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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - O Primo Alcides - XXXIV


O meu primo, Alcides da Costa Botelho, nasceu tal como eu, numa aldeia longínqua que se ergue no sopé duma serra onde ninguém vai e raramente de lá vem alguém. Vim eu por força do Serviço Militar Obrigatório, e como não apreciava as manhãs encieiradas do Inverno rigoroso, que descia encosta abaixo, nem as madrugadas demasiado tépidas do Verão escaldante, por cá fiquei e veio recentemente o meu primo. Este parente próximo em relações familiares e em amizade – quantas horas havíamos passado, debaixo do velho sobreiro, tentando prever o futuro ainda distante – já ultrapassara a idade dos quarenta. Dizia-me com graça, sempre que nos víamos:

-          Isto é uma porra! Assim que os anos entram pelo “cu”… estamos entregues!

E ria-se ruidosamente com gosto mostrando parte da boca onde já faltavam alguns dentes.

Apesar dos anos, permanecia puro e ingénuo que nem uma criança. Solteiro, nele não havia maldade, mentira ou rancor. Tudo era simples e sóbrio. Sério como poucos negociava as suas colheitas, arrancadas à leira com suor e esforço, mas também com carinho e ternura, numa terra que nada pede e tudo oferece, sem lamento ou queixume. A sua imensa força era conhecida e admirada nas aldeias vizinhas. Alto e corpulento, metia respeito a quem se lhe afoitasse em alguma afronta. Certa tarde assisti espantado a uma boa lição que Alcides pregou em três homenzarrões de aldeias vizinhas e que na nossa pretendiam armar zaragata.

Naquele início de tarde, o meu primo arribou à estação vindo da vila mais próxima da aldeia, servida pelo comboio. Uma irmã ajudara-o a escolher a roupa a preceito para visitar a grande cidade. Preparara-lhe também um farnel para a jornada que se sabia longa. Quando abandonou a carruagem olhou para a traseira da composição e exclamou, antes que pudesse cumprimentá-lo:

-          Ena que bicho tão grande…

Sorri simplesmente. Após um abraço sincero, peguei na pequena mala e arrastei-o para fora da gare. Tal qual uma criança, o Alcides mirava tudo com a avidez natural da curiosidade humana. E perguntava aqui, questionava ali:

-          Qu’é ‘quilo? – e apontava com o dedo o objecto alvo.

-          Aquilo é um barco! Daqueles que levam pessoas a passear.

-          A passear?

-          Sim, a passear pelo mar. Param em diversas cidades…

-          E aquilo? – e nem deixava terminar a explicação.

-          Uma camioneta da carreira, como aquela que te trouxe à vila. Só que tem dois andares.

Um pouco mais à frente, perante um singular aglomerado de pessoas, exclamou:

-          Eia! C’um catrino, tanto pessoal! Assim tanta gente só vi no funeral do Doutor Sabino já lá vão perto de uma dúzia de anos.

Naturalmente, na viagem que fiz entre a estação ferroviária e a pensão onde residia havia alguns anos, o meu primou brindou-me com uma quantidade quase infinita de perguntas. Pago o táxi, entrámos no edifício velho mas razoavelmente bem conservado. Logo calculei que surgiriam novas questões, pois o prédio era servido por elevador. Carreguei no botão ao que uma luz branca me respondeu que aguardasse. Chegou devagar. Abri então as portas e indiquei ao Alcides que entrasse. Este, pouco acostumado a tamanho reboliço e invenções, perguntou:

-          Olha lá esta caixa de fofres é o quê?

-          Isto é apenas um elevador. Vai-nos levar ao andar que pretendemos sem necessidade de subir as escadas.

Céptico, devolveu ainda:

-          E isso aguenta c’o a gente?

-          Claro rapaz! Julgas que te enfio numa coisa destas sem saber que é seguro? Isto aguentava com mais dois se fosse preciso.

-          Não sei, mas olha que peso mais de sete arrobas…

-          Entra e não tenhas receio.

Finalmente decidiu-se e lá chegámos ao patamar. Abri a porta do andar e comuniquei a Alcides:

-          Entra, é aqui que moro. Verás como as pessoas são simpáticas e acolhedoras.

