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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Água da minha aldeia

Entre pedras sem polimento,
a água vai-se escoando.
Tem o rio no pensamento,
nada a detém. Vai voando.

É um risco simples na terra,
sulco vergado a tanta passagem.
É um vale recortado na serra
no coração de uma pastagem.

Ao longe vistumbra o azul,
destino final de outras tantas.
Sai-lhe ao caminho um paul,
silêncio de vivas mantas.

Foge lesta e indomável
à impossível prisão.
Felina sente o intolerável
dos que lhe roubam o pão.

Mistura-se como quem foge
que não vê mais o que é
Quer regressar a casa inda hoje
chamou uma nuvem para até.

Do cimo tão perto do céu,
corre apressada mais o vento.
Tomba por fim como um véu,
no vale de amoras e alento.

Quero ser eu, água, apenas e só!

 

Também pode ser lido aqui.

 

Contos Breves - A Jaqueta Perdida - XIII

 

-       Então até amanhã! – Despede-se com um aceno, que beijo na rua é coisa de gente sem vergonha na cara.

-       Até amanhã. Agora vê se te embebedas por lá – roga a Armanda, triste pelo ósculo desejado mas ausente.

O homem toca a mula carregada e parte no sentido do horizonte onde o dia desponta silenciosamente trazendo afazeres e canseiras. A mulher fica à porta vendo o marido desaparecer na charneca por entre giestas e estevas.

Julião assobia uma moda. Dum velho marmeleiro que cresce à beira da estrada, corta uma pequena verdasca que vai pacientemente descascando com o seu fiel canivete. Atravessa a ribeira a vau e corta para a aldeia vizinha.

Nos alforges do animal há peixe fresco, que caminha num passo lento mas decidido. Prefere o carreiro de terra enlameada às pedras irregulares e falsas. Por baixo das ferraduras resvalam ainda assim pequenos cálculos.

À entrada da primeira povoação, retira da casaca uma velha gaita – em tempos usara um búzio - e sopra com saber. O som sai ruidoso e roufenho mas depressa se transforma numa melodia conhecida. Como por magia, as mulheres surgem de todos os lados e rodeiam o homem.

O bufarinheiro percorre durante todo o dia todas as aldeias das redondezas, mas quando cai a noite já nada sobra. Feliz pela boa e inesperada venda, Julião pára finalmente numa taberna para repousar. Lá dentro encontra o Zé da Noiva, o Chico Tropa e o Manuel Rola, todos grandes amigos dos caminhos e bebedeiras. Com eles inicia mais uma viagem de segredos que há muito deixaram de o ser e mentiras que ninguém acredita. E tudo acompanhado por vinho, muito vinho.

A lua já vai alta, quando os quatro amigos decidem abandonar a tasca. Todos carregam demasiado vinho no bucho e no espírito, mas Julião é o pior de todos. Irritante e aborrecido, pisa e repisa as mesmas palavras. Estas saem quase imperceptíveis, tamanha é a bebedeira. Nem a água da chuva que entretanto inicia a cair, consegue compor apropriadamente o ramalhete. Há quem, num laivo de lucidez instantânea, recuse voltar à taberna para aquilo que seria um último copo. Diz simplesmente:

-       Vou para casa... - e abandona o grupo em direcção ao lar.

Os outros olham-no espantados, riem-se e comentam em tom de chalaça:

-       Vai, vai senão a patroa ralha contigo.

Pairam no ar as risadas sonoras dos outros amigos. Finalmente cada um segue o exemplo do primeiro e regressam todos às suas moradas... Resta unicamente Julião...

A noite é agora iluminada por relâmpagos brilhantes. A trovoada rasga-se finalmente à água e esta precipita-se abundantemente. O vendedor procura a mula, aparelha-a e põe-se a caminho. Não obstante o álcool turvar-lhe o pensamento e as ideias, ainda reconhece o trilho de regresso. Na jaqueta do almocreve há bom dinheiro e aquele tenta resguardar a vestimenta da chuva intensa e joga-a para cima da mula e tapando-a com uma velha canastra. Mas o caminho é irregular por entre pedras e carrascos, obrigando a naturais solavancos em cima dos alforges.

