quase gastos.
- Mais umas voltas e fica pronto! – observou.
A eira, um círculo quase perfeito de pedras lisas e gastas de tanta labuta, era circundada por um muro atarracado, não autorizando que as sementes escapassem ao controlo do homem. Uma entrada estreita era todavia suficiente para passar um carro puxado pelas vacas.
Nas tardes de estio rigoroso, um enorme lagarto verde, aproveitava a palha para repousar e alimentar-se de pequenos insectos que por ali proliferavam. Desta vez jazia imóvel no cimo do muro cinza, indiferente ao homem e às bestas. Mário conhecia-o há muito e até lhe dera um nome: Baltazar.
- Ora viva. Já há muito que não te via por estas paragens meu mariola!
O réptil habituado àquele aldeão pacato e trabalhador, deixou-se ficar em silêncio, como era seu hábito, quiçá desatento aos epítetos do lavrador. Desatreladas as vacas, no fim da jorna, aquelas procuraram a enorme pia onde enfiaram as cabeças encabrestadas e donde sorveram com natural ruído a água que as saciou.
Palha puxada para um lado, logo o rodo juntou num monte as sementes esverdeadas. Com a ajuda da aragem do fim de tarde, ia limpando o pó das favas enrijecidas. O vasculho dançava na mão, qual bailarina ao som duma valsa vianense. Crescia o monte. E a grande seara, resumia-se agora a palha trilhada e ao volume menor de bagos. A medida quadrada de madeira de castanho feita, vai-se enchendo pelas mãos ásperas e grossas e despejadas nas sacas de serapilheira, contando:
- ... 59, 60, 61... alqueires. Não foi mau!...
A tarde cai em ondas de fogo. A noite fica já ali, por detrás do Cabeço da Abelha. Atrela as vacas ao carro, carrega as sacas repletas e bem atadas e salta para cima, também. Com o aguilhão comprido, toca os animais e ordena:
- Bora lá! Vamos!
As vacas sabem o caminho de regresso a casa. No seu passo sereno e compassado arribam finalmente. A noite envolve o lugar numa modorra própria de Estio. E quente, tal como o dia. Mário desatrela o gado e deixa que este procure a escuridão e a frescura do estábulo. Na manjedoura cai agora palha em molhos unidos como enxames.
O homem repara na carga e decide que o corpo já pede ripanço:
- Amanhã descarrego!
Finalmente entra na cozinha pela porta da alpendorada, senta-se à mesa e espera. A lua penetra na divisão por uma janela e é naquele instante a única luz da casa. A lareira está fria. Na parede um espaldar exibe tachos, panelas, pratos e tigelas devidamente enfileiradas. As pias do azeite e das chouriças sossegam na despensa escura.
Ninguém surge. Nenhuma voz se ouve. É então que Mário se recorda com amargura e tristeza: havia três semanas que ficara viúvo! A sua Dores partira definitivamente, deixando-o só e desalentado. Ainda não se habituara à negra solidão. Todas as tardes quando regressava ao lar onde vivera perto de quarenta anos com a mulher, sentia aquele vazio, aquela dor.
Os filhos haviam partido há muito para as suas casas e afazeres, logo após o funeral da mãe. Pretenderam levá-lo mas ele preferira ficar ali, carpindo uma ausência infinita.
Almoçando onde calhava mas geralmente em casa dos irmãos, regressa no fim do dia ao lar. Porém quando a noite o aperta e envolve ... ai a noite!
Estremeceu sobressaltado com o berro. O seu nome ecoou sonoramente pela casa adormecida. Era sempre assim. O pai jamais soubera chamar por quem quer que fosse. Um estrondoso clamor e pronto. Havia que levantar e obedecer. Ensonado, afastou a velha manta de trapos, vestiu a camisa outrora alva e saiu em busca do antecessor. Achou-o no pátio aparelhando as duas burras com diversos talegos de milho. A alvorada ainda vinha longe mas a jornada pretendia-se madrugadora. - Pegas nelas e vais ao João do Pão... – ordenou o pai brusca e secamente, sem outras palavras ou qualquer cumprimento. Lá se ia a combinação com o amigo Tavares para montar armadilhas nas Pias do Forno de Cima. - Sabes o caminho? – perguntou abruptamente. - Sei sim, meu pai – respondeu com a deferência que não sentia. - Ficas lá à espera. Não vens sem a farinha! – Advertiu. Na última viagem ao moleiro ficara por lá três dias. Agora poderia suceder o mesmo. Bastaria para tanto não haver vento. E desta vez nem uma bucha na sacola para matar a fome. Ainda assim foi ao poço e trouxe de lá uma infusa cheia de água fresca e pura. Um pedaço de cortiça vedou e boca evitando fugas durante a caminhada. Pôs-se a caminho. Os pés negros e sujos pisavam terra e pedras num passo comedido. E nem lhe doíam tal era o tamanho dos calos. Poupava assim os sapatos para o baile do sábado seguinte. Ao longe uma luz ténue surgia, como de um guia se tratasse. A alvorada dera lugar à noite calma. Já despontara o sol havia muito quando parou pela primeira vez. Olhou a aldeia cravada no fundo de um vale rasgado pela natureza e pareceu-lhe tão minúscula. Pequenos pontos brancos salpicavam a paisagem atapetada de diversos tons de esperança. Nas encostas serranas o verde escuro e inquieto, das copas dos pinheiros predominava sobre a restante paisagem. E a paz que dali de desfrutava? Escutavam-se facilmente os sons da natureza: o ribeiro serpenteando por entre pequenas pedras em límpidos e constantes marejares; o trinar dos rouxinóis e dos melros num despique imperdível; as correrias desenfreadas de uma lebre em busca da toca salvadora. As burras palmilhavam os estreitos caminhos, devagar. De quando em vez tendiam a encostar-se às paredes que delimitavam as fazendas amanhadas, tentando aliviar-se do peso. Mas Carlos já conhecia bem as manhas dos animais e logo que percebia algum aproximar dos muros, o jovem retirava-lhes a vontade com uma chibatada forte. Todavia naquela manhã uma delas teimava em atrasar a viagem. Faltava apenas um légua, quando a besta fugindo por breves instantes aos olhos atentos do rapaz, acabou por rasgar um dos sacos despejando todo o conteúdo no chão. Parecia um silvo a primeira queda do milho. Perante tal cenário o moço parou enquanto amaldiçoava a sorte. No seu bolso moravam sempre pequenos atavios que ele usou para remendar o rasgão no talego. Depois apanhou o milho espalhado e reencheu o saco. Um trabalho moroso e aborrecido. Retomou o caminho e um par de horas mais tarde achou finalmente o João do Pão. O moleiro era um homem já entrado na idade, magro, de pele seca e longa barba branca. Na boca podia-se notar apenas um incisivo. As velas, ufaneiras pareciam enormes leques, prontas a sacudir o mundo. O som sibilante do movimento rotativo ecoava pela encosta que se espraiava na frente do frondoso moinho.. Quando Carlos se aproximou, o velho João aparava um naco de broa, com uma navalha mal amolada. Distraidamente lançou a apara para o parapeito da pequena janela, embutida na grossa parede do moinho. Olhou o jovem e conhecendo-o logo exclamou: - Olha quem cá está? O Carlitos... O jovem esboçou um sorriso. Depois perguntou: - Posso descarregar as burras? - Claro rapaz. Traz cá os sacos. Os talegos foram carregados para dentro onde o moleiro ultimava uma moagem: - Põe aí em cima – ordenou. O jovem obedeceu. A manhã tornara-se numa tarde, solarenga e fresca. Um vento constante soprava nos panos fortes, fazendo-os rodopiar, qual roleta na feira de S. Sebastião, numa corrida sem fim. A hora de almoço há muito que havia passado e Carlos ainda não comera nada durante todo o dia. A fome revolvia-lhe o estômago, qual mar em dia de tormenta. Um olhar fugiu para o parapeito da janela, onde o velho João colocava as aparas duras de broa. Reentrou no moinho onde o mestre pesava os talegos antes de lhes retirar a maquia e perguntou-lhe: - Tio João... aquele pão – hesitou. - Que foi rapaz? - O pão que está na janela é seu? – perguntou como não soubesse de antemão a resposta. - Foi! Agora é da passarada que de vez em quando vai lá depenicar umas côdeas. - Posso... posso ficar com umas quantas? - Podes, podes! Mas olha que estão muito rijas – avisou admirado com a solicitação. Seria que o jovem pretendia comer aquelas nacos de pão de milho? - Não importa! Bem-haja – agradeceu o rapaz com sinceridade. De seguida foi à janela e rapou de todas as aparas de broa que lá encontrou. Os pássaros tinham mais onde comer. Ele não! Sentou-se numa meia mó partida e gasta pelo uso e comeu como de um belo manjar se tratasse. A seu lado encostou a infusa donde beberricava água fresca de quando em vez. Algum pão estava naturalmente muito duro, pelo sol e vento, mas ainda assim não escapou ao apetite voraz de Carlos. Da soleira da porta o velho João de braços cruzados, mirou aquele jovem e recordou-se dos tempos de juventude e em que qualquer coisa lhe servia para matar a maldita fome. Outros tempos! Tempos de penúria e descrença. De muita fome e tristeza. De trabalho e mais trabalho. Mas aquele rapaz vivia naquele presente momento, outros tempos... também! Míngua, revolta, compaixão e raiva. Tudo num só instante. Notava-se no seu olhar. Como ele, João, conhecia de sobra esses sentimentos. Anos a carpir mágoas de barriga vazia... Esboçou ternamente um sorriso que mais parecia uma lágrima... - Pão e água... – comentou finalmente em surdina para os seus botões.
A tempestade descia a encosta em torrentes de chuva e vento. Em meses de invernia era frequente a rudeza dos temporais, com a água a escorrer em verdadeiros ribeiros ladeira abaixo, pelas canadas de terra vermelha e negra. Todavia naquele ano a intempérie parecia querer tudo levar na sua frente. Os inhames fustigados pelos aguaceiros fortes quase quebravam nas suas folhas largas e côncavas. O vento no seu rugir frenético rasgava as searas de milho com violência. Finalmente crescia da costa, logo a seguir ao caminho de terra batida, o clamor forte e impetuoso do mar sovando as rochas silenciosas e frias. O síbilo dos imprevisíveis refolgadouros – o Felix Maqueiro, mais conhecido pelo Pé Grande, desapareceu em dia de pesca, ao cair num desses buracos que a natureza criara, quiçá para sua própria defesa - ouvia-se agora mais longe. O mar penetrava pelas entranhas de lava, outrora incandescente, e saía em jactos que se erguiam no ar, quais foguetes em dia de festa do Divino Espírito Santo.</p>
Na pequena bacia da aldeia piscatória, as barcas e as traineiras elevavam-se e desciam num bailado invulgar, ao sabor das vagas que morriam com estrondo nas muralhas negras. Os grossos cabos que agarravam as frágeis embarcações a terra, quase cediam à imensa força das águas oceânicas As mesmas águas que em dias menos agitados, enchiam por completo os barcos de bom peixe. Uma alegria, quando assim era! A prata do mar, saltava ainda parecendo querer-se mostrar. Mas a faina rendia geralmente pouco dinheiro. A maior parte das vezes, após noite e dia de mar sempre em sobressalto, cabazes repletos, mal dava para pagar a conta fiada na taberna havia semanas.