Optara desde alguns anos, por residir numa pensão modesta mas asseada, a conselho de um companheiro de trabalho, que também ali morara antes de casar. A proprietária era uma senhora viúva, atarracada e forte, óptima cozinheira e de uma simpatia contagiante. Raramente havia quartos vazios, mas para o meu primo ela esmerara-se e dispensara-lhe por alguns dias um pequeno, permanentemente alugado por um cavalheiro rico e que o utilizava para os encontros secretos com as suas jovens e esbeltas amantes. A Florinda apareceu para nos receber. Vinha a limpar as mãos rechonchudas ao avental, mas carregava na face um sorriso trasbordante de alegria.

-          Desculpe-me senhor Fausto mas ando às voltas com umas empadas para o nosso jantar... Ah, mas que belo rapaz é este seu primo! – e aproximando-se espetou dois beijos molhados e sonoros na face morena de Alcides.

O homem apanhado de surpresa olhou para mim com espanto e eu apenas lhe respondi com um encolher de ombros. Porém o camponês sem perceber muito bem que cumprimento fora aquele estendeu a mão volumosa na direcção de estalajadeira. Esta rindo aceitou:

-          Olha, então queres que te dê um aperto de mão. Então toma lá.

E estendeu a redonda mão. Alcides recebeu-a e apertou-a como era seu hábito. A pobre da mulher logo soltou um grito retirando o membro.

-          Safa! O homem é valente. Será assim tão pujante em tudo? Ou isto, são só mãos…

Piscou-me o olho comprometendo-me na brincadeira, ao que respondi com um sorriso e uma desculpa mal alinhavada:

-          Não sei, talvez!

Instalado o primo, logo se combinou a hora de jantar:

-          Às oito se fizerem favor! – Solicitou a patroa.

-          Cá estaremos.

Saímos em busca da cidade pululante de vida. A tarde parecia chamar por nós, tal era a brandura da véspera. Alcides, não parava. Tudo era novidade, alegria, dúvida.

-          Então tu queres-me fazer crer que aquela cachopa é um homem?

-          Pois é! E como aquele há muito por aí. É preciso de estar de olho bem atento, senão és enganado.

-          Esta vida da cidade é muito complicada... Lá na nossa terra um homem é um homem. Uma mulher é uma mulher. Agora homens vestirem-se de catraias. Onde é que se já viu isto?

-          Pois é... – tentava eu desculpar as opções de cada um – O mundo nestes locais vê as coisas de forma diferente dos nossos lados.

Na aldeia tudo surgia realmente muito desigual. Os automóveis – poucos – andavam devagar, sempre sujeitos a que de qualquer lado, surgisse uma besta desencabrestada, um rebanho paciente ou simplesmente um rafeiro em perseguição de algum felino. A única vez que se corria era por altura das festas, nos jogos tradicionais. De outro modo todos levavam a vida numa calmaria quase perfeita.

Palmilhámos quilómetros na cidade. O rio, no entanto, foi o momento alto.

-          Ena tanta água! Donde é que ela apareceu?

Mais perguntas que eu respondia como podia e sabia. Falava-lhe de um estuário, do mar, das marés. Alcides escutava atentamente mas bastava um dito ou outra questão para eu perder o fio à meada. Tagarela incurável, em tudo via algo com graça:

-          Já visto o boné daquele? Parece de palha de milho... e fica-lhe mal!

Mais à frente:

-          Eia que mulher tão gorda! Caberá nas portas?

Outra vez:

-          Olha-me a pinta daquele rafeiro...

E eu remendava:

-          Aquilo não é um rafeiro. É um cão de raça pura. E dos caros!

Alcides teimava:

-          Aqui não há mulas, nem vacas. Só casas, pessoas e carros...

Curioso foi a bizarra atitude do meu primo aldeão, quando achou uma nota de cem no chão. Olhou-a, certificou-se que era dinheiro, mas ao contrário do que calculava, deu-lhe um pontapé e exclamou:

-          Para que é que eu quero isto. Vou achar muito mais.

Eu, por minha vez recolhi o numerário do chão e perguntei-lhe:

-          Mas tu não queres a nota?

-          Não, podes ficar com ela. Hei-de encontrar mais!

-          Mas que ideia é essa?