Cai a jaqueta aos pés do dono.

O viajante pára. No solo há agora algo que ele quer agarrar. Mesmo com a bebedeira, tem a real noção do seu estado e sabe que se se dobrar para a frente perderá naturalmente o equilíbrio e cairá na terra molhada. Flecte então os joelhos, agacha-se e agarra finalmente a veste. Sacode-a da lama e não reconhecendo a sua própria roupa, saúda:

-       Ena que bela jaqueta. Vai para aqui...

E lança-a novamente para cima da albarda. Continua então o regresso a casa. Mais à frente a jaqueta cai uma vez mais. Ao mesmo tempo ilumina-se o céu com novo relâmpago. Julião nota que no chão há roupa caída. Nova ginástica para pegar a peça de vestuário.

-       Mais outra… - exclama. Alguém anda a perder a roupa por aí!

A água ensopa-lhe a restante vestimenta, mas mesmo assim não sente frio. Ainda está a mais de uma légua de casa e a chuva não parece querer dar tréguas.

-       Raios partam a maldita chuva! – Resmunga o homem.

A pequena casaca cai mais quatro vezes e em nenhuma delas o peixeiro reconhece a sua própria roupa.

Quando finalmente se contavam por sete as vezes que a já bem encharcada jaqueta caíra, Julião em tom de desabafo comenta para si mesmo ao pegar uma vez mais na roupa tombada no chão molhado:

-       Não quero mais roupa! Já encontrei seis. Esta fica aqui – e atirou para cima duma carrasqueira a pequena veste.

Quando chegou, já quase madrugada, recolheu o animal no estábulo, entrou em casa e dirigiu-se ao quarto e sem acordar a patroa, deitou-se. A cabeça rodopiava qual dança, prevalecendo ainda os efeitos etílicos.

Pela manhã Armanda acorda o marido com maus modos:

-       Então homem, onde está o dinheiro da venda de ontem? Preciso de ir à loja e não tenho um centavo.

Julião abre os olhos. A luz entra no quarto por uma pequena janela, suficiente para o incomodar. Dói-lhe a cabeça e da boca exala um odor pestilento último vestígio da bebedeira da véspera. Contudo consegue ainda responder:

-       Está na jaqueta em cima da albarda da mula.

-       Eu vou lá buscá-la... – Armanda dá meia volta e vai até ao palheiro onde repousa o quadrúpede. Aqui procura a casaca, mas após investigação e sem nada encontrar entra uma vez mais em casa gritando.

-       Mas tu julgas que eu sou parva? Não vi a casaca nem a carteira...

-       Pois bem à falta de uma hão-de estar lá sete, digo bem sete jaquetas. Seis que eu encontrei ontem no caminho mais a minha….

Armanda não sabe de há-de rir ou chorar. Entretanto barafusta:

-       Mas tu pensas que não tenho mais nada que fazer que aturar-te. Chega de brincadeiras e diz-me lá onde está a casaca mais a carteira!

Julião acorda finalmente. Num furioso e repentino gesto põe-se de pé. Veste as calças ainda molhadas e sujas da noite chuvosa anterior e corre ao palheiro. A mulher espera o marido de braços cruzados à soleira da porta da sua entrada, como que adivinhando o resultado.

Sai finalmente o homem esbracejando e barafustando.

-       Juro por Deus que encontrei seis casacas no chão enquanto vinha para cá.

Incrédula a mulher responde:

-       Mas se pensas que acredito nessa história estás muito enganado...

-       Ora porra... Armanda. Até me obrigas a falar mal. Foi tão verdade como estarmos aqui os dois... Até houve uma que atirei para cima de uns carrascos e nem a trouxe...

Num relance a companheira logo percebeu o porquê da falta da fatiota e logo foi atacando:

-       Ah ladrão que deitaste a tua própria jaqueta fora. Tal era a bebedeira que nem conhecias o que era teu. E sabes ao menos onde a deitaste?