Os sucessivos relâmpagos iluminavam o fim de tarde tenebroso e escuro. O gado habituado às tempestades repousava na encosta, repleta de erva verde, indiferente ao mau tempo. Uma ou outra vaca mugia como que dando sinal da sua existência aos deuses das tormentas. Mas estes continuavam impiedosos ou desatentos, tanta era a chuva e vento.
Em casa de Américo Bailinho, a família preparava-se para comer: inhame frito em banha, linguiça e milho cozido, tudo acompanhado de broa e vinho, muito vinho. As luzes das velas, iluminavam pobremente a acanhada sala.
Ele, camponês mas também baleeiro, era um homem forte e corajoso. Na barca Santa Rita, onde era trancador, ganhara boa fama e indiscutível prestígio. Jamais cachalote algum escapara à ponta afiada e certeira do seu mortífero arpão, que ele guardava com devotada paixão por entre os seus pertences. O medo, esse sentimento tão contraditório que criva os bravos dos outros, vivia todavia permanentemente consigo. Não receava morrer na luta quase titânica contra um animal de cinquenta toneladas, temia apenas a falta do pão na família. E por isso cuidava-se. E orava...
Lá fora o mau tempo engolia a noite já escura. As portadas há muito cerradas, desde que Efigénia olhara o cimo da serra e previra...
- Temos trovoada! E da grossa!
... vibravam ao sabor do vento. E as grossas bátegas de água trazidas por Eolo, fustigavam as janelas com invulgar violência.
Após a oração dita com a solenidade que a situação obrigava, todos se lançaram ao jantar. Entretanto a tormenta parecia querer redobrar de intensidade.
- Diabo de temporal este! – comentou Américo com raro azedume.
- Deixa lá homem! Amanhã é outro dia e o mau tempo não dura sempre. Há que ter paciência - apaziguou a Efigénia.
- Três dias, já lá vão três dias, que não saio de casa. Diabo de temporal! – repetiu o marido.
E o homem foi comendo e bebendo. Que mais haveria a fazer?
De súbito e após uma rabanada de vento mais forte, o acesso à rua escancarou-se com estrondo, permitindo que a chuva e o vento compartilhassem a casa numa confraria pouco usual. Num salto Américo agarrou a búrdia.
- Diabo de porta, agora é que havia de se abrir.
Mas ao tentar encerrá-la não o conseguiu. Um poder estranho parecia surgir de fora e empurrava-a para dentro. Nem era o ímpeto do vendaval, que esse por breves instantes parecia esmorecer ligeiramente. O baleeiro uma vez mais em esforço empurrou a porta tal qual fosse lançar um arpão. Mas sem êxito.
- Mas que Diabo porque não se cerra ela? – resmungou.
As crianças tremiam agora. Crentes, viam naquele bizarro fenómeno como algo vindo do Além. A mulher, todavia serena e confiante, ajudava os filhos.
- Não tenhais medo. Isto é apenas o vento! O pai vai já resolver o assunto... Sabem como ele é forte – descansava.
Mas estranhamente aquela não se deixava mover. E Américo usava de toda a sua pujança para a contrariar. Enfim, em vão.
- Diabo de porta! Não se quer fechar! Tal coisa nunca me aconteceu! – admitia numa respiração já ofegante.
Por fim a mulher, sofrida por horas perdidas na incerteza se o homem regressava ou não de mais uma faina à baleia, ergueu-se calmamente, dirigiu-se à entrada teimosa e com a serenidade de quem ama o Divino, epilogou aquela sem esforço, terminando ali uma luta imperceptível. Espantado com o último gesto da mulher, Américo remeteu-se a um silêncio triste e vencido.
- Homem de Deus, pensa bem! Nunca ponhas o Diabo à frente das coisas... Sabe-se lá do que ele é capaz! – Proferiu a companheira à guisa de uma sentença serena.
Na mesa pobre e humilde, reinava agora a calma, acabando todos o jantar já frio, em paz e sossego.
Um manto azul forte e inconstante acariciava com doce melancolia a pequena rampa por onde subiam barcas e frágeis traineiras, arrancadas ao mar pelos pescadores. Fugiam aos inesperados e revoltosos temperamentos de um oceano sempre indomável. O dique de rocha negra e áspera embrenhava-se nas águas, criando uma defesa natural aos avanços violentas do Atlântico.
Logo que a tarde soava no relógio da Matriz, Guilherme Bento descia, apoiado na sua bengala e curvado não se sabe se ao peso dos anos ou das incontáveis fainas marítimas, a pequena ruela empedrada de blocos negros e rectilíneos. Cruzava os homens de pele morena e secos de carnes que por ali deambulavam e atirava:
- ‘Tarde, pessoal!
- ‘Tarde ti Mito... – respondiam os outros.
Ficavam depois a vê-lo desaparecer por detrás do muro do velho cais, só surgindo quase na ponta. Passo pequeno e lento, cachimbo de cana apagado ao canto da boca, boina em tempos branca cravada na cabeça, pele tisnada por muitas horas de sol e sal, olhos pequenos mas vivaços.
No extremo de um pontão de cimento, paralelo ao dique de rocha, repousava uma pequena pedra. Havia quem dissesse que fora o próprio mar que ali a colocara para que o velho Guilherme gozasse o resto dos seus dias, contemplando o horizonte onde os azuis distintos se juntavam. Vivia só, numa singela casa de um piso, caiada de branco e que adquirira no auge da sua vida de pescador. O que comia ninguém sabia, mas exalava frequentemente de sua casa o aroma característico a peixe frito.
A tarde mantinha-se serena, sem vento. No céu, o anil alternava com o plúmbeo das nuvens. Mas sem qualquer ameaça de chuva. Na enseada entrou uma traineira de casco vermelho forte. Trazia atuns e cavalas. Assim que a embarcação encostou ao pontão os homens saíram apressados. Na ponta repararam na figura mirrada do mestre Guilherme. Alguém tentou gracejar:
- Será que ele ainda a espera?
Os outros conhecedores e respeitadores da história antiga e mal dissolvida pela amargura dos anos, miraram com desdém o autor da graçola.
Mestre Guilherme sempre vivera agarrado àquele imenso mar. As suas primeiras memórias, colocam-no com apenas cinco anos no barco do avô. Num dia de pesca. E que dia... Gorazes, chernes, corvinas e sabe-se lá mais o quê... Um carrego daqueles era uma vez na vida de um homem do mar. Quando a traineira arribou ladeira acima puxado pelos homens, logo surgiu a mãe em pranto:
- Ai desgraçado! Tão pequeno e já nestas vidas. E eu aqui tão apoquentada que já prometi uma vela à Nossa Senhora da Saúde.
O mar viria naturalmente a ser o seu futuro. Primeiro com o avô, mais tarde o pai e finalmente ele como Mestre da velha traineira. Um fado cruel e injusto que ele preferiu, aos bancos desconfortáveis da escola. Um ofício tão implacável que tantas vezes pensouem desistir. Masquando olhava aquele azul tão negro e escutava aquele som tão claro contra as rochas, tudo se esvanecia e depressa regressava ao remendo das redes para nova campanha.
Anos a fio sulcou ondas e vagas numa vontade intrépida contra o mar. O sol, a chuva e o vento haviam sido os seus companheiros permanentes. Quantas vezes sentira que o seu dia tinha chegado, tal era a tormenta, a engolir de um trago a frágil traineira. Mas Deus ou fosse lá quem fosse, retirava no último instante à imensidão quase infinita do oceano o pequeno pesqueiro e colocava-o novamente no cimo das cristas brancas e bravias.
Já homem feito enamorou-se certo dia de Ana, também ela filha e neta de pescadores. Todavia a jovem tinha outras ideias para o seu futuro e logo que a oportunidade surgiu, embarcou para a América. Um desaire na vida de Guilherme. Uma ferida que nunca soube sarar.
Naquele singelo banco, Mestre Mito – era assim que os mais novos o conheciam – perscrutava o horizonte,em silêncio. Auma milha, pouco mais, um pequeno ilhéu erguia-se do mar como de uma fortaleza se tratasse. Uma milha entre dois destinos. E o mar azul, mar de azeite por agora, entre eles. E uma história ou um mistério por desvendar.
Naquela madrugada, Guilherme aprontou tudo para partir para nova faina. O sol ainda nem despontara quando largou a caminho de um oceano permanentementeem mutação. Ovento de norte crispava as primeiras vagas, que rodeavam a embarcação como um novelo. Fugindo às correntes a traineira lutava contra um malagueiro feroz e impetuoso. À direita permanecia imóvel o velho ilhéu.
Todavia sempre que mestre Mito circundava tal rochedo, invadia-o uma sensação de que alguém ali o mirava de um jeito diabólico. Assim o pescador e os seus homens fugiam daquele destino. Porém nessa manhã a corrente parecia mais forte, tentando indomar-se à força dos velhos motores da traineira. De súbito alguém avisou:
- Mestre, não se consegue passar as correntes. Estamos a ser levados para o ilhéu.
- Vira tudo a bombordo e regressamos a terra – ordenou o comandante.
Só que o mar não estava pelos ajustes e mesmo após a manobra, aquele continuava a empurrar a embarcação para o enorme rochedo. Experiente e conhecedor, o velho pescador solicitou via rádio ajuda a outros barcos.
Num instante surgiram diversas traineiras muito maiores e que lidavam bem com aquele mar. Mas o mestre apenas solicitou que levassem os homens para terra. A barca era com ele. Nem quis qualquer ajuda para rebocar a sua velha embarcação, herança de pai e avô.
Respeitando a vontade férrea de Guilherme, os homens passaram a custo para os outros barcos e regressaram a terra firme.
Do cimo da enseada os homens viram a luta que o seu Mestre mantinha com as vagas, as correntes e o ilhéu. Alguém conhecedor daquelas fainas, previu com um agoiro:
- Aquele dali já não se safa. A corrente de norte é muito mais forte que o barco. Ainda vamos ter para aí uma desgraça. E aquele homem é tão teimoso!
Conhecia-o bem doutras fainas. Casmurrice era coisa que não faltava a Guilherme Bento. Mas fora essa mesma tenacidade e perseverança que tantas vezes lhe salvara a vida e a demais companheiros.
Os olhares viviam aqueles instantes cravados no horizonte, ansiosos e descrentes. A chuva que entretanto começara a cair não fez ninguém arredar pé do velho ancoradouro. Todos admiravam a força de um homem contra a natureza. Mas esta jamais se deixaria domar, mesmo por um velho lobo do mar.