-          Foi assim que me disseram lá na aldeia. Quando cá chegasse acharia dinheiro aos pontapés na rua!

-          Mas não acredites em tudo o que te dizem lá na terra. A maioria deles só vão à vila e é quando há feira. Como podem elas afirmar essas patranhas?

-          Eu não sei! Só digo o que me disseram.

Durante um par de dias, o Alcides visitou o que havia de importante para ver. Admirou-se no Zoológico com a bicharada, encantou-se na Ajuda, adorou o Museu de Marinha. Todavia quase ao fim de uma semana, Alcides observou:

-          Em breve regresso à terra.

-          Já? Ainda há tanto para ver...

-          Que haja! Mas quero ir embora breve.

Não teimei. Casmurro, era homem para partir sem nada dizer. A pé ou cavalo ele lá chegaria. Finalmente desejou partir. Conduzi-o pela cidade até á estação, onde me presenteou com um abraço fraterno e sincero, confessando:

-          Se a D. Florinda fosse mais nova... – e virou-se repentinamente, talvez para que eu não percebesse como uma lágrima, lhe regava a face queimada.

Abri a boca num pasmo total. Jamais me passaria pela cabeça uma história entre os dois. De súbito um silvo ecoou na gare. O comboio partiu por fim. À janela, o meu primo acenava-me efusivamente. Vi a composição extinguir-se no horizonte de linhas paralelas até não ser mais que um ponto e mais tarde uma lembrança.

Contos Breves - Pensão Esperança - XXXIII


Tresandava a lagar. Em meados de Novembro vivia-se o apogeu da colheita. As oliveiras vergadas pelo peso dos lutos obrigavam à azáfama da apanha. Ranchos de homens e mulheres, vindos de partes incertas espalhavam-se pelas fazendas, emaranhando-se pelas árvores ou venerando-as numa religiosidade invulgar. Os lagares laboravam desde cedo até noite profunda tentando dar vazão aos carregos amontoados debaixo de velhos telheiros em paciente espera. No interior as possantes galgas rodavam em infinita perseguição, esmagando impiedosamente à sua passagem, a azeitona madura por um estio quente e seco. Ao centro do lagar, erguia-se a prensa que docemente ia apertando as ceiras num abraço irreversível e violento. Estas carpiam então lágrimas viscosas e brilhantes que escorriam em torrentes de mágoas e de dor, até à tarefa.

Antes do último aperto, homens sujos de gordura viscosa e seminus escaldavam as ceiras com água a ferver, saída da caldeira, centro de atenções e calores exigidos pelos dias frios de Outono. Após o derradeiro apenas restava o bagaço castanho e seco.

Na tarefa larga repousava então horas a fio, o choro silencioso das ceiras. No fundo a almofeira ia por fim assentando, até o lagareiro, com saber e perícia, abrir a boca e deixar a água russa escapar até à rua, onde uma pequena vala servia de guia até à fazenda.

Domingo, único dia de repouso para os ranchos de gente estranha que invadiram a aldeia em busca de trabalho. Os mais valentes levantavam-se cedo e percorriam os olivais colhidos em busca de algum rabisco. Outros preferiam o ripanço de uma esteira malcheirosa. Algumas mulheres aproveitavam o dia para lavar roupa suja. À tarde um jovem tocador soprava na harmónica e mesmo ali se desembainhava um bailarico. Os pares volteavam acertadamente, como de uma perfeita coreografia se tratasse.

Joaquim Coxo já entrara na casa dos trinta. Mecânico de motas e bicicletas, fazia gala do seu estatuto de solteirão. Órfão de pai e mãe, nem a irmã Maria, nem os irmãos mais velhos José e António o demoviam a casar. Curiosamente pretendentes não lhe faltavam, mas ele teimava que assim é que estava bem, que não tinha paciência para aturar uma mulher, que gostava de estar sozinho.

Mas naquele fim de tarde de Outono frio e penetrante, Joaquim perdeu enfim a sua compostura e vaidade. Andava a experimentar a motorizada do cunhado, acabada de consertar, quando passou encostado à casa que os apanhadores usavam como lar. De súbito surge uma moçoila bonita e formosa. O mecânico ao vê-la, encadeado quiçá com a beleza, por pouco se despistava. Houve quem se apercebesse do zig-zag que o motociclista desenhou na estrada a fim de se equilibrar e logo comentasse em surdina:

-          O Coxo quase trambolhou hoje à tarde por causa de uma cachopa do rancho. Aquilo é que foi dançar com a mota da estrada!