O pobre do Julião nem queria acreditar. Seria verdade o que a mulher lhe dissera? No seu tenebroso pensamento o dia anterior acabava na casaca lançada fora. Temendo que alguém descobrisse a veste com a carteira recheada, logo se pôs a caminho até ao local onde calculou que estaria a roupa abandonada. A princípio não a viu e o seu frágil coração bateu mais depressa. Depois embrenhou-se mais no meio do mato e acabou por encontrar o que procurava. Arrancou-a aos ramos dos carrascos e apalpou-a. Sentiu o volume da bolsa do dinheiro e retirou-a. Abriu-a e contou o numerário. Estava todo.

Respirou finalmente de alívio e regressou a casa feliz, trauteando uma música alegre.

Armanda chora, amaldiçoando a sua sorte enquanto se aproxima o marido. Este agita no ar a bolsa recheada com ar de triunfo e consegue finalmente que os lábios da mulher se abram num sorriso aliviado e feliz.

Contos Breves - A Penitência - XII

 

Amadeu despertou. O dever de acordar a tempo e horas não o deixava dormir em paz. Ergueu-se silenciosamente, vestiu-se e saiu do minúsculo quarto que compartilhava com mais três irmãos. Na lareira da cozinha ardia ainda molemente um borralho. O rapaz buscou na dispensa escura a salgadeira e cortou um naco de presunto já ressequido. Duma velha arca, herança de uma avó que nunca conhecera, retirou meia broa dura de várias semanas.

Sem ruído que acordasse o pai viúvo ou os mais jovens irmãos entrou na penumbra da noite. Esta, surgia ainda branda após um dia de intenso calor. No ar bulia uma leve brisa que acariciava docemente as copas das árvores. A lua colada ao firmamento, alva e brilhante, parecia feliz por ter a quem iluminar.

O nocturno viajante iniciou a sua marcha acordando o ladrar de alguns cães vadios. No relógio da centenária igreja soaram duas estridentes badaladas que ecoaram na noite silenciosa. Aguardavam-lhe no mínimo perto de quatro horas de caminhada, antes de chegar à Quinta Grande e não havia claramente tempo a perder. Conhecia bem o caminho, mesmo que fosse por entre carrascos e penedos, medronheiros ou silvados, fosse de dia ou de noite. Todas as semanas fazia aquela longa caminhada. O retorno era ao sábado pela véspera numa carroça puxada por dois cavalos que o patrão simpaticamente disponibilizava para os criados que viviam longe da quinta. O carreiro subia e descia por entre pequenos montes e vales, atapetado de pedras irregulares, aconchegadas com terra vermelha e barrenta.

Após duas horas de passo seguro e regular o jovem aproximou-se de um local mal afamado donde se contavam histórias mirabolantes e inverosímeis. A acrescentar aos estranhos relatos havia uma velha oliveira, rasgada ao meio pelo peso da idade, que se situava à entrada duma fazenda e à qual davam o bizarro nome de “Oliveira da Bruxa”. O rapaz jamais crera em tais contos fantásticos. Achava que era cisma dos mais velhos. No entanto naquele local fervilhava um ambiente soturno e triste que Amadeu respeitava. Nessa mesma noite, com a ajuda do luar forte de Agosto, o jovem olhou a oliveira ao longe e julgou perceber que perto desta se vislumbrava um vulto. Mas logo afastou essa ideia pois não acreditou que àquela hora da madrugada ali se encontrasse alguém. Todavia ao passar mais perto da árvore, uma voz chamou-o:

-       Boa noite Amadeu!

O moço estacou. O coração batia agora a um ritmo acelerado. Engoliu em seco, respirou fundo antes de responder à saudação:

-       Boa… boa-noite…

A figura estava agora na frente do rapaz e assim ele pode ver com exactidão que se tratava de uma mulher ainda nova, talvez ligeiramente mais velha que ele próprio. Trajava de negro e envolvia a cabeça num xaile que deixava ainda assim destapado um belo rosto branco. Os olhos negros eram penetrantes e brilhavam à luz de uma Lua radiosa. Amadeu lembrava-se daquela figura num pequeno povoado a poucos quilómetros da sua aldeia mas nunca lhe dirigira a palavra.