As vagas encapelavam-se e rebentavam quase em cima da frágil traineira. Lá dentro o homem só tentava tudo. O ilhéu crescia, crescia. E o mestre tentava, tentava.
Uma forte onda caiu por fim com violência no convés do barco, quebrando-o por completo. Estava irremediavelmente perdida a guerra. O mestre tentou ainda uma última manobra mas a água entrada já nem saía. Afundava-se finalmente a velha traineira, enxada de tantos cavadores de mar.
Num assomo de força e perseverança, mestre Guilherme só com a água como companhia tentou chegar ao rochedo negro e silencioso. Uma nova vaga arrastou-o contra as pedras, mas ainda assim a sorte protegeu-o, deixando apenas alguns arranhões nos braços e nas pernas.
Já em terra, naquele naco de rocha que ele nunca visitara e que temia, sem nunca saber realmente a razão de tal temor, tentou resguardar-se do temporal. Na aldeia piscatória, quando o mar tragou duma vez só a embarcação todos julgaram que o mestre havia também desaparecido. Os sinos tocaram a rebate naquela tarde, mesmo contra a vontade de alguns amigos de mestre Bento.
Dois dias mais tarde, um velho pescador lançou a sua barca e foi procurar peixe para o ilhéu como era seu hábito. O mar estava sereno desta vez e foi com um enorme susto que encontrou o Mito, deitado em cima uma rocha, dormitando. Sem perguntas de ambas as partes regressaram nesse momento à aldeia. Quando chegaram muitos se dirigiram, questionando e congratulando-se com a vida poupada pelo mar.
No dia seguinte, Guilherme Bento aproximou-se do pontão de betão e aí encontrou a pedra. Sentou-se, carregou o fornilho do cachimbo, acendeu-o e mirou o mar com tristeza.
Um dos seus velhos companheiros, ganhou coragem e perguntou-lhe nessa célebre tarde:
- Que procuras aqui, homem de Deus?
- O que perdi! – Voltou secamente.
- E o que é que perdeste?
A minha traineira, a Maria do Céu. Aguardo aqui, pacientemente, que o mar ma devolva ou então que me leve para junto dela...
Seis da manhã. Ramiro acorda bem disposto como é seu hábito. Levanta-se devagar para não acordar a Rosa que dorme ainda. Olha-a de relance e lembra-se de como ela era, havia mais de trinta anos: a mulher mais bonita das redondezas. Na época não havia rapaz que a não quisesse namorar. E ele que nunca lhe ligara grande coisa... Enquanto os amigos morriam de amores por um breve olhar. Até ao dia em que ela tombou do cimo de um muro que dividia o serrado do caminho. Andava aos figos. O verão, como sempre, era quente e seco. E a brisa que bulia parecia carregar ainda mais canícula. Descuidada e aventureira, Rosa subiu para o topo de uma parede mal feita. As pedras cinzentas e pouco harmoniosas, dançavam debaixo das sandálias. Mas ela preferia o equilíbrio circense à segurança de uma escada. Mal apoiada, ao tentar colher aquele figo mais maduro que baloiçava um pouco acima da sua cabeça, um pé acabou por escapar, depois fugiu o outro e num ápice aterrava desamparada no chão atapetado de rosmaninho e orégãos que cresciam sem destino.
Ramiro guardava um pequeno rebanho de cabras por ali perto, quando ouviu o grito da rapariga ao cair. Assustado, logo procurou a vítima, achando-a prostrada na terra sem dar acordo de si. Içou-a com cuidado nos seus braços fortes de homem do campo e carregou-a docemente até à aldeia. Entregou-a em casa dos pais da jovem, que vendo-a assim chegar inanimada, logo temeram o pior.
O homem ri sozinho. Havia quanto tempo? E ela continuava tão bonita. Veste-se e sai para o seu imenso quintal. Ao seu encontro corre logo o Fugas, um velho rafeiro, companheiro inseparável de tantas aventuras. Ao fundo a capoeira acorda. Os galináceos já conhecem o dono e sabem que está na hora da comida e assim a algazarra surge maior.
- Então pessoal, bom dia – cumprimenta Ramiro como se os animais percebessem o seu linguajar.
- Rica vida, hem! Eu a trabalhar e vocês a comer! Quem me dera... – continua.
A bicharada parecendo que o entende, cala-se e espera pelo velho balde com o repasto matinal. Couves migadas na véspera, pão amolecido pela água, sêmeas e algum milho, dão ao repasto um aspecto humanamente apetitoso.
- Estes bicos dão mais trabalho e despesa, que lucro - desabafava o homem.
Franqueia a porta de rede e deixa que as aves se espalhem pelo quintal. Depois encontra num velho caixote meia dúzia de ovos. Alguns ainda estão quentes. Recolhe-os e coloca-os em lugar seguro, não vá alguém sem querer quebrá-los. Depois limpa a capoeira, recolhendo o estrume ainda fresco e lavando as malgas de barro para a água.
Regressa por fim a casa a tempo de ver a mulher a ultimar o mata bicho.
- Bom dia! – um beijo repenicado sela o cumprimento.
- Bom dia! A bicharada já está tratada?
- Aqueles bicos dão mais trabalho... – comenta ele em jeito de resposta, repetindo um pensamento já havido..
- E a seguir para onde vais?
- Não sei, talvez vá cortar um pouco de feno na Bica Seca. Há lá tanta erva que qualquer dia não dou conta daquilo.
- E vens almoçar?
- Claro – e evoca uma vez mais a primeira refeição feita pela mulher. Ela nervosa. Ele descrente. Mas comeram tudo com apetite. Depois fizeram amor.
Hoje Rosa mantêm a mesa sempre repleta de bons acepipes. E ele não come mais porque cuida-se, sente que a juventude que tudo autoriza e recicla há muito que havia desaparecido.
Sai em busca da gadanha e duma enxada. Num velho casarão onde repousam uns bezerros encontra as alfaias e encaminha-se para a leira. Pelo caminho escarda duas oliveiras num pequeno talho que herdou do seu pai.
- Estas estavam mesmo a precisar!
A erva alta e viçosa tomba agora aos golpes decididos e firmes da gadanha previamente afiada. A propriedade estende-se em ligeiro declive até ao horizonte. É ladeada à direita por uma parede alta e bem assente. À esquerda vinca-se o caminho de terra, por onde passam vacas puxando o carro de fueiros, repleto de feno e homens tocando as bestas até a casa.
Ramiro vai cortando o alimento para o gado quando sem querer se aproxima do muro que divide as duas fazendas. Para lá fica terra centieira igual à sua. Vermelha, áspera mas sã. Mas o dono daquela nesga de terreno nem sabe o que tem. Espreita para lá da parede e repara no chão desprezado. As silvas e os carrascos dominam agora aquele espaço sem amanho. Um desperdício. De súbito nota que uma pequena oliveira medra encostada à parede. Alguns metros adiante há outra e mais abaixo outra ainda. Intrigado larga a alfaia e calcorreia o terreno até ao fim sempre encostado à parede enquanto conta os pés de oliveiras. No fim totaliza para cima de cinquenta plantas que vão crescendo à sombra da parede. Sem dar realmente demasiada importância, regressa ao seu trabalho ceifando o resto da erva.
O sol do meio-dia aperta e na aldeia soam as badaladas no relógio da velha igreja. Gadanha ao ombro, assobio ligeiro, Ramiro regressa a casa para almoçar:
- Então o que temos hoje para enganar o estômago? – pergunta com aquele sorriso matreiro.
- Favas! Com chouriço, claro!
- Óptimo. Estou cá com uma destas fomes!
A refeição decorre com a calma dos justos. A mulher fala desta e daquela, mas o homem, já habituado, nem ouve. Lembra-se então das pequenas oliveiras encostadas à parede e pergunta à mulher interrompendo o quase monólogo:
- Sabes que o nosso vizinho da Bica Seca plantou um olival encostado à parede que dá para aquilo que é nosso. Contei os pés e são para cima de dois quarteirões. Não achas estranho?
A mulher mantêm-se em silêncio durante uns segundos. Depois opina:
- Esse freguês do Peixoto nunca foi grande rez! A seguir àquela vossa zaragata ele nunca mais nos olhou de frente...
- Tu estás tonta! Mas isso foi há imensos anos! Já tudo passou.
Nova evocação. Estava-se na época das festas em honra de Santo António. Os foguetes acordavam a aldeia em estrondos sonoros e sucessivos. Ramiro fora nomeado mordomo para esse ano e naturalmente chegava cedo ao arraial. Algumas vezes sem por o pé da cama. O bailarico durara até muito tarde e ele apenas tinha tempo de vestir a velha roupa de trabalho e correr ao palheiro, onde naquele tempo as vacas dormiam, para a ordenha.
No centro da festa havia sempre que fazer: cadeiras para arrumar, mesas para limpar, as coberturas de eucalipto para ajeitar após uma noite ventosa, a fogueira para assar as carnes, enfim, um ror de pequenas coisas.
O Peixoto fora também nomeado festeiro para esse ano. Todavia a sua única preocupação passava por tentar namoriscar as raparigas da aldeia. E raramente colaborava com o trabalho no arraial. Foi numa dessas noites, quando a música da concertina fazia voltear os pares em cima do estrado, que Ramiro notou que o outro mordomo preocupava-se unicamente em galantear a sua prometida Rosa. Ferveu então o sangue nas veias do jovem e após breves segundos, Peixoto sacudia com vigor, da jaqueta antes imaculada, o pó branco do chão para onde fora lançado, por braços pujantes e destemidos. E valeram-lhe ainda assim alguns companheiros, senão...
O homem ri-se agora dessa mera disputa. Havia passado tanto tempo que não acredita na mulher.
- Tu estás tonta! – repete o marido.
- Individuo para isso, é ele! E para muito mais. Não me admirava nada que ele tivesse plantado lá as oliveiras para elas virem comer ao que é nosso!
O homem abana a cabeçaem discordância. Porém, no seu imo começa a germinar a ideia que a Rosa é capaz de ter alguma razão. De outra forma como pode ele entender a intenção daquela cultura.
No dia seguinte o lavrador encontra o Fialho, um velho amigo. Para ambos uma saudação simples basta:
- Bom dia Fialho! Faz tempo que não te vejo. Passa-se alguma coisa.
Responde o outro:
- Bom dia Ramiro! Tu não me tens visto porque fui ter com a minha filha a Lisboa. Ela baptizou este sábado o meu neto mais novo...
- Ai sim? – interrompe Ramiro – Então parabéns. Quantos netos já tens?
- Seis. Com este seis...
E desfia o nome de cada um dos descendentes com idades e níveis de carinhos. Mas Ramiro pretende apenas saber a opinião de um homem experiente acerca da nova plantação olivícola do seu vizinho. Após breves desencontros de conversas, lá consegue que Fialho o ouça. Um ar de pasmo e de incredulidade invade a face do velho. Depois:
- Que coisa estranha. É certo que ele não morre de amores por ti, mas isso é um tanto idiota. Não ganha nada e quando as árvores crescerem vai ser o cabo dos trabalhos para colher a azeitona, se tu não autorizares a por os panais. Realmente há cada um!