A partir daquele dia Joaquim deixou de viver em paz e sossego. Só conseguia lembrar-se da rapariga esbelta. Não a conhecia mas logo tentou chegar-lhe à fala. Nunca tivera dotes de galã e muito menos gestos marialvas e a escola abandonada cedo demais havia perto de vinte anos, também não o ajudara com as palavras. Mas ainda assim isso não seria motivo que impedisse de falar à moçoila.

Rondou pacientemente dias a fio, o albergue do rancho. Até que certa véspera a descobriu descendo sozinha uma das ruas do povoado. Carregava à cabeça um cesto de verga assente numa rodilha de pano onde transportava alguns víveres para o jantar.

-          Muito boa tarde menina! – cumprimentou o rapaz.

Abordada assim de supetão, logo ela lhe devolveu com singular azedume:

-          Boa tarde, senhor! Que me quer?

Percebendo nas palavras atiradas como pedras a cão vadio, o desdém da rapariga, desculpou-se:

-          Nada menina, nada, perdão!

-          Então deixe-me em paz que quero ir descansar –atirou novamente a cachopa.

-          Claro, com certeza – desculpou-se.

Mas após uma ligeira hesitação, encheu-se de brios e ousou galantear:

-          Sabe, há muito tempo que não via por aqui uma jovem tão formosa como a menina...

Pronto estava dito. Agora era aguardar a reacção. E esta, claro está, veio tão depressa que Joaquim quase se assustou:

-          Oh, isso são dos seus olhos. Há por aqui raparigas bem mais bonitas.

Ao invés do que seria de supor a resposta veio claramente doce e serena. Joaquim tremia e não sabia se de excitação ou de nervosismo. “E agora que dizer mais?” Pensou. Num breve momento ocorreu-lhe:

-          Vai cá estar muito tempo?

-          Ainda não sei. Depende!

Um silêncio cavo tomou de novo Joaquim Coxo. Atrapalhado, nervoso e sem mais tema de conversa, despediu-se:

-          Então boa-noite e até um dia destes...

-          Boa-noite – respondeu a apanhadeira sem emoção.

O mecânico regressou a casa em passo acelerado. Lavou-se das gorduras e óleos e sentou-se à mesa, esperando o jantar que não chegou. Mas um repasto naquele momento não era importante. O seu pensamento saltitava entre a beleza quase perfeita da rapariga e as recordações das palavras proferidas. Deitou-se sem ceia. De olhos fixos no tecto e mãos entrelaçadas a substituírem a almofada negra de camisas de maçaroca, adormeceu por fim.

Nos dias seguintes, Joaquim via-a de vez em quando ao longe e timidamente acenava-lhe com a mão negra de óleo, ao qual ela nunca respondeu. Soube mais tarde que a jovem viera somente acompanhada do pai. Alguém a quem ela respeitava e temia mais do que amava. Mas Joaquim não era homem para recear quem quer que fosse e muito menos alguém estranho à aldeia.

Era costume os homens do rancho conviverem com os da terra, no lagar à volta da caldeira quente e acolhedora, beberricando copos de vinho ou simplesmente conversando. Foi num destes serões que Joaquim encontrou o pai da cachopa e conversa puxa conversa lá foi dizendo:

-       O senhor tem uma filha muito bonita.

Subitamente contrariado pela franqueza do homem, logo o outro lhe devolveu de forma abrupta e roçando a violência:

-          O que é que vossemecê tem a ver com isso? Nem pense em arrastar-lhe a asa, pois tem que se haver comigo.

O temperamento do Joaquim era normalmente dócil e apaziguador, mas naquele instante ferveu-lhe o sangue e revoltando-se e atacou do mesmo modo:

-          Mas quem é que você julga que eu sou?

-          Um pelintra qualquer… - respondeu entre dentes o pai.

Joaquim ouviu e não se acobardando, replicou com veemência:

-          Pelintra? Posso ser sim senhor! Mas não preciso de ir para longe para ganhar a vida. Ganho-a aqui mesmo com estas mãos sujas mas honradas – e virando a palma das mãos para o adversário, continuou - e ainda não me faltou trabalho... Graças a Deus.