Parecendo adivinhar os pensamentos do rapaz a estranha mulher perguntou:

-       Conheces-me, não conheces? - e ao acenar afirmativo do jovem continuou, - e sabes o que eu sou?

O jovem não sabia mas calculava. Mesmo assim respondeu:

-       Não, não sei.

-       Sou aquilo que na aldeia chamam erradamente uma bruxa. Contudo não faço mal a ninguém. Apenas sou a voz de alguém que está acima de nós. Crê que não te quero mal. Tu és um bom moço e o teu coração é puro. E é por isso que aqui estou pois tens uma penitência a cumprir.

-       Uma penitência? – Perguntou agora visivelmente assustado.

-       Sim uma penitência. Se a cumprires como deve ser terás uma vida longa e serás abençoado. Se não a cumprires serás amaldiçoado e teu futuro será um inferno. – E após uma pausa, perguntou:

-       Então que dizes?

-       E que tenho eu de fazer? – Questionou novamente o viajante sem saber muito bem o que consistiria a tal prova.

-       Só terás de me carregar às tuas costas até minha casa. E depois não dizeres a ninguém quem eu sou. Se me denunciares a quem quer que seja eu saberei e a penitência ficará quebrada.

-       Mas é um grande desvio do meu caminho. Eu vou para a Quinta Grande trabalhar e tenho de lá estar cedo – tentou ainda desculpar-se.

-       E tu julgas que eu não sei. Entretanto se formos já ainda chegas à Quinta a tempo. Terás apenas de correr um pouco.

Enquanto falava, a bruxa torneou o rapaz e num salto ficou às costas deste. Os braços dela envolveram-lhe o pescoço e as pernas atracaram-se na anca do jovem. Este sentia agora o bafo quente da mulher junto à sua face. Dela exalava um cheiro doce a ervas que o rapaz decididamente não apreciava. Amadeu nem queria acreditar no que lhe acabava de acontecer. O bom senso que geralmente o animava uma vez mais o ajudou na decisão. E sem mais demora pôs-se a caminho com a invulgar carga.

A juventude dos dezassete anos dava ao moço a força e genica suficiente para carregar aquele inusitado fardo. O seu pensamento saltitava agora entre o atraso que aquele involuntário desvio iria trazer e a humilhação que passaria se alguém o visse naquela figura. Quando se aproximou do conjunto de pequenas casas onde a sua companheira de jornada vivia, esta sussurrou-lhe ao ouvido:

-       Pára Amadeu. Eu fico aqui.

Da mesma forma ligeira como subiu às costas do penitente, desceu.

-       Pronto. A tua penitência está cumprida. Agora cala-te e não digas a ninguém quem eu sou. Podes ir, então.

O jovem nem se despediu. Virou costas e correu, correu sem parar, até avistar os primeiros casarões da Quinta Grande. O dia começava a clarear quando chegou ofegante junto do patrão. Mal conseguia falar e assim foi o patrão que perguntou:

-       Então rapaz, que te aconteceu para chegares aqui nesse estado? Parece que fugiste de um bicho…

Num esforço Amadeu mentiu:

-       Desculpe senhor Manuel Pedro, atrasei-me.

Mas o patrão, homem velho e sabido e conhecedor da alma humana logo desconfiou da resposta e rematou:

-       Vai então dar de beber aos bezerros e quando acabares, aparece lá em casa que quero falar contigo.

-       Sim senhor, – acatou o moço já mais refeito.

Já o sol dominava o céu azul raiando canícula, quando o jovem se apresentou uma vez mais ao patrão enrodilhando nervosamente uma boina.

-       Aqui estou senhor.

Manuel Pedro estava sentado numa velha cadeira, no pátio que se abria à frente da porta principal. Nas pernas uns livros grandes e amarelos serviam de apoio a algumas folhas onde o homem assentava alguns números. Assim que Amadeu se apresentou, poisou calmamente o lápis e retirando os óculos que o ajudavam a ver melhor as contas, perguntou:

-       Então diz-me lá rapaz, o que te aconteceu esta manhã?

O moço temeu o pior e mentiu novamente:

-       Nada senhor. Não aconteceu nada. Apenas me atrasei. Só isso.

-       Passaste pela “Oliveira da Bruxa”? – Perguntou de chofre o patrão.

Amadeu assustou-se com a intenção da questão, mas aparentando relativa serenidade, respondeu:

-       Claro, como sempre. É por aí o caminho mais curto…

-       E não vista a bruxa?

Desta vez não podia mentir. Calou-se então. Esperou que o silêncio profundo servisse de resposta. E não se enganou:

-       Pois já calculava... – observou o patrão – e então cumpriste a penitência?

-       Como é que o senhor sabe? – Questionou espantado o rapaz. Mas logo percebeu que com aquela pergunta confirmara a desconfiança do amo.

-       Porque em tempos também me aconteceu o mesmo. Tinha eu mais ou menos a tua idade. Era uma mulher jovem e bonita vestida de negro e obrigou-me a carregá-la às costas até casa.

-       Mas como pode ser possível. Esta é tão nova que podia ser sua filha. Como pode ser a mesma pessoa?

-       Pois é. Esse é um mistério que ainda ninguém desvendou. Todavia não te esqueças que ela é uma bruxa com poderes fabulosos... – e percebendo o silêncio comprometedor de Amadeu, concluiu:

-       E claro, não se pode dizer o nome dela.

-       Pois não… – suspirou aliviado.

O jovem voltou a passar pelo mesmo local muitas vezes mas jamais foi abordado

Contos Breves - Um Bom Homem -XI

O Sol surge timidamente por detrás duma névoa alva. São seis da manhã, toca o sino no cimo do campanário. Um galo canta tentando acordar a capoeira. Um cão ladra. O burro responde. A manhã está fresca. Uma brandura de Estio ideal para colher os tremoços.

Augusto Narciso já arreia a mula à carroça. É uma grande alma que ali está. Veste uma camisa surrada meia escondida por uma jaqueta puída. As calças largas deixam vislumbrar uma corrente prateada que, desaparecendo num pequeno bolso, permite adivinhar um relógio. Finalmente um chapéu de aba estreita assenta na calva franciscana. Começou do nada, tendo apenas as mãos que Deus lhe deu – como ele próprio ousa dizer. E construiu uma grande vida. Talvez a maior das redondezas. Mas irrita-se quando que lhe confirmam isso. Prefere o recato da descrição à balbúrdia da fama. Todavia o povo da aldeia reconhece mérito no crescimento daquela família. Dorme pouco de noite pois os negócios são muito mais importantes que o próprio Morfeu, mas nunca recusa a sesta, seja de Verão ou de Inverno.

Quantas vezes muitos homens e mulheres lhe haviam batido à porta em busca de trabalho e Augusto sem necessidade de contratar alguém sempre arranjava que fazer para mais um. Debaixo do seu metro e oitenta de altura e sete arrobas de peso, mora uma alma crente e temente a Deus.

Mas naquela manhã espera ansioso por um criado, o Vicente, que surge enfim no cimo da calçada a correr por já estar atrasado.

-       O patrão desculpe, mas tive de acordar o ti’Angelo para que me aviasse uma onça de tabaco.

-       Essa porcaria ainda um dia te mata, Vicente. Vá! Pula cá para cima, que temos muito que andar e que fazer – ordenou impaciente.

Num gesto que evidencia prática o rapaz salta para o lado do patrão. E grita para a mula:

-       ‘Bora Choupana! – mas é o patrão que tem os arreios e dá o toque de partida.

O caminho é longo. Atravessada a aldeia e a velha ponte romana, sobre o ribeiro quase seco, vem uma vereda de terra batida. O pó vai ficando para trás enublando a estrada já trilhada. Após longos minutos de silêncio, durante o qual o criado enrolou três cigarros, pergunta finalmente Augusto:

-       Sempre chegaste a vender a porca que lá tinhas.

