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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - O Lagarto - XXVIII

A tarde abrasava. Após uma alvorada em que a maresia amansara a fazenda, um sol a pino tisnava enfim o ar tal qual a boca de um forno antes de cozer broa. A simples brisa avolumava ainda mais o calor. Nos campos o feno doirado gemia ao brilho do astro-rei. Até a passarada buscava as beiras das pias, meadas de água verde e salobra, para refrescar a penugem. Impossível alguém sair de casa para trabalhar.

No amontoado de casas brancas e rasteiras, solenemente perfiladas como um exército em parada, que era a aldeia, a populaça dividia-se entre a sombra de uma soleira, na maioria mulheres, que teciam intermináveis tagarelices sobre tudo e nada, e a taberna do tio Faúlha, onde os homens enterravam nas cervejas e nos copos de vinho as forças do dia. Também aqui se desfiavam rosários de conversas onde a caça e o amanho cresciam como assuntos únicos e obrigatórios.

Na pacatez da sombra benfazeja de um velho e enorme sobreiro, Mário atenta no moio de favas por debulhar que dorme na laje cinzenta e escaldante, esperando pela aventura de um trilho intenso. Duas vacas cor de mel repousam no chão ao lado. Ruminam feno com a calma de quem sabe que a tarde está ganha. Pura ilusão! O homem, indeciso, busca no seu âmago o desejo imenso de ir trabalhar, mas a indolência daquela tarde abafada, empurra-o para o sossego e deleite.

De súbito e como de uma mola se tratasse, salta do seu banco de granito, ergue-se com rapidez e dirigi-se às vacas. Segura na arreata que envolve o cachaço do gado e arrasta este para a alfaia. Carrega a canga nas bestas, ajusta com vigor a cilha, atrela o trilho e num instante conduz o par para cima do cereal. O vento tentando adivinhar a vontade de Mário, sopra então com mais força, elevando no ar uma nuvem de pó branco que não passa indiferente ao pacato povo da aldeia. Na terraço da taberna os homens beberricam em copos mal lavados e repletos, vinho ou cerveja. Perscrutam o horizonte e comentam:

- Anda alguém a lavrar!

- Com este tempo tão seco? Não creio. Não há bico de arado que entre nesta terra ressequida.

- Para mim aquilo é para os lados do Algar. Portanto só pode ser o Mário a debulhar as favas.

- Deve ser, deve! Agora me lembro! Ontem passei encostadinho à eira dele e reparei que estava cheia. Mas agora trabalhar com este calor! Só de doidos.

Mas o doido continuava a puxar pelas vacas. Em círculos perfeitos:

- Iaa Faneca! Bora Florida – animava o agricultor.

De quando em vez lançava para o chão um olhar entendido. O bafo de calor prosseguia ajudado pelo suão quente, que descia serra abaixo e envolvia o povoado como um manto. Uma ligeira sombra duma velha oliveira começava a alastrar no recinto da eira. Parou então para dar algum repouso e água aos animais e aproveitou para virar a palha com uma forquilha de bicos quase gastos.

- Mais umas voltas e fica pronto! – observou.

A eira, um círculo quase perfeito de pedras lisas e gastas de tanta labuta, era circundada por um muro atarracado, não autorizando que as sementes escapassem ao controlo do homem. Uma entrada estreita era todavia suficiente para passar um carro puxado pelas vacas.

Nas tardes de estio rigoroso, um enorme lagarto verde, aproveitava a palha para repousar e alimentar-se de pequenos insectos que por ali proliferavam. Desta vez jazia imóvel no cimo do muro cinza, indiferente ao homem e às bestas. Mário conhecia-o há muito e até lhe dera um nome: Baltazar.

- Ora viva. Já há muito que não te via por estas paragens meu mariola!

O réptil habituado àquele aldeão pacato e trabalhador, deixou-se ficar em silêncio, como era seu hábito, quiçá desatento aos epítetos do lavrador. Desatreladas as vacas, no fim da jorna, aquelas procuraram a enorme pia onde enfiaram as cabeças encabrestadas e donde sorveram com natural ruído a água que as saciou.