- Mas achas que ele fez aquilo para me aborrecer?
- Não tenho dúvida! Eu se fosse a ti plantava do teu lado outros tantos pés. Assim as tuas também comem do que é dele.
- Depois fico eu também com o problema da azeitona.
- Tem calma homem! Até lá muita coisa pode acontecer. Sabes que ele não gosta muito de trabalhar. Qualquer dia vende aquilo por tuta e meia e ficas com o problema resolvido.
Seguindo finalmente os conselhos do velho Fialho, o aldeão procura na feira os melhores pés e assim que o tempo e a Lua se mostram de feição, Ramiro cava diversos buracos onde enterra a estaca com a jovem oliveira. Depois mira o seu trabalho e com o olhar crítico ainda assim gosta do que vê.
Quis o destino ou a providência que Peixoto e Ramiro morressem com a diferença de semanas, sem deixar descendência. As viúvas enegrecidas pelo desgosto acabam por vender as propriedades. E quem compra aqueles bocados vizinhos apenas com a parede a separá-las, depressa desmancha a divisão deixando antever uma curiosa fila de árvores numa disposição acima de tudo curiosa. Já crescidas tocando-se pelas copas quase fazem um pequeno túnel.
Olhando de cima da fazenda bem lavrada e deixando que o olhar escorregue pelo pequeno declive o novo proprietário sorri e jamais imagina a razão daquela fileira de oliveiras sãs e prontas a entregar ao dono os viúvos bagos de azeitona.
Alberto era o seu nome. Cotão o apelido. Pintas a alcunha.
Alto, robusto à força dos baldes de argamassa e das cargas de tijolos que faziam o seu dia a dia, era valente e destemido. Jamais se negava a uma briga mesmo que sofresse de quando em vez alguns reveses traduzidos num olho negro ou nalgum dente partido. Contudo a sua principal faceta destacava-se pela forma expedita como de um momento para o outro inventava uma partida. Ideias mirabolantes assaltavam o seu espírito rebelde, sempre disposto a passar à prática as suas invenções.
Fosse quem fosse, homem ou mulher, o Pintas atacava a vítima como um predador voraz. Porém, havia sempre quem não apreciasse as brincadeiras e devolvia, à laia de retribuição, a façanha. Conta-se que, certo dia, Alberto descobriu num olival próximo um ninho de melro. Com habilidade e sabedoria logo tratou de caçar o macho. Após a captura decepou, com a crueldade de um carrasco, a cabeça à ave. Encheu então o ninho ainda sem ovos de excrementos frescos e com perícia colocou no topo a cabeça colorida do pássaro morto. Finalmente chamou um dos colegas de trabalho, ainda pouco familiarizado com o espírito burlesco do colega e convidou-o:
- Ei Lídio! Em cima daquela oliveira está um melro. Vê lá se mo apanhas que eu vou em busca da melra.
O homem, crente e solicito, procurou então uma escada. Devagar com medo de assustar a ave que ele desconhecia morta, encostou-a à árvore e subiu os degrausem silêncio. Chegadoao cimo em vez de espreitar o destino, enterrou sem olhar a mão na porcaria. Espantado com o que o ninho lhe devolvia logo percebeu, pelas gargalhadas sonoras do Pintas e doutros colegas, que fora mais uma vítima das brincadeiras. Calmamente, sem demonstrar qualquer azedume, esboçando mesmo um leve sorriso, como que aceitando de bom grado a marosca, desceu da escada e aproximou-se do amigo brincalhão. Sem que ninguém esperasse deu com a mão suja e fedorenta em cheio na cara do outro. No mesmo instante o riso trocou de faces e o Pintas nesse dia não brincou mais. Mas nem mesmo assim Alberto evitou perpetrar noutras alturas e pessoas as suas bizarras ideias. E o pior é que o pedreiro envolvia-se amiúde com quem não devia e nunca calculava com propriedade o alcance dos seus actos. E foi assim que certa vez esteve prestes a receber ordem de prisão. Valeram-lhe naquela altura alguns colegas que tendo ajudado à festa, evitaram o pior.
No início da rua onde surgiam as primeiras pedras de uma nova habitação, vivia um juiz. Rico e toleirão, tinha entre outros criados, uma jovem sopeira bonita, de formas bem torneadas, nariz empinado e resposta a preceito. Todos os dias pela tarde, desde que o tempo o permitisse, a moça descia a rua empurrando, com formosura camoniana, um carrinho de bebé de rendas brancas. Acompanhava-a um pequeno cão de raça indefinida e de nome infantil: Mimi.
Os rapazes mais jovens, sempre que a rapariga passava à beira da obra, lançavam largos elogios às suas formas físicas. Assobiavam, clamavam, riam... Nada. A moça jamais respondia aos piropos. Pintas entrava então no jogo e por diversas ocasiões surgiu repentinamente na frente da criada, vindo sabe-se lá de onde, tentando em vão, assustá-la. Mas a jovem era forte de espírito e o rapaz ficava-se pelas ganas de uma reacção nunca surgida. Porém diabólico, velhaco e persistente, em breve engendrou uma partida.
Humildemente o jovem pedreiro, solicitou, como não podia deixar de ser, a colaboração dos seus colegas e amigos. Acertado com requinte o que fazer, logo combinou a partida para a tarde seguinte.
Nesse dia o sol nasceu mais luminoso e mais quente e a manhã decorreu com serenidade. Afinados os detalhes esperou pelo costumado passeio da tarde. Esta chegou, trazendo uma canícula abrasadora. Como habitualmente à hora do costume lá surgiu no fundo da rua a sopeira. Vestia uma bata justa que denunciava com mais relevo as curvilíneas formas femininas. Aleixo surge de repente por detrás de uma árvore e caminhou lado a lado com a jovem.Em silêncio. Ambos. Depoisavançou:
- Tenha paciência com os meus amigos. Eles são uns brutos, não sabem lidar com uma menina. É pena!
Incrivelmente a criada sorriu então, mostrando um conjunto de dentes brancos e bonitos. O rapaz manteve o passo, par a par com a jovem, esperando uma palavra, um sinal. E este surgiu:
- Já fiz queixa ao meu patrão dos seus amigos!
- E fez muito bem! Eu faria o mesmo, se estivesse no seu lugar – concordou.
- Ele é juiz e vai pô-los a todos na prisão... – ameaçou.
- Também não é preciso chegar a tanto. Uma boa ensinadela basta! – sublinhou o rapaz.
Aleixo tentou subtilmente alterar o rumo da conversa para outros temas e com tal sucesso o conseguiu que quando chegaram perto do final da rua longa e inclinada já falavam de outros assuntos e riamem uníssono. Adeterminada altura o jovem arriscou:
- Vai aí tão carregada, deixe que eu levo o canito!
Agradecida a criadita sorriu com ternura e entregou o animal ao seu acompanhante. Nesse mesmo instante Alberto chega-se sorrateiramente perto do par e quando dobraram a primeira esquina do quarteirão já a trela com o cão na ponta, estava na sua posse. Agarrou o canino, envolveu a cabeça com sacos velhos, para que abafassem os latidos e friamente o Pintas pegou nas malaguetas já previamente preparadas e esfregou-as com gozo e vigor no rabo do pobre bicho. Este, estremecia e debatia-se violentamente. Foi uma luta que o homem acabou por vencer.
No final de outra rua, de mansinho Cotão entregou o bicho com a respectiva trela, ao Aleixo. A criada continuava tão enfeitiçada pelas palavras doces do jovem que nem notou o reboliço vivido atrás de si. Mas num segundo tudo se alterou. O cão, como que tomado por qualquer coisa infernal, endoidecera e passou para a frente do casal, arrastando com força o rabo pelo chão. A criada surpreendida logo clamou aflita:
- Mimi, ó Mimi. O que é que tu tens?
O animal puxava a trela com força das mãos do rapaz, arrastando ainda e sempre o rabo pelo chão enquanto gania.
- Mimi, Mimi, ó Mimi – chamava a sopeira.
Um olhar penetrante e reprovador enterrou-se na face de Aleixo e este encolheu os ombros. Finalmente ela arrancou com violência a trela da mão do jovem pedreiro e sentenciou:
- São todos iguais! Vou queixar-me ao Senhor Doutor Juiz... Olá se vou!
O cão continuava a debater-se com o ardor. E tanto puxou que acabou por rebentar a trela frágil. Livre o animal, logo fugiu em correria desenfreada rua abaixo, latindo, ganindo, ladrando e sempre, sempre com o chão como aliviador. A não muito longa cauda do rafeiro dava por fim os primeiros sinais de ferida.
A criada chorava e chamava pelo cão:
- Mimi, Mimi!
Entrou então em casa com a criança e saiu a correr em busca do infeliz animal. Passou pela obra, onde tudo começara e gritou:
- Mimi! Mimi!
Mas o bicho levava o diabo no corpo. Não havia quem o segurasse. Ouviam-se ao longe os latidos lancinantes do pobre animal. Avisado rapidamente pela mulher em breve surgiu na obra, o Juiz acompanhado de dois polícias. A sopeira era jovem mas não era parva de todo. E rapidamente entendeu que a partida surgira das mãos do velhaco do Pintas. Denunciado pela jovem, as autoridades entraram no terreno onde crescia a casa e chamaram por Alberto. Este assentava tijolos em cima de uma parede e foi de lá que respondeu aos agentes.
- Digam senhores. Que me quereis?
- O senhor é acusado de… roubar um cão, animal de estimação do senhor Doutor Juiz.
- Eu! Mas para queria eu um cão?
- Não sei, nem me interessa. Só quero que me acompanhe.
Nesse mesmo instante aproximou-se o patrão da obra e vendo tamanho reboliço na sua propriedade perguntou a um dos polícias:
- Mas o que se passa aqui? Pode-se saber?
A autoridade conhecendo bem o construtor em vão tentou explicar os últimos acontecimentos da tarde. O Juiz desvairado acusava o proprietário da casa de proteccionismo. Os colegas defendiam o Alberto. Uma confusão.
Por fim tudo acalmou, para bem de quase todos.
Nessa noite o Juiz deitou-se a ralhar, o Aleixo a sonhar e o Pintas, como de costume, a rir.
O cão, finalmente apareceu, após três dias. Vinha sereno, esfomeado e sem cauda.
A paisagem desvanecia-se vertiginosamente do lado de fora do vidro. Maria de Jesus que jamais viajara de automóvel, desconhecia por inteiro a sensação da velocidade. Para trás ficara a aldeia, granítica e fria, talhada na encosta de uma serra beirã, os pais pobres e mirrados de tanta labuta e seis irmãos. Ela meava a irmandade e nos seus quinze anos de pura inocência jamais houvera tempo e coragem para ultrapassar o Ribeiro de Baixo, última fronteira para a civilização ora encontrada.
A jornada tornou-se tão longa que a noite ao chegar de mansinho levou o sono, ajudado pelo suave e doce balanço do veículo, a tomar de assalto os sentidos da miúda.
- Maria! Maria! Acorda cachopa que já chegámos – sussurrava a voz meiga da senhora Amélia.
Acordou estremunhada. Esfregou com vigor os olhos e envolveu a paisagem, agora urbana, numa observação cuidada. Quão estranho, surgiam agora as habitações, diferentes do velho aglomerado onde nascera e vivera. Por entre dentes deixou escapar um primeiro e singelo reparo:
- Que casas tão grandes…
Maria de Jesus fogosa na sua juventude num ápice se habituou à vida louca de uma grande cidade, para onde viera para aprender a servir com uma governanta, prima afastada da mãe, e que a fora arrancar à aldeia. Aquela tinha para com a miúda um evidente desvelo que a obrigava inúmeras vezes a encobrir os normais erros da nova sopeira. Durante cerca de um mês a jovem iniciou-se no cuidar da casa com esmero, aprendeu a servir à mesa com deferência e requinte, a falar pouco especialmente na presença dos patrões e a rir ainda menos. Foi naturalmente um tempo amargo para ambas, com inegáveis avanços e naturais recuos. Num dia tudo parecia correr pelo melhor, no outro as asneiras sucediam-se. Mas a doçura e perseverança da prima mais velha fizera da mais nova uma fantástica empregada, à qual bastava unicamente a experiência do dia a dia.
Foi assim que certa manhã Amélia aproximou-se da prima, que num breve momento de ócio mirava com entusiasmo um pequeno livro de imagens coloridas, pertença da menina da casa, a Joaninha e comunicou-lhe:
- Chegou a hora de pores em prática o que te ensinei. Hoje vais começar a servir os senhores na casa de jantar, assim como a menina. Eu também vou lá estar para te ajudar no que for preciso..
- Mas logo hoje, senhora... – assustou-se a rapariga, carregando ainda com mais fervor nos “esses” típicos da sua pronúncia beirã.
- E porque não? – insistiu a outra.
Maria de Jesus tinha consciência que este dia chegaria, mas preferia adiá-lo até ter mais confiança em si própria. Por vezes as mãos ainda lhe tremiam. E o tom de voz ainda não era tão baixo quanto os patrões gostariam.
- Tem calma, não te assustes. Vai correr tudo bem. – Apaziguou. – Até te comprei uma bata nova - e retirou de um saco um embrulho que entregou à jovem criada.
A criadita pegou na farda por estrear e encantada, encostou-a ao seu corpo franzino e mirou-se vaidosa num velho espelho da casa de banho de serviço. Riu com sinceridade e abraçou a prima, não evitando que duas lágrimas rolassem pela face fresca e jovial:
- Bem-haja, D. Amélia, bem-haja… - agradecia.
Durante o resto do dia, a ingénua sopeira treinou, à laia de ensaio geral, na mesa da marquise onde dormia, o colocar e retirar de pratos e copos. Cerimoniosa e serenamente e sempre em silêncio. Pela primeira vez iria servir à mesa dos patrões, entrar naquela sala grande forrada de quadros coloridos sem ser exclusivamente para aprender a limpar o pó.
Quando o velho relógio de capela de origem inglesa, herança de um tio e encimando uma antiga cómoda de pau-santo, tocou as oito badaladas a criada penetrou na sala bem iluminada por um lustre enorme que pendia do tecto, reflectindo em miríades de cores a luz que atravessava pequenos prismas de cristal, carregando a terrina fumegante de sopa acabada de fazer.
No lado direito, ao topo da mesa rectangular sentava-se o patrão. Homem gordo, puxava para trás o cabelo preto com a ajuda de algo brilhante, viscoso e de um odor muito desagradável. No lado oposto sentava-se a esposa do patrão, a dona Delfina. Quase tão gorda quanto o marido, parecia ainda assim ser muito mais nova que o balofo amo. Os cabelos castanhos e compridos desciam-lhe pelos ombros até às costas, mas ficavam-lhe exageradamente mal. Entre o casal, de frente para quem entrava, jazia imóvel, qual estátua, a menina Joaninha. Redonda tal como pai e mãe, cabelo loiro apanhado de lado por dois lenços de cetim cor-de-rosa, tentava em vão esconder a falta de dois dentes incisivos através duma expressão sempre carrancuda e triste. A prima, sentada em frente da menina, assim que viu a jovem criada logo se lhe dirigiu em tom calmo e amigável:
- Ora boa noite, Maria! Serve lá então a sopa, se fazes favor. Hum! Cheira bem!
A jovem olhou-a de soslaio e lançou-lhe um quase sorriso de agradecimento. Encaminhou-se para a criança e preparou-se para iniciar a servir tal como a prima lhe houvera ensinado:
- Primeiro as crianças, depois as senhoras e finalmente os cavalheiros.
Subitamente e num ataque de fúria repentina e inesperada, a menina deu um salto da cadeira e esbracejando numa birra invulgar, gritou:
- Eu não quero sopa! Eu não quero sopa!
Os gestos bruscos e imprevisíveis de menina mimada, encontraram na sua envolvência a terrina inglesa. Sem que a criada o pudesse evitar, a loiça escapou-lhe das mãos, acabando por aterrar com estrondo no centro da mesa, espalhando a sopa ainda fumegante pela toalha de linho alvo e bordado.
Atónita aos repentinos acontecimentos a criada não evitou então, um pequeno e desgostoso desabafo:
- Ai minha nossa Senhora!
O pai gritou, percebendo que fora a filha que originara tudo:
- Joaninha, mas o que é isto?
A mãe refilou:
- Maria, olha o que fizeste!
A prima saiu em socorro da jovem Maria de Jesus, naquele seu ar cândido de mãe, que nunca chegara a ser:
- Ora rapariga, deixa lá! Não te apoquentes! Volta à cozinha e traz outros talheres e pratos enquanto limpo isto!
Logo a patroa interveio no seu habitual tom insolente:
- Ela que limpe! É para isso que ela cá está...
Contudo a velha Amélia, habituada às fúrias intempestivas de Delfina responde de igual modo:
- Se a menina Joaninha soubesse comportar decentemente à mesa, talvez nada disto acontecesse. Mas como não sou eu que a educo...
A visada da reprovação baixou o olhar até encontrar a carpete de Arraiolos que atapetava o chão de madeira. A vergonha que a filha a obrigara a passar era realmente culpa dela. Apenas dela…
Maria substituíra entretanto todos os talheres, pratos e copos sujos pela sopa entornada. Estendeu antes uma toalha limpa e tão branca quanto a anterior. O patrão após a primeira observação à filha assistiu a todas as mudanças impávido e sereno. No fundo adorava aquele tipo de confrontos familiares. Entretanto o seu olhar viperino entretinha-se a procurar adivinhar as formas da criada, escondidas pela bata imaculada, imaginando-a despida.
A menina Joana, após a birra, acabou por comer a sopa que não queria. O resto do jantar decorreu por fim sem mais incidentes. A partir dessa noite Maria passou a servir permanentemente o almoço e o jantar aos patrões.
Com a experiência adquirida a jovem beirã ocupou-se de outros afazeres. Havia por isso algum tempo que todas as manhãs saía em busca de pão fresco para o pequeno almoço. Dinheiro à conta para a despesa e as mesmas palavras sempre que fechava a porta, atrás de si:
- Vou ao pão...
Era na padaria da esquina que Maria passava os melhores momentos. Um grupo de jovens sopeiras, juntavam-se pela manhã, quase sempre à mesma hora na loja, branca e perfumada a pão fresco, do Alípio. O padeiro também ele jovem e afável, derretia-se com a presença das garotas que ao juntarem-se todas ao mesmo tempo na loja, faziam do local um centro de risota e paródia. Maria conhecera-as ali naquele pequeno estabelecimento e ouvia tudo com a avidez que quem só tem uma oportunidade para viver.
Havia a Lurdes, uma moça baixa e gordinha mas muito simpática e risonha, criada na casa de um médico com um rancho de filhos que lhe infernizavam os dias; a Dores, a alentejana de Moura, bonita mas desconfiada servia na mansão de um idoso muito rico mas muito carente de cuidados e atenção; a Miraldina, uma beirã da Guarda, alta e quase masculina, trabalhava numa velha moradia, propriedade de um casal de professores e finalmente havia a Ana. Olhos verdes, cabelos compridos e doirados e corpo bem torneado, o qual ela fazia questão de evidenciar sempre que podia. Nascera em Lisboa, na Mouraria por detrás da igreja do Martim Moniz e era a mais espevitada de todas as sopeiras. Como ela própria usava comentar: “ninguém lhe fazia o ninho atrás da orelha”. Até à idade de trabalhar andou na escola de manhã e na rua de tarde, acompanhando com natural à-vontade os rapazes do bairro nas brincadeiras e nas zaragatas. Tinha sempre resposta pronta e poucos escrúpulos com o seu belo corpo. A mãe falecera de doença incurável e o pai fugira de casa havia tanto tempo que ela nem se lembrava dele. Carente de afectos sinceros e por isso muito sensível, sofria algumas vezes em silêncio as agruras que a vida lhe presenteara. Após diversos empregos acabou por entrar ao serviço de um cavalheiro frio e arrogante que adorava exibir o seu lugar de destaque no governo.
Assim que Ana viu Maria de Jesus pela primeira vez, logo se abeirou do padeiro e comentou para quem a quis ouvir:
- Ora viva! Temos cliente nova ó Alípio!
O rapaz defendeu a criada.
- Aninhas deixa a rapariga, que é nova. Não vês que não está habituada a estas conversas...
A outra riu despreocupada e atacou novamente:
- ‘Tão e depois? ‘Tou a fazer algum mal à miúda?
Maria de Jesus corou mas conseguiu falar, carregando nos “esses” com mais afinco:
- Oh, deixem-se de discussões. Não quero que se zanguem por minha causa!
O rapaz encolheu os ombros enquanto abanava a cabeça negativamente e ia dizendo com um sorriso:
- Não ligues a essa tonta, que ela não sabe o que diz.
Mas este foi o início de uma profunda e sincera amizade entre a Maria e as colegas de profissão, especialmente com Ana. Exceptuando o Domingo, a criada recebia na pequena loja forrada a azulejos brancos, nos breves minutos que lá passava, o tónico que a fazia feliz pelo dia fora.
Certo vez entrou Ana esfuziante, abanando na mão um envelope.
- Ora bom dia pessoal.
- Bom dia Ana - responderam os presentes em uníssono.
E como ninguém perguntasse a razão da alegria, foi ela quem questionou:
- Sabem o que é isto? – e abanava freneticamente o envelope.
- Não! - responderam todos.
- A minha féria. Finalmente... O sacana nunca mais me pagava! Ameacei-o que me ia embora e que depois fazia uma peixeirada à porta. Foi remédio santo, largou logo ali a massa toda. Olarila... - e riu às gargalhadas.
Enquanto falava abriu o envelope e retirou o dinheiro para que todas vissem que ela dissera a verdade. Depois virando-se para a amiga perguntou:
- Olha lá cachopa, quanto é que tu recebes?
- Eu? – perguntou espantada a criadita.
- Sim tu, minha sonsa. Quanto é que te pagam, os teus patrões? Recebes ao mês, à semana? Como é que é?
- Eu não recebo nada!
- Não recebes nada? Então tu trabalhas durante todo o santo dia e não recebes um chavo?
- Não!
- Mas sabes que isso é ilegal? Anda cá que eu vou-te ensinar como podes receber o teu dinheiro.
Acorreu apressado Alípio em socorro da jovem criada:
- Ana toma cuidado! Vê lá o que dizes à miúda! Tu não és de fiar.
- Cala-te ó mosca morta. Sei muito bem o que estou a fazer – defendeu-se a outra.
E lá foram as duas, rua fora em amena cavaqueira. À porta da padaria já vazia Alípio cruzou os braços e receou pelo futuro daquela rapariga franzina, ingénua mas simpática e bonita.
Estranhamente, um dia Amélia encontrou Maria num choro envergonhado e silencioso. Admirada com a postura pouco habitual da criada geralmente bem disposta, logo lhe perguntou em natural tom de preocupação:
- Que tens rapariga?
- Oh nada senhora! – respondeu assustada, tentando limpar os olhos das teimosas lágrimas, com as costas das mãos.
- Uma pessoa não chora sem razão! Alguém te disse alguma coisa?
- Não, D. Amélia, não aconteceu nada. Sou eu, que sou piegas – respondeu moderadamente a jovem, tentando recompor-se.
- Ouve lá Maria – e pegando meigamente na face molhada da moça, continuou – tu podes enganar o patrão ou a patroa, mas a mim não. Vá desembucha, diz o que te apoquenta. Podes desabafar comigo à vontade. Eu nada conto aos senhores.
- Oh, sei lá... é tudo e não é nada. Tenho saudades da minha aldeia, dos meus irmãos – e de súbito desbobinou um rol de coisas que a própria governanta acabou por solicitar à jovem que parasse.
- Pronto, pronto... já chega. Deixa lá que para o Verão que vem vamos lá. Os patrões costumam passar férias numas termas lá perto da tua aldeia. No caminho deixamos-te em casa. Combinado?
Maria já não respondia. Só soluçava e agitava a cabeça afirmativamente. Amélia fez-lhe uma festa nos cabelos soltos e sorriu. De repente lembrou-se de algo e voltando-se para a rapariga questionou?
- Tu sabes ler e escrever?
- Não, D. Amélia.
- Mas gostavas de mandar uma carta à tua mãe?
- Oh sim isso gostava!
- Então deixa que eu vou tratar disso.
Mas a permanente azáfama dos dias rapidamente fez Amélia olvidar o prometido. De quando em vez Maria lembrava-se das cartas por escrever, mas jamais fizera qualquer referência à promessa.
Os meses voaram. Certo dia o patrão, que era discreto e raramente falava, sem que nada o previsse perguntou à empregada, na hora do jantar enquanto o servia:
- Há quanto tempo estás cá em casa?
A rapariga pouco habituada a ser abordada pelo dono da casa, assustou-se e respondeu a medo:
- Não sei senhor Miranda.
- Há aproximadamente um ano... – respondeu Amélia.
- E a senhora alguma vez te pagou? – insistiu o homem.
- Pagar?
- Sim pagar – e olhou com reprovação para a mulher que se sentava no lado oposto ao seu.
- Eu senhor Miranda, nunca recebi nada.
- Então daqui a pouco, após o jantar vou fazer as contas e pago-te desde o primeiro dia até hoje.
Maria tremia de contentamento. Iria finalmente receber o justo valor do seu trabalho. A amiga Ana já lhe atazanara o juízo mais que uma vez para que solicitasse o dinheiro, mas ela sempre afirmara que tinha vergonha.
- Vergonha é roubar e ser apanhado – refilava Aninhas sempre a rir.
Mas Maria permanecia fiel a si mesma e nunca reclamara aquilo que por direito lhe pertencia. Nessa noite após a refeição, andava a criada atarefada a limpar a cozinha depois de ter feito o mesmo à sala de jantar, quando se aproximou a patroa e naquele seu ar permanentemente austero e seco, lhe entregou um envelope.
- Aqui tens o teu dinheiro.
Virou-lhe rapidamente as costas à criada, evitando assim que esta ousasse agradecer. A empregada ficou estupefacta com o subscrito na mão. Depois respirou fundo e retirou o dinheiro. Como não sabia ver os números não se apercebeu do valor recebido. Guardou o erário no bolso da bata e regressou ao seu trabalho, mais feliz.
Na manhã seguinte, procurou ansiosa a amiga Ana. Esperou-a à esquina da rua da padaria e quando lhe vislumbrou a silhueta esbelta acenou-lhe efusivamente. A amiga assustou-se com tanta excitação.
- Bom dia Maria. Mas o que é que se passa?
- Vê e conta – disse com uma alegria transbordante. E entregou nas mãos da outra o envelope dobrado, tal qual recebera da patroa.
A outra folheou as notas e assobiou, qual miúdo da rua.
- Ena tanto dinheiro! Sabes quanto está aqui?
- Não. Eu não sei contar. Até para o pão trago o dinheiro sempre à conta.
- Ah pois é esqueci-me.
Finalmente e passando nota a nota Ana foi contando o numerário.
- Cem, duzentos, trezentos... novecentos e mil. Mil escudos. É muito papel, - comentou a outra – E agora que vais fazer com este dinheiro?
- Sei lá, nunca na minha vida vi tanto dinheiro.
- Será que a tua mãe não precisará de ajuda? Podias-lhe enviar algum.
- Isso era boa ideia, mas eu não sei escrever. Como é que faço?
- Pedes a alguém que escreva por ti. Eu posso fazer isso... Mas também não sei a morada...
Uma expressão viva aflorou à face de Maria:
- Já sei! Vou pedir ao meu patrão para lhe mandar o dinheiro. Ele sai todos os dias de casa para trabalhar, deve saber como isso se faz. E a D. Amélia é capaz de saber a morada!
Ana concordou e ficou feliz pela amiga. Uma aldeã pura e ingénua numa cidade como Lisboa era complicado. Qualquer um a enganaria.
Assim que chegou a casa logo perguntou a Amélia se sabia do amo. Era sábado e provavelmente ainda estaria a dormir. A prima respondeu-lhe:
- O senhor Miranda está na sala á espera do pão para tomar o pequeno-almoço. Hoje atrasaste-te.
- Pois, estava muita gente na padaria. Ao sábado é sempre assim – desculpou-se.
Pela primeira vez a miúda mentira à sua prima. Mas o nervosismo da decisão de enviar o dinheiro à mãe transtornara-lhe o espírito. Entrou na sala onde o patrão se encontrava sozinho. Sem as companhias femininas e velhacas da filha e da mulher, o gordo senhor ainda falava. Com elas presente o homem transformava-se num túmulo. Aproveitando a ausência da patroa, Maria chegou junto do dono da casa e perguntou:
- O senhor Miranda desculpe-me – os “esses” ouviam-se agora com mais destaque – precisava de lhe pedir uma coisa. Se não for muito incómodo.
- Diz lá, Maria – respondeu friamente enquanto carregava um papo-seco de compota de morango.
- Gostava que o senhor enviasse uma carta à minha mãe e pusesse lá este dinheiro.
Os olhos pequenos e redondos do patrão arregalaram-se, mas logo respondeu, afavelmente:
- Claro rapariga. Logo à noite fazemos isso. Pode ser?
- Claro, claro, quando o senhor puder e obrigado – agradeceu a criada com um grande sorriso nos lábios.
A partir desse dia todos os meses após receber a féria, a moça entregava algum dinheiro ao patrão. Depois ditava uma carta que este escrevia, comprometendo-se a entregá-la nos correios para que chegasse ao destino.
Durante três anos a rapariga foi enviando missivas para casa, mas estranhamente nunca recebeu qualquer resposta. Entretanto Amélia havia morrido de coração antes das primeiras férias o que fez com que a promessa de regressar a aldeia para rever pais e irmãos fosse adiada.
Todas os dias, exceptuando o domingo, Maria saia de casa sempre com as mesmas palavras:
- Vou ao pão... – e fechava a porta trás de si.
Todavia uma manhã de Primavera, cinzenta e ameaçando chover, Maria saiu como era habito para comprar o pão quando regressa a casa, de supetão espavorida e atemorizada, sem pão e clamando:
- Senhor Miranda, senhor Miranda!
Este surgiu do quarto trajando um roupão azul celeste e logo perguntou:
- O que é que se passa? Morreu alguém?
- Não sei senhor. O que eu vi foi a rua cheia de tropa e mandaram-me para casa. Nem pude chegar à padaria.
O patrão correu então para a grande telefonia de madeira e acendeu-a. Enquanto esperava que o rádio aquecesse, espreitou pela janela a rua. Na verdade diversas viaturas militares pareciam travar o acesso às poucas viaturas civis. Quando o som surgiu da telefonia apenas se ouvia alguém a chamar a atenção para o que se estava a passar. Os militares estavam na rua numa tentativa de golpe de estado. O homem gordo e anafado estremeceu. Correu para o quarto e acordou a mulher.
Estava-se no dia 25 de Abril de 1974 e o senhor Miranda demonstrava realmente muita preocupação com o seu futuro. Ligou para o trabalho onde ninguém atendeu. A excitação da incerteza do que iria acontecer a seguir era evidente. Mas num rasgo de esperteza, o senhor Miranda foi no dia seguinte aclamar para a rua os vencedores aos gritos de Liberdade e Democracia. Nesse mesmo dia Maria de Jesus encontrou as outras amigas que segredavam coisas umas às outras. No entanto Ana não apareceu e a jovem regressou triste e preocupada a casa. Uma lágrima cintilante surgiu até serpentear pela face jovial e cair na mão.
Ana regressou dois meses mais tarde, quando já ninguém esperava. Não trazia bata e vestia uma saia muito curta, exibindo um belo par de pernas que Alípio logo aprovou:
- Ena, que bonita que estás, cachopa! Há quanto tempo, hem?
- Pois é, estive no Brasil!
- No Brasil? Deixa-te de brincadeiras! – duvidou o outro.
- Estou a falar a sério. Tu sabes que o meu patrão estava ligado ao governo e teve de fugir, por causa da Revolução. E eu fui com ele! O homem estava cá com uma miúfa que o prendessem!
E fez um gesto característico com os dedos.
- E já regressou?
- Não! Veio só a mulher mais os filhos e eu claro vim com eles! E tu como vais?
Alípio não esperava a pergunta mas espondeu:
- Vou bem. Agora isto está diferente. As pessoas já falam e há greves e partidos. Muita coisa mudou.
- Ainda bem! E diz-me lá, que é feito da Maria de Jesus?
- Anda aí triste, triste... Todos os dias que aqui vem pergunta por ti.
Ana sem esperar comoveu-se. Sentia por aquela amiga um carinho enorme. Doera-lhe ir embora sem nada lhe dizer, mas não tivera sequer tempo para isso. Apenas comentou:
- É boa miúda...
Mas as amigas acabaram por se encontrar e Maria de Jesus fez uma natural festa. Gostava da Ana, era como uma irmã. E assim a vida regressou ao rame-rame de outros tempos.
A Revolução dos cravos trouxera novas atitudes e desejos. Maria de Jesus passou a ter bilhete de identidade e com direito a votar. O patrão perdera aquele ar superior e distante e falava-lhe agora com mais afectividade, ao contrário da patroa que surgia cada vez mais como um animal feroz, pronto a atacar a presa. Havia no olhar daquela mulher ódio, raiva, tristeza e acima de tudo desilusão.
O melhor de tudo no entanto, eram as lições que Maria de Jesus recebia numa escola para adultos fomentada pela Junta de Freguesia. Lentamente foi aprendendo a ler e a escrever. Os números pareciam mais complicados, mas ainda assim conseguia obter bons resultados. Todavia todos os meses solicitava ao patrão que escrevesse nova carta para a família à qual juntava algum dinheiro. Sentia-se pouco segura para pegar num papel e numa caneta e escrever, assim sem mais nem menos uma carta à mãe. Havia perto de seis anos que saíra da aldeia e jamais soubera dos seus. Sentia tantas saudades e estranhava a ausência de resposta às suas missivas, mas também sabia que nem pais nem irmãos sabiam ler ou escrever. Mas o prior sabia...
Uma manhã, descia Maria de Jesus para comprar o pão como de costume, quando encontrou uma vizinha com um envelope na mão, que se lhe dirigiu:
- Olha lá Ju – assim a tratavam no prédio – sabes quem é a Maria de Jesus Silva?
- Sei! Sou eu – respondeu prontamente.
- Então toma. Esta carta é para ti!
- Para mim? – perguntou com natural e indisfarçável admiração e não deixou a outra sem agradecimento – obrigada.
Volteou o envelope nas mãos até que o guardou para ler mais tarde. À noite no recanto do seu leito, pegou no subscrito e abriu-o com emoção. Era a primeira carta que recebia. Já sabia ler bastante bem e foi fácil entender o que lhe haviam escrito.
Para a primeira missiva, carregava muitas notícias. E nenhuma era boa. A mãe morrera já, doente e sem dinheiro para os melhores remédios. O pai enchera-se de dívidas no boticário tentando valer à mulher enferma. O irmão mais velho perdera a vida por terras da Guiné. Maria ia lendo enquanto as lágrimas corriam em fio, cara abaixo. E a maior queixa era de ela não escrever uma linha que fosse ou perguntar se precisavam de alguma ajuda.
Um arrepio trespassou-lhe a espinha. A pergunta surgiu-lhe então no seu espírito inocente. Então para onde teria ido o dinheiro que enviara todos os meses? De chofre percebeu o que lhe acontecera e nasceu em si pela primeira vez a revolta dos indefesos.
Em todos aqueles anos ela trabalhara graciosamente. O patrão velhaco e arrogante, em vez que enviar a carta com o dinheiro, ficava com ele em proveito próprio. Veio-lhe à ideia certa tarde em que encontrou o amo com uma carta dela na mão. Sem que desse pela chegada da empregada, tentou fabricar uma desculpa, quando se apercebeu que a criada tinha reparado na missiva.
- Desculpa Maria, mas hoje tive muito que fazer e quando cheguei aos correios já eles se encontravam encerrados – desculpou-se atabalhoadamente.
Apeteceu-lhe finalmente gritar de desespero, pensou em partir tudo lá em casa, mas após a primeira revolta, reconsiderou. Mordeu o lábio inferior e jurou vingar-se. A noite, passou-a em claro, rezando o terço pelos defuntos mãe e irmão e magicando a melhor forma de se fazer pagar do que lhe haviam feito.
Havia algum tempo que a Delfina confiava inteiramente na Maria de Jesus, para fazer as compras. Esta sabia onde a patroa guardava o dinheiro. E havia lá sempre bastante. Todos os dias abria a pequena gaveta de um móvel e retirava de lá o que precisava para as compras do dia. Quando chegava depositava religiosamente no mesmo local o troco recebido. Mas dessa vez pela manhã, foi à gaveta como era habitual, recolheu todo o numerário que lá encontrou e sem denunciar na voz qualquer emoção comunicou como de costume:
- Vou ao pão... - e fechou a porta atrás de si.
Todavia desta vez fazia-se acompanhar de uma pequena mala de viagem. A mesma que trouxera da sua aldeia com as poucas e pobres vestes.
Em vão, aguardaram os patrões naquela manhã pelos papo-secos frescos e estaladiços. Sujeitaram-se por fim ao pão duro e quase bolorento. E durante todo o dia esperaram pela criada que tardava em aparecer. Preocupada mas decidida, a patroa acabou por sair em busca da rapariga. Começou pela charcutaria onde ninguém nesse dia a tinha visto. No talho também não estivera. Finalmente procurou na padaria que se encontrava fechada. Ao virar as costas à porta da loja reparou então num letreiro de papel colado no vidro da montra, que dizia:
A trovoada rodeou a aldeia como num cerco guerreiro. Em breve grossas bátegas de água desabavam sobre a pequena planície. O céu negro, era de quando em vez iluminado pela luz brilhante de um raio que rasgava o firmamento. O trovão perseguia aquele de perto. Tenebroso e imenso, sacudia o ar qual leque sevilhano. As vidraças agitavam-se ao ritmo diabólico da tempestade. Na rua nem vivalma.
A meio dessa manhã, assim que os primeiros castelos de nuvens plúmbeas e espessas envolveram os céus do povoado, numa ameaça evidente de forte borrasca, os homens regressaram a casa em passo apressado, forçados pela inevitabilidade da intempérie que se deixava adivinhar.
- Vem aí trovoada – previa o Chico Trapaça – e da grossa!
Os outros concordaram. Era costume...
O vento, súbito e rebelde, soprou finalmente, aproximando ainda mais a invernia. Ao longe os cães mais afoitos, prevendo o temporal, latiram agoirentos. A velha Rosalina, aos primeiros assomos de luz celestial, abriu as janelas de par em par e de mãos prostradas em oração desenrolou a lengalenga própria para a ocasião:
Santa Bárbara bendito,
no céu está escrito
com papel e água benta
abrandai esta tormenta.
E após uma ligeira pausa, retomou fôlego e prosseguiu:
Onde não haja eira
nem beira
nem gadelhinho de lã
nem alma cristã.
Ao que seguia um Padre-Nosso e uma Avé-Maria. E enquanto durasse a trovoada repetia indefinidamente a ladainha.
Pelos caminhos vermelhos, formavam-se torrentes, cobrindo as pedras, indo desaguar mansamente nas terras argilosas, atapetadas de erva verde, que aceitavam a água como dádiva. Parecia noite. As chaminés hirtas e negras encimando os telhados das casas velhas e humildes expeliam colunas de fumo, ajudando à penumbra daquele dia.
Quando tocaram as doze badaladas no campanário da velha e humilde capela, alguém comentou:
- Ao meio-dia, carrega ou alivia!
Porém a chuva não aliviou mantendo-se impiedosa durante toda a tarde. Com o aproximar da noite o temporal abrandou finalmente em jeito de trégua. As nuvens abriam pequenos elos permitindo que o luar iluminasse tenuemente o casario, que se embrenhou afinal numa pacatez nocturna pouco comum. Os cães e gatos regressaram a casa, encharcados e famintos.
Do breu da noite surgiu como um fantasma, Justo Fragoso da Silva, mais conhecido na aldeia pelo Cara-Velha. De altura mediana e corpo franzino, caminhava devagar como era seu hábito, encostado a um velho e negro cajado de marmeleiro que além de amparo servia assim mesmo de meio de arremesso. Quem com ele convivia conhecia de sobra aquele varapau, como uma arma temível. Quantas lebres e coelhos haviam sido caçados? Perdera-lhe o conto. Bastava perícia e um bom olho. E nas zaragatas iniciadas por comezinhas, quantas vezes o pau caíra com violência nas costas dos adversários? Um ror...
De regresso a casa, Justo carregava a bolsa repleta de bom dinheiro. Vendera o rebanho na feira dos Santos havia uns dias e agora era só gastar. Ao fim de tantos anos cansara-se de calcorrear carreiros e veredas, apenas com o Jabru, seu fiel canino, como companhia. Saturara-se de comer toucinho e pão duro. Pão duro e toucinho. Dias a fio. O cão que o acompanhava havia alguns anos também preferia um pouco de ripanço. Para trás ficavam tempos infinitos a correr desalmadamente às ovelhas teimosas, a ladrar-lhes, a pô-las no trilho certo, a guardá-las de algum inimigo mais esfaimado. Noites de vela pelas charnecas desertas e inóspitas. Valia porém o dono, homem pacato e bom caminhante de quem nunca ouvira uma voz alterada, nem porventura uma mera observação. Por vezes quando bebia demais, atrasava-se em tirar o gado do redil na manhã seguinte e era ele, Jabru, que acordando o pastor, dava sinal da tardança. Sempre fiel.
A porta estava destrancada como sempre. Bastou a Justo empurrá-la. À entrada no lado esquerdo, numa mesa desconchavada achou uma vela pouco maior que um coto que acendeu com o mesmo fósforo da beata mal fumada. Depois acorreu à lareira onde ainda restavam alguns tições do último fogo. Juntou-os, adicionou-lhes alguma palha que jazia ao lado e com o círio deu vida e luz à casa, acendendo o lume. O fumo enlevou-se célere pela chaminé encarvoada. Parecia buscar o ar fresco e húmido da noite. As labaredas cresceram lentamente em formas irrequietas e sempre desiguais.
A tardoz alongava-se um quintal jamais amanhado. Encostada à parede do fundo elevava-se uma minúscula arrecadação coberta por telha de canudo assente em velhos e quase podres caibros de madeira. De dentro Justo retirou uma pouca de lenha. Carregou-a sem esforço debaixo do braço até ao lume que parecia querer esmorecer após uns breves momentos de vivacidade. Encheu o borralho com a madeira seca e aquele depressa ganhou ânimo.
Finalmente já havia calor para secar a roupa e o pêlo molhados pela chuva violenta e cerrada. O pastor despiu-se e colocou as vestes de forma a apanhar o quente da fogueira. Em breve um ligeiro vapor exalou da roupa, misturando-se com o ar bafiento da habitação. Depois diligenciou a vasilha de barro que achegou debaixo de um velho e sujo panal de azeitona. Destapou-a e enterrou pela boca do recipiente a mão suja e calejada. De dentro retirou um chouriço envoltoem azeite. Limpou-ocom alguma palha que restava e rasgou-o de alto a baixo com uma faca aguçada. Na fogueira ajeitou uma clareira repleta de brasas incandescentes onde depositou o enchido:
- Hoje Jabru, vamos realmente matar a fome! Há três dias que não comemos. - E passou a mão gordurosa pelo pêlo sujo e desgrenhado do animal. Este, como que agradecido, latiu baixinho.
Da última vez que estivera em casa, havia guardado na arca de madeira uma broa. Certamente enrijecida pelos dias, ainda assim seria melhor que nada. Retirou o pão do fundo, sacudiu-o de alguma farinha e enterrou-lhe a faca aguçada. Esta penetrou sem esforço. Cortou um bom bocado e atirou-o ao companheiro. Jabru abocanhou o naco e ficou a roê-lo até ao fim. Finalmente o chouriço surgiu quente, salgado e saboroso. Comeram ambos. Justo Cara-Velha, acompanhou a refeição com um resto de vinho que sobrara da jornada. Depois alcançou a jaqueta quase seca e retirou de um dos bolsos duas tangeras. Descascou-as e estranhamente comeu as cascas finas e só depois levou à boca os gomos, doces e sumarentos, dos citrinos saboreando a fruta com consolo. Rematou a refeição com uns goles de aguardente que arrecadara religiosamente para dias especiais. Adormeceu por fim, sentado no desengonçado cadeirão saboreando a pacatez de um lume acolhedor.
Quando acordou, já manhã alta, tinha o corpo dorido da posição pouco cómoda em que ficara durante o sono. O cão saíra já, procurando onde se aliviar. Ainda estremunhado o Cara-Velha, ergueu-se a custo do cadeirão e foi até ao quintal, onde uma alva radiosa dava razão ao adágio que falava de tempestades e bonanças. Na única oliveira do cercado, algumas lágrimas escorriam ainda pelas folhas verdes, indo tombar na erva viçosa que se erguia da terra vermelha. Últimos vestígios de uma véspera de invernia.
Em cima da antiga pia de pedra, morava uma bacia de esmalte que já conhecera melhores dias e que se enchera com a água da intempérie. Foi ali que Justo mergulhou, de chofre, a cara. Estava realmente muito fria mas soube-lhe bem. Reanimou-o. Esfregou a face com vigor deixando que pequenas gotas de água escorressem pela barba comprida e molhassem o tronco nu. Limpou-se a uma velha camisa que por ali encontrou. Passou a mão pelo cabelo sujo à laia de pente e deu por finda a sua higiene matinal.
Na trempe fervia agora a água para o café. Duma bolsa de pele retirou o pó castanho e aromático e deitou-o para dentro da cafeteira. Enquanto apurava o negro líquido, Justo cortou outro pedaço de broa e entregou-a a Jabru, entretanto regressado. O animal também tinha direito a mata-bicho.
De barriga desenganada, o antigo pastor saiu porta fora em busca não sabia bem do quê. E a primeira paragem foi na taberna do Frias. Um copo para começar, muitos para acabar.
Enquanto o dinheiro da venda do rebanho durou, o Cara-Velha comeu e bebeu durante muitos dias. Bebeu mais do que comeu. Depois, já sem cheta, procurou trabalho esporádico. O tempo e tostões suficientes para pagar a bucha para si e para o cão durante uns dias.
As irmãs bem que o avisavam tentando em vão cuidar da sua saúde:
- Ó mano pensa bem no que andas a fazer! Um dia queres e não podes. E nós não vivemos eternamente para te poder valer quando já não puderes.
O ocioso zombava das apoquentações fraternas e ia respondendo:
- Não vos raleis. Não morro ainda. Estou conservado em álcool – e ria ruidosamente.
Mais tarde, sem trabalho e sem dinheiro, acabou por vender as terras herdadas. Trocou-as por uma bagatela de dinheiro que logo voltou a gastar em comes e bebes. Era frequente entrar na tasca e pedir:
- Ei Frias! Pratos para dois que o cão também come!
Os anos passaram qual rabanada de vento. O Cara-Velha estava cansado e doente. Mas jamais o reconhecia. E quando alguém mais atento o observava e comentava, Justo erguia-se e respondia:
- Tomara tu teres a minha saúde!
Mas um dia o velho pastor deitou-se e não acordou mais. Ou como diria mais tarde o Ginga:
- Que sorte teve o danado! Deitou-se e quando acordou estava morto...
O cão latiu toda a noite de velório. Para além dos irmãos, surgiram na pequena capela apenas alguns velhos companheiros de tasca. Ninguém mais. Os seus verdadeiros amigos haviam sido as ovelhas e as cabras, há muito vendidas.
No dia do funeral chovia uma água miudinha. Soprava ainda uma nortada fria e penetrante que enregelava os corpos. Na serra uma neblina parecia prender-se aos penedos cinzentos e enormes.
Dizia uma das manas, a caminho do cemitério, olhando a encosta:
- A ladeira está a cozer. Temos água toda a noite!
Após a derradeira pá de terra vermelha, o coveiro ajeitou o monte, arrumou a ferramenta na arrecadação e abandonou o cemitério. Já da parte de fora, após ter dado duas voltas a velha fechadura do portão de ferro, olhou uma última vez para a nova sepultura e apercebeu-se com estranheza que um cão acabara de se deitar em cima da campa acabada de tapar. Era Jabru, o fiel amigo de Cara-Velha. Nem na morte o abandonara.
E ali ficou deitado, de cabeça entre as patas estendidas como numa prece, até morrer à míngua, dois dias mais tarde.
Vivia-se no fervor da guerra contra as tropas napoleónicas. Da aldeia calma e tranquila, de casas baixas e alvas, todos os homens válidos haviam sido recrutados para combater os franceses. Assim, velhos intrépidos, mulheres frágeis e crianças indefesas viviam amedrontados se, por ironia do destino, os inimigos rondassem as serras envolventes à aldeia. Os campos estavam mal amanhados, pois os braços não eram suficientes para trabalhar tanta terra. O gado tinha pouca pastagem e só a água parecia ser suficiente, num imenso charco natural onde os animais matavam a sede e as mulheres lavavam algumas roupas. A lagoa enchia-se naturalmente com as chuvas abundantes que tombavam durante o Outono e o Inverno. Longa e de margens lisas e acessíveis tornava-se após a invernia num espaço profundo e perigoso.
Um dia surgiu na povoação um soldado português montado num belo e bem tratado alazão. Trazia urgência. Avisou então toda a população que uma quantidade indefinida de soldados franceses haviam-se perdido do grosso das tropas. E provavelmente poderiam por ali passar em busca dos companheiros. Alertou para a necessidade de esconderem os melhores mantimentos desses homens e não prestarem qualquer ajuda. Não obstante o aviso, a aldeia pouco poderia fazer se os franceses cruzassem a serra por aquele ponto. Não havia quem a defendesse.
O tempo foi decorrendo com a pacatez de quem vive o dia a dia. E por isso em breve o povo esqueceu quase por completo o aviso. Os que conseguiam trabalhar continuavam a amanhar o chão e a pastar os rebanhos que prosseguiam as suas lentas caminhadas por entre penedos e mato. As primeiras chuvas outonais chegaram como de costume. As margens da lagoa alargaram-se ocupando como de costume alguns nacos de fazendas ao seu redor. As crianças adoravam brincar à beira, atirando pedras que provocavam círculos de ondas que cresciam no sentido das margens até aí desaparecerem. As mães cautelosas e atentas, chamavam a atenção enquanto malhavam numa pedra branca a roupa mal lavada:
- Saí daí cachopo! Ainda me cais à água!
Mas a teimosia infantil acabava invariavelmente num tabefe eem pranto. Eassim sossegavam ambos: mãe e filho.
Numa manhã fria e entristecida pelo sol que tentava envergonhadamente surgir por detrás das nuvens cinzentas, arribaram à aldeia dois soldados de aspecto bizarro. Os uniformes que envergavam apresentavam-se muito sujos mas ainda assim assentavam perfeitamente. Traziam na cabeça chapéus invulgares e vinham montados em excelentes cavalos, o que lhes conferiam um ar ainda mais imponente. Surgiram pela entrada nascente e, conquanto fossem apenas dois, rapidamente espalharam o terror e o pânico pelos aldeãos indefesos.
Um velho, sentindo que algumas forças lhe subiam às mãos, pegou energicamente numa gadanha, enfrentando com vigor um dos soldados. Mas o francês do alto da sua montada e com uma simples estocada pô-lo fora de combate. O ferimento parecia profundo, mas não mortal.
Dando razão às ideias do militar luso, os soldados estrangeiros pareciam procurar companheiros de armas. Mas as encostas que envolviam a aldeia sempre se tinham apresentado como inóspitas e inacessíveis.
Fosse por necessidade ou apenas por requintada malvadez aqueles dois homens pilharam e molestaram a aldeia sem dó nem piedade. Uma viúva idosa chorava pois um dos soldados rasgara-lhe as orelhas ao puxar pelos brincos de oiro. Uma mãe tentava evitar desesperadamente que lhe levassem a vaca, único meio que tinha para dar algum leite aos filhos ainda pequenos. Um outro idoso amaldiçoava a sorte pois vira-se despojado de todas as suas cabras.
Quando os franceses saíram restou o povo que carpia a desdita sorte. Nenhuma casa ficara por pilhar, nenhum celeiro por arder. Um rastro de destruição e morte era a herança que aqueles homens haviam deixado. Os cães uivavam duma forma sinistra acompanhando a tristeza dos seus donos.
Ao abandonarem a aldeia, os dois cavaleiros passaram então pela lagoa tranquila mas traiçoeira. Quando a viram, grande e esplendorosa, reflectindo os fracos raios solares, decidiram dar de beber aos cavalos. Como não quiseram descer das montadas, enfiaram-se com os animais pela lagoa dentro. Num ápice ficaram com água pelos joelhos e sentiram-se na obrigação de desmontar, não fossem perder os cavalos. Mas a profundidade das águas era maior do que os homens julgavam e sentiram que as suas vidas se encontravamem perigo. Tentandonadar para a margem descobriram o fundo da lagoa e aí renasceu-lhes a esperança de se salvarem. Mera ilusão. O fundo era constituído essencialmente por lodo e, quando mais caminhavam na direcção da margem, mais se enterravam. O peso das armas e de alguns objectos que haviam roubado não ajudavam a salvação. Bem pelo contrário. Aflitos e em pânico começaram a gritar por socorro. Os seus apelos ouviam-se por todo o vale destruído mas os aldeões mantinham-se surdos de tanto sofrimento e dor. Em vão gritaram e apelaram - mas o destino estava traçado. O lodo devorou-os calmamente, sem dó nem piedade. Os cavalos salvaram-se e todos os animais regressaram aos seus donos. Só os brincos da viúva ficaram enterrados no lodo para sempre.
Muitos anos se passaram até que a lagoa quase secou. Hoje, só mesmo na força do Inverno tem água com fartura. Durante o Estio não passa de um reduzido charco onde as rãs coaxam alegremente num despique salutar com os melros vizinhos.
E as crianças sempre que podem, brincam ainda, agora sem perigo...