O antagonista não apreciou a afronta e levantou-se num rápido da cadeira, ameaçando.

-          Queres levar um par de tabefes? Olha que ainda sou homem para ti!

E avançou decidido contra o aldeão. Este, comparando a sua figura e a idade com a o do outro, logo percebeu que levaria grande vantagem num eventual confronto. Por isso foi respondendo, num tom de voz que denunciava ao mesmo tempo calma mas também algum nervosismo:

-          Para mim sei que é homem, mas para a sua filha é que não é pai. Não me diga que a quer para freira?

Os acontecimentos precipitaram-se em tormentas de acusações. Os homens no lagar seguraram cada elemento evitando assim males menores quando surgiu a jovem, que passando por perto, ouviu os brados arrogantes do pai e logo entrou, tentando acalmar os ânimos:

-          Mas o que se passa aqui? Que gritaria vem a ser esta, meu pai? – Questionou a rapariga fulminando o antecessor com o olhar.

Joaquim parecia ser o mais sereno e por isso respondeu calmamente:

-          É o seu pai que está um pouco amofinado comigo, só por lhe ter dito que a menina é muito graciosa.

A jovem olhou para o pai rezingão e em silêncio aguardou uma resposta. Mas o caprichoso homem nada disse. Percebera que olvidara as boas maneiras e com isso perdera a compostura e a razão. O mecânico dando conta de algum mal-estar entre pai e filha, desculpou-se então:

-          Perdoe-me mas tenho de ir fechar a oficina. A si senhor – e apontou para o homem mais velho – peço-lhe sinceramente desculpas pela maneira como o abordei. É capaz de ter razão, eu sou mesmo um pelintra. Boa noite.

E abandonou o lagar. Atrás de si cresceu então um burburinho que ele não pretendeu entender. Mas a turbulência que invadia o seu espírito e coração chocava contra a pacatez e a sensibilidade da rapariga. Quase sem dar por isso crescera entre ambos uma curiosa relação. E com tão poucas palavras trocadas. Todavia suficientes para entenderem que algo os unia.

O retorno a casa foi transposto a remoer palavras não proferidas e tão absorto estava nos seus pensamentos que nem passou na oficina como era seu uso. Jantou calmamente e deitou-se, sempre com o pensamento na jovem. Bonita sem dúvida e formosa, parecia arcar uma força e uma coragem invulgares, de quem sabe o que quer. Após muito matutar Joaquim decidiu enfrentar uma vez mais o pai. Ele tinha de o ouvir uma vez mais!

Na manhã seguinte, levantou-se muito cedo e esperou que a moça e o pai abandonassem a casa do rancho a caminho do olival. Finalmente a porta abriu-se e todos saíram menos o pai e a filha. Preocupado logo abordou um dos apanhadores.

-          Que é feito daquela jovem moça que aqui vivia com o pai?

-          Quem? A Aurora?

Então era este o seu nome, pensou o Joaquim.

-          Sim a Aurora!

-          Voltou ontem à noite mais o velho para a terra. Vá lá saber-se porquê! É um bruto qualquer…

A notícia foi colhida como um tiro. Jamais a veria. A tristeza invadiu-lhe a manhã numa melancolia impenetrável. Por culpa própria deitara tudo a perder. Precipitara-se no encontro com o pai de Aurora. Tinha a obrigação de ter sido paciente e acima de tudo prudente.

Regressou à oficina e pegou nalguns casos mais complicados que lá tinha e que obrigavam a muita atenção e perícia. Entreteve-se então a resolve-los tentando esquecer por momentos a tristeza que corroía o seu coração.

Quando à noite entrou em casa, cresceu a dor e a raiva. Na cabeça rodopiavam inúmeras ideias, vontades e ensejos. Não sabia como, mas amava aquela cachopa. Com ela queria finalmente uma vida, ter filhos, construir um lar ou amá-la simplesmente.

O rancho continuava o seu afã de ripar a azeitona num corrupio permanente. No lagar as ceiras repletas de massa passavam martírios para brindarem o homem com o líquido verde e gorduroso com que regariam as batatas e as couves. O cheiro acre e característico pairava ainda e sempre no ar como uma praga.

Entretanto e após muito matutar Joaquim assumiu finalmente um desejo: ir em busca da amada. Mas para concretizar o que magicara, necessitava de dinheiro e tempo. O primeiro, foi fácil, retirou-o duma velha mala que escondeu no cimo de um guarda-fatos. Um pé de meia guardado, havia alguns anos. Quanto ao tempo teria de optar por um fim-de-semana. Desvendou depois, sem grande dificuldade, o nome da aldeia da jovem e do pai austero. Bastou-lhe unicamente uma rodada geral e mais uns copos estrategicamente oferecidos. O lugarejo dormia no meio das fragas beirãs a muitas léguas de distância. Uma jornada que se avizinhava longa e dura.

Numa sexta-feira, ao fim da tarde, Joaquim encerrou a oficina mais cedo e meteu-se à estrada. Montado na sua velha mas fiel motorizada, conduziu toda a noite. A estrada sinuosa e em mau estado não era todavia impeditiva da viagem. Já bocejava a manhã quando entrou na vila. Parou em frente de uma casa de pasto onde matou o bicho enquanto questionou a diversos pelo melhor caminho para a aldeia. Escutou algumas versões contraditórias, agradeceu e optou por partir confiando na sorte. Perdido após algumas voltas pela simpática vila lá encontrou o que supôs ser a estrada para a povoação. O acesso feito de terra batida e repleto de largos e profundos buracos, obrigava Joaquim a andar bem devagar numa quase procissão. Emparedando a estrada enormes pinheiros erguiam-se até ao céu. Nos intervalos cresciam frondosos eucaliptos, dando ao trilho um aspecto sombrio e quase tenebroso. A brisa da manhã era fria e soprava com vigor pela folhagem do pinhal. O caminho apresentava-se umas tortuoso e íngreme, outras plano e sem curvas. A motorizada embrenhava-se na paisagem quase fantasmagórico sem medo. Negociava as curvas devagar, não fosse o Diabo tece-las e ficar ali empanado naquela terra de ninguém. Por entre as árvores, Joaquim conseguia descortinar um pequeno ribeiro que serpenteava ao seu lado no vinco profundo do vale. Após longos quilómetros de mau piso e de velocidade reduzida, surgiu finalmente no horizonte um aglomerado de habitações cinzentas e tristes. Cravadas na serra as casas construídas na encosta soalheira, assemelhavam-se a um Presépio em ponto grande. Uma ribeira de água cristalina atravessava a aldeia por entre as pedras roliças. A torre da igreja, branca e centenária, destacava-se ao longe, encimada por um sino e um relógio. Este marcava meio dia e soaram pelo vale as doze badaladas. Foi nesse preciso momento que Joaquim chegou por fim à aldeia. Subiu a rua até à praça principal e parou. Apeou-se da motorizada, retirou o capacete e mirou com curiosidade o singelo largo. O chão de paralelepípedos graníticos faziam soar com mais profundidade os cascos dos animais que atravessavam o povoado. Ao centro da praça erguia-se uma cruz de pedra, já quase vestida de musgo negro, salpicado de tons doirados. Na esquina de uma rua que desembocava no adro havia uma taberna escura. O viajante entrou devagar. Dentro da loja podiam-se contar três mesas de madeira, pequenas e mal limpas, donde sobressaíam rodelas de vinho do fundo dos copos usados. A lâmpada que emanava uma luz ténue estava envolta por uma camada negra de pontos negros ali depositados pelas moscas que volteavam ao redor da luz. A um canto, dois idosos jogavam às cartas. Ao balcão o taberneiro quase dormia encostado a uma velha telefonia de madeira que tocava um som roufenho e imperceptível. Joaquim aproximou-se e baixinho saudou:

-          Boa tarde, senhores!

O patrão como que acordado da sua letargia, respondeu:

-          Boa tarde! Que deseja?

-          Uma cerveja, se fizer favor.

Do fundo do balcão surgiu a garrafa que o tasqueiro abriu.

-          Aqui tem!

-          Obrigado! – e levando a garrafa à boca sorveu um bom bocado. Depois suspirou com prazer.

Necessitava agora de abordar o assunto que ali o trouxera: Aurora. De súbito veio-lhe à ideia uma boa desculpa para estar ali e tentar descobrir o paradeiro da jovem.

-          Diga-me se conhece uma rapariga de nome Aurora?

O outro olhou-o duma forma áspera e logo respondeu abruptamente:

-          Conheço sim senhor. É minha sobrinha. O que lhe quer?

-          A ela nada – mentiu – queria era falar com o pai, mas como não sei o nome dele…

-          Mas o que é que esse traste fez desta vez?

-          Não fez nada, que eu saiba! Só que andou a trabalhar naquilo que é meu e um belo dia desapareceu com a filha sem que lhe pudesse pagar os dias.

Num gesto repentino o taberneiro barafustou em forma de desabafo:

-          Isso é mesmo coisa do meu cunhado. Alguém lhe disse alguma por lá e ele não vai de modas, vem-se embora sem receber o que lhe é devido. Uma besta! Um cretino! Ainda estou para saber o que é que a minha falecida irmã viu naquele camafeu

-          Pois… mas eu apenas pretendo saber onde ele mora… Quero pagar-lhe e ir embora. Estou muito longe da minha aldeia.

-          Tem razão freguês, desculpe o desabafo.

Crendo nas boas razões do cliente, o comerciante informou com detalhe o caminho para casa do cunhado. Joaquim pagou, agradeceu e saudou novamente ao sair:

-          Boa tarde senhores!

Na rua orientou-se pelas indicações dados e lá foi em busca de lenha para alimentar o lume da sua paixão. Em breve encontrou uma casa térrea, humilde e mal estimada, onde algumas telhas se seguravam apenas com o peso de pedras. Uma janela aberta dava alguma luz para o interior. Sem saber como abordar a jovem Aurora e muito menos como enfrentar um pai violento na sua própria terra, encostou-se à parede no outro lado da rua e aguardou, simplesmente.

A tarde foi-se arrastando penosamente até que a penumbra da noite envolveu a aldeia. O frio embrenhava-se nas roupas pouco quentes e gelava os corpos mínguos que apenas pediam calor e pão. Alguns camponeses subiram e desceram a rua, lançando uma breve saudação a que Joaquim respondeu sempre. Mãos nos bolsos, boina puxada para a frente, beata acesa ao canto da boca e assobio desafinado, olhavam-no com curiosidade, mas também com desdém. Para aqueles lados os estranhos eram mal vindos.

O sino tocou de repente. Pouco conhecedor do significado daquele toque depressa percebeu que não era mais do que um chamamento, provavelmente para a missa. Uma porta abriu-se de súbito deixando antever uma figura feminina de negro vestida. Envolvia-lhe a cabeça um xaile de rendas que a tornava ainda mais formosa. Saiu tão apressada que nem deu pela presença de um estranho do outro lado da rua.

Joaquim seguiu-a em passo apressado e antes que ela entrasse na capela, abordou-a:

-          Aurora, desculpa! Sou eu o Joaquim.

Pouco impressionada pela presença do rapaz, demanda:

-          O que faz aqui?

-          Vim vê-la!

-          Ver-me?

-          Sim vê-la e se quiser, levá-la comigo.

-          Como? O que é que disse?

-          Eu quero casar consigo. Se o seu pai não quiser eu levo-a para a minha aldeia e casamos lá.

A proposta apresentada assim de supetão era tentadora. Havia que pensar. Mas o rapaz não pretendia dar-lhe muitas opções. A repetição do chamamento para a capela ajudou-a a ganhar tempo.

-          Deixe-me ir à missa. No fim dou-lhe uma resposta.

-          Está bem, eu espero.

Aurora entrou na capela, enquanto Joaquim esperou, impacientemente no adro da igreja que a missa terminasse. Caminhava para trás e para a frente numa ansiedade crescente. Aquela hora levedava em séculos, uma eternidade. Dentro da capela ouviam-se cânticos e orações. O rapaz acreditava no Divino, mas naquele preciso instante a sua preocupação estava realmente virada para a cachopa que rezava devotadamente.

Por fim a missa acabou e as beatas e as crentes mais devotas abandonaram o local de culto quais formigas. Joaquim aguardou que a sua paixão saísse após o maior tumulto, para que ninguém se apercebesse. Porém a rapariga tardava em surgir. Já levemente irritado pela demora aproximou-se da entrada da capela. Espreitou para dentro a medo, quando ouviu.

-          Pode entrar sem medo, irmão. A casa de Deus está aberta para todos quantos nela queiram entrar!

À sua frente um padre ainda de paramentos trajados, saudou-o com emoção. A sua voz era calma e serena, cultivando a paz nos corações dos homens mais empenhados.

-          Como vai meu rapaz? Espero que a viagem o não tenha maçado muito.

O mecânico de motorizadas e bicicletas nem sabia o que dizer. Todavia foi sorrindo e penetrando na sala escura, onde o odor a incenso pairava ainda no ar. Ao fundo no altar as velas iluminavam o ambiente. Dos lados algumas imagens de santos pareciam querer abençoar o viajante. A medo lá foi apreciando a orada e acabou por comentar:

-          Bonita igreja, sim senhor!

Já perto do centro da capela reparou então que diversas mulheres ainda por ali estavam, rezando em silêncio numa prostração e devoção que jamais observara. Entre elas descobriu a menina dos seus pesadelos mais simples e bonitos. Olhou-a com admiração e respeito mas nada disse. Foi o pároco que apercebendo-se da furtiva troca de olhares, avançou:

-          Que faz aqui nesta terra, perdida entre as pedras frias e cinzentas da serra e os pinheiros esguios e irrequietos?

Joaquim quase nem entendeu a pergunta, mas ainda assim percebeu onde o pároco pretendia chegar. Então respondeu célere e convictamente:

-          Vim buscar Aurora!

-          E para onde a leva?

-          Para a minha aldeia. Lá tenho casa, terras, gado, tudo do bom e do melhor…

-          E tu achas que ela quer ir contigo? – Interrompeu o padre.

-          Não sei! Mas espero bem que sim. Eu gosto dela… - esta última frase foi dita quase em surdina temendo que a moça o escutasse.

Entretanto a rapariga levantou-se do seu lugar e aproximou-se de Joaquim. Deu-lhe a mão esquerda, olhou-o nos olhos e confessou:

-          Vou Joaquim, vou contigo!

Era a primeira vez que ela tratava o rapaz na segunda pessoa. Uma alegria imensa inundou-lhe o coração. De súbito antes que alguém dissesse mais alguma coisa, o padre chegou-se junto do casal e aconselhou:

-          Aurora, o teu pai é um homem duro e austero, mas temente a Deus como poucos. Assim casai-vos já aqui e agora na minha presença e perante o facto consumado, o teu pai já nada poderá fazer.

Joaquim nem queria acreditar que estivesse a minutos de passar a ser um homem casado. Ainda não se habituara à ideia de compartilhar o seu futuro com outra pessoa.

-          Então meu amigo, que vamos fazer? – questionou o cura.

-          Bem… sim… mas as alianças? Os papéis? Os padrinhos? – gaguejou.

-          Perante Deus nada disso é importante. Basta o amor que têm um pelo outro…

A noite há muito que abraçara o amontoado de casas, quando Joaquim pegou na mulher e chegado à porta do agora sogro, bateu.

-          Quem é? – demandaram de dentro.

-          Gente de paz que lhe quer falar! – respondeu Joaquim.

A porta de madeira mais podre que sã, rodou e deixou antever um homem mal arranjado, barba de dias por rapar, de cor cinza e os poucos cabelos desgrenhados. Carregava um ar triste e macilento. Todavia ao dar de caras com Joaquim logo o seu espírito se alterou numa reacção violenta:

-          Tu? Outra vez? Que estás aqui a fazer?

Joaquim limitou-se a sorrir e afastando-se um pouco, deixou que Aurora, agora casada, surgisse detrás.

-          Meu pai…

-          Larga esse homem! Já!

-          Agora não posso, meu pai. Casei-me com ele.

-          Ah, velhaco que me roubaste o meu único tesouro!

-          Não creio. Pelo contrário você é que ficou a ganhar.

-          A ganhar eu? Com quê?

-          Agora passou a ter mais um filho.

Furibundo o homem fechou com violência a porta na cara do casal.

Os noivos partiram nessa mesma noite para a vila onde dormiram a primeira vez juntos na Pensão Esperança.