Palha puxada para um lado, logo o rodo juntou num monte as sementes esverdeadas. Com a ajuda da aragem do fim de tarde, ia limpando o pó das favas enrijecidas. O vasculho dançava na mão, qual bailarina ao som duma valsa vianense. Crescia o monte. E a grande seara, resumia-se agora a palha trilhada e ao volume menor de bagos. A medida quadrada de madeira de castanho feita, vai-se enchendo pelas mãos ásperas e grossas e despejadas nas sacas de serapilheira, contando:

- ... 59, 60, 61... alqueires. Não foi mau!...

A tarde cai em ondas de fogo. A noite fica já ali, por detrás do Cabeço da Abelha. Atrela as vacas ao carro, carrega as sacas repletas e bem atadas e salta para cima, também. Com o aguilhão comprido, toca os animais e ordena:

- Bora lá! Vamos!

As vacas sabem o caminho de regresso a casa. No seu passo sereno e compassado arribam finalmente. A noite envolve o lugar numa modorra própria de Estio. E quente, tal como o dia. Mário desatrela o gado e deixa que este procure a escuridão e a frescura do estábulo. Na manjedoura cai agora palha em molhos unidos como enxames.

O homem repara na carga e decide que o corpo já pede ripanço:

- Amanhã descarrego!

Finalmente entra na cozinha pela porta da alpendorada, senta-se à mesa e espera. A lua penetra na divisão por uma janela e é naquele instante a única luz da casa. A lareira está fria. Na parede um espaldar exibe tachos, panelas, pratos e tigelas devidamente enfileiradas. As pias do azeite e das chouriças sossegam na despensa escura.

Ninguém surge. Nenhuma voz se ouve. É então que Mário se recorda com amargura e tristeza: havia três semanas que ficara viúvo! A sua Dores partira definitivamente, deixando-o só e desalentado. Ainda não se habituara à negra solidão. Todas as tardes quando regressava ao lar onde vivera perto de quarenta anos com a mulher, sentia aquele vazio, aquela dor.

Os filhos haviam partido há muito para as suas casas e afazeres, logo após o funeral da mãe. Pretenderam levá-lo mas ele preferira ficar ali, carpindo uma ausência infinita.

Almoçando onde calhava mas geralmente em casa dos irmãos, regressa no fim do dia ao lar. Porém quando a noite o aperta e envolve ... ai a noite!

Suspira fundo e entre dentes desabafa:

- Se ao menos aqui estivesse o Baltazar!