-       Oh! Nem me fale nisso. O ti’ Chico da Viúva combinou comigo uma coisa e depois – e encolhendo os ombros, continuou – negou-se ao negócio. Desculpou-se que não tinha salgadeira...

-       Mas tu ainda queres vender a bicha?

-       Se alguém me der bom dinheiro por ela...

-       E quanto queres?

-       Ó patrão, se é para si faço mais barato. ‘Tou a pedir doze notas, mas a si só quero dez. Nem mais um tostão.

-       Está bem. Quando regressarmos havemos de voltar a conversar.

-       Sim patrão.

O fim da viagem aproxima-se num passo lento de mula velha e cansada. Uma enorme seara cor de oiro pronta para a ceifa surge esplendorosa no horizonte. É um manto sedoso ondulado pela pouca brisa que sopra. Pergunta o criado com preocupação:

-       É isto que temos de ceifar? Olhe que ainda é um bom bocado...

-       Nã’ senhor. Vamos mas é tratar dos tremoços que a manhã ainda está fresca para os apanhar. Se os deixamos secar já não se arrancam hoje que eles picam como doidos.

Chegados à fazenda recheada, o criado desatrela a mula que pacatamente escolhe o pasto num prado contíguo. No panal já estendido no chão, ainda húmido pela madrugada fresca, tombam em monte os canudos carregando vagens ainda macias de tremoços, arrancados à terra por mãos fortes e calejadas. Vicente gosta pouco deste trabalho mas não quer ficar atrás do patrão. E assim vai trabalhando com afinco. Numa pausa para um pouco de água o patrão pergunta:

-       Então não trouxeste nenhuma bucha para o teu almoço?

-       Eu pedi à minha Deolinda que me trouxesse cá qualquer coisa.

-       Mas isto ainda é longe... – confessou o outro.

-       Ela sabe. Mas quis antes assim – respondeu o criado enquanto acendia novo cigarro.

Augusto vira as costas e desabafa numa voz onde se denota algum desalento:

-       Muito tu fumas, rapaz.

-       É bem melhor um cigarro que uma sopa... – confessou inocentemente.

-       Já mais de uma vez que me disseste isso. Um dia tramas-te.

Quando soa o meio-dia, o criado tenta vislumbrar no caminho a silhueta da mulher. O patrão olha-o de soslaio e percebe uma leve expressão de contrariedade. Voltam ao trabalho sem quaisquer comentários. O Sol cai a pino e a pequena brisa fresca que soprava pela manhã transforma-se num vento quente e seco que quase queima as entranhas. Muito ao longe ouve-se novamente o relógio a bater a uma da tarde. O criado range os dentes de fome. Augusto numa atitude desafiadora aconselha:

-       Fuma um cigarro, enquanto esperas.

O rapaz não se faz rogado. Retira da bolsa de cabedal pequenas farripas de tabaco e com perícia enrola-as com uma mortalha branca. Depois humedece a ponta da pequena manta branca e cola em cima da outra de forma a ficar um pequeno cilindro. Um fósforo acaba por fazer o resto e Vicente aspira o fumo com prazer. Conquanto o tempo passa, um nervoso miudinho vai crescendo no espírito do rapaz. Até que murmura entre dentes:

-       Por que será que aquela estuporada mulher não vem?

Ouvido o comentário o lavrador mais velho volta à carga:

-       Ora! Fuma mais um cigarro!

O criado explodiu então, num mau génio pouco habitual:

-       O patrão deixe-me e mais os cigarros, que já nem me apetece fumar...

O criado caíra na armadilha. É que Augusto, no dia anterior mandara avisar a Deolinda para não levar almoço ao marido, pois ele próprio carregaria para ambos. No entanto o patrão nada levou, mas solicitou à mulher que aparecesse na seara, apenas no princípio da tarde, com farnel para dois.

-       Então onde está o homem que dizia que preferia o cigarro à sopa? Vá fuma mais um cigarro... – glosava agora o patrão com prazer.

O Vicente olha o homem imenso e nem sabe que dizer. Apercebe-se que o agricultor quis po-lo à prova. O almoço acaba por chegar pelas mãos da patroa conforme combinado e no fim quando o vício volta a surgir, o rapaz vira-se para os patrões e pergunta:

-       Dão-me licença que fume?

Responde-lhe Augusto na voz calma e serena:

-       Fuma à vontade Vicente. Mas não te esqueças disto que te vou dizer: não há cigarro que encha um estômago vazio.

O criado olha a beata que quase queima os seus dedos ictéricos e puxa uma última fumaça. Depois, poisa no chão seco e quente o coto e pisando-o, promete:

-       Desta vez é que vou deixar de fumar...

O patrão sorri e desabafa em surdina com os seus botões:

-Este Vicente é mesmo um bom homem.

Contos Breves - Um Jantar Especial - X

 

No sopé da serra uma aldeia espraia-se pelos campos verdes. Uma ribeira atravessa o casario numa corrente doce. O vento que vem da encosta, outrora vestida de verde escuro, já não traz o perfume dos pinheiros. Um fogo arrebatador transformou a ladeira numa cor carvão.

No povoado a maioria dos aldeões vive daquilo que a terra bem tratada lhes dá. Outros buscam diferentes formas de rendimento, trabalhando nalguma fábrica ou emigrando para a capital. Havia ainda quem procurasse fortuna num país estrangeiro.

Francisco Zenóbio fora um desses homens que não se habituando à dura vida do campo, decidiu arrumar a mala e partir para Lisboa. Permaneceu na grande cidade durante vinte anos. Mas também aqui não foi feliz. Casou e enviuvou durante esse tempo. E por isso decidiu regressar à terra que o vira nascer.

As diversas profissões que tivera na cidade faziam dele um homem com muitos conhecimentos e preponderante. Fosse electricidade ou água, qualquer coisa ele abraçava sem receio e sempre pronto a ajudar quem dele necessitasse. Mas ao fim do dia era habitual ver o viúvo na taberna do Luís até tarde. Quando saía, geralmente nunca vinha só. O vinho fazia-lhe tanta companhia que ambos tomavam conta por inteiro da estrada.

Até que um dia o Zenóbio voltou a apaixonar-se. Foi na loja do Gabriel que a viu pela primeira vez. Vestia uma bata de sopeira, mas mesmo assim as formas esbeltas ressaltavam da roupa. Era ainda nova a rapariga.

-       Quem é? – Perguntou ao Gabriel.

-       É a Clara, filha do Zé Padeiro. Trabalha na casa do senhor doutor – respondeu o outro.

Francisco depressa usou dos seus conhecimentos para chegar à fala com a Clara. E pouco tempo depois casava-se com a criada numa boda discreta. Todavia esta sabia do gosto do marido pelo vinho e obrigou-o a prometer que deixaria de beber o que ele fez sem relutância. Contudo, como de uma amante se tratasse, Francisco visitava a taberna às escondidas da mulher. Mas o estado em que chegava a casa denunciava a sua promessa. Às primeiras vezes Clara foi condescendente e nada disse. Só quando o marido começou a chegar todos os dias em perfeito estado de embriaguez, é que a mulher resolveu assumir uma posição mais firme de forma a evitar mais discussões.

-       Ou paras já com essas visitas à taberna ou então eu regresso a casa de meu pai. Não casei para aturar um bêbado.

O homem ficou fulo. Odiava que a mulher o tratasse como um alcoólico. Contudo temeu que as ameaças passassem à prática e durante uns tempos evitou o caminho da taberna do Luís. Havia alguns companheiros que já brincavam com a situação:

-       Então Chico queres que eu vá pedir autorização à tua patroa para vires beber um copito? – E riam-se...

O visado ria-se, mas com pouca vontade. Passado pouco tempo nova escapadela até à taberna fez com que a jovem esposa pensasse em agir com mais inteligência, de forma a evitar uma vida de desassossego e martírio. Decididamente Clara era uma mulher resoluta e resolveu pregar uma partida ao marido. Assim, escolheu o dia do seu aniversário para cumprir