Contos Breves - Pão e água - XXVII

Estremeceu sobressaltado com o berro. O seu nome ecoou sonoramente pela casa adormecida. Era sempre assim. O pai jamais soubera chamar por quem quer que fosse. Um estrondoso clamor e pronto. Havia que levantar e obedecer.
Ensonado, afastou a velha manta de trapos, vestiu a camisa outrora alva e saiu em busca do antecessor. Achou-o no pátio aparelhando as duas burras com diversos talegos de milho. A alvorada ainda vinha longe mas a jornada pretendia-se madrugadora.
- Pegas nelas e vais ao João do Pão... – ordenou o pai brusca e secamente, sem outras palavras ou qualquer cumprimento.
Lá se ia a combinação com o amigo Tavares para montar armadilhas nas Pias do Forno de Cima.
- Sabes o caminho? – perguntou abruptamente.
- Sei sim, meu pai – respondeu com a deferência que não sentia.
- Ficas lá à espera. Não vens sem a farinha! – Advertiu.
Na última viagem ao moleiro ficara por lá três dias. Agora poderia suceder o mesmo. Bastaria para tanto não haver vento. E desta vez nem uma bucha na sacola para matar a fome. Ainda assim foi ao poço e trouxe de lá uma infusa cheia de água fresca e pura. Um pedaço de cortiça vedou e boca evitando fugas durante a caminhada.
Pôs-se a caminho. Os pés negros e sujos pisavam terra e pedras num passo comedido. E nem lhe doíam tal era o tamanho dos calos. Poupava assim os sapatos para o baile do sábado seguinte. Ao longe uma luz ténue surgia, como de um guia se tratasse. A alvorada dera lugar à noite calma. Já despontara o sol havia muito quando parou pela primeira vez. Olhou a aldeia cravada no fundo de um vale rasgado pela natureza e pareceu-lhe tão minúscula. Pequenos pontos brancos salpicavam a paisagem atapetada de diversos tons de esperança. Nas encostas serranas o verde escuro e inquieto, das copas dos pinheiros predominava sobre a restante paisagem. E a paz que dali de desfrutava? Escutavam-se facilmente os sons da natureza: o ribeiro serpenteando por entre pequenas pedras em límpidos e constantes marejares; o trinar dos rouxinóis e dos melros num despique imperdível; as correrias desenfreadas de uma lebre em busca da toca salvadora.
As burras palmilhavam os estreitos caminhos, devagar. De quando em vez tendiam a encostar-se às paredes que delimitavam as fazendas amanhadas, tentando aliviar-se do peso. Mas Carlos já conhecia bem as manhas dos animais e logo que percebia algum aproximar dos muros, o jovem retirava-lhes a vontade com uma chibatada forte. Todavia naquela manhã uma delas teimava em atrasar a viagem.
Faltava apenas um légua, quando a besta fugindo por breves instantes aos olhos atentos do rapaz, acabou por rasgar um dos sacos despejando todo o conteúdo no chão. Parecia um silvo a primeira queda do milho. Perante tal cenário o moço parou enquanto amaldiçoava a sorte. No seu bolso moravam sempre pequenos atavios que ele usou para remendar o rasgão no talego. Depois apanhou o milho espalhado e reencheu o saco. Um trabalho moroso e aborrecido.
Retomou o caminho e um par de horas mais tarde achou finalmente o João do Pão. O moleiro era um homem já entrado na idade, magro, de pele seca e longa barba branca. Na boca podia-se notar apenas um incisivo. As velas, ufaneiras pareciam enormes leques, prontas a sacudir o mundo. O som sibilante do movimento rotativo ecoava pela encosta que se espraiava na frente do frondoso moinho..
Quando Carlos se aproximou, o velho João aparava um naco de broa, com uma navalha mal amolada. Distraidamente lançou a apara para o parapeito da pequena janela, embutida na grossa parede do moinho. Olhou o jovem e conhecendo-o logo exclamou:
- Olha quem cá está? O Carlitos...
O jovem esboçou um sorriso. Depois perguntou:
- Posso descarregar as burras?
- Claro rapaz. Traz cá os sacos.
Os talegos foram carregados para dentro onde o moleiro ultimava uma moagem:
- Põe aí em cima – ordenou.
O jovem obedeceu.
A manhã tornara-se numa tarde, solarenga e fresca. Um vento constante soprava nos panos fortes, fazendo-os rodopiar, qual roleta na feira de S. Sebastião, numa corrida sem fim. A hora de almoço há muito que havia passado e Carlos ainda não comera nada durante todo o dia. A fome revolvia-lhe o estômago, qual mar em dia de tormenta. Um olhar fugiu para o parapeito da janela, onde o velho João colocava as aparas duras de broa. Reentrou no moinho onde o mestre pesava os talegos antes de lhes retirar a maquia e perguntou-lhe:
- Tio João... aquele pão – hesitou.
- Que foi rapaz?
- O pão que está na janela é seu? – perguntou como não soubesse de antemão a resposta.
- Foi! Agora é da passarada que de vez em quando vai lá depenicar umas côdeas.
- Posso... posso ficar com umas quantas?
- Podes, podes! Mas olha que estão muito rijas – avisou admirado com a solicitação. Seria que o jovem pretendia comer aquelas nacos de pão de milho?
- Não importa! Bem-haja – agradeceu o rapaz com sinceridade.
De seguida foi à janela e rapou de todas as aparas de broa que lá encontrou. Os pássaros tinham mais onde comer. Ele não! Sentou-se numa meia mó partida e gasta pelo uso e comeu como de um belo manjar se tratasse. A seu lado encostou a infusa donde beberricava água fresca de quando em vez. Algum pão estava naturalmente muito duro, pelo sol e vento, mas ainda assim não escapou ao apetite voraz de Carlos.
Da soleira da porta o velho João de braços cruzados, mirou aquele jovem e recordou-se dos tempos de juventude e em que qualquer coisa lhe servia para matar a maldita fome. Outros tempos! Tempos de penúria e descrença. De muita fome e tristeza. De trabalho e mais trabalho. Mas aquele rapaz vivia naquele presente momento, outros tempos... também! Míngua, revolta, compaixão e raiva. Tudo num só instante. Notava-se no seu olhar. Como ele, João, conhecia de sobra esses sentimentos. Anos a carpir mágoas de barriga vazia... Esboçou ternamente um sorriso que mais parecia uma lágrima...
- Pão e água... – comentou finalmente em surdina para os seus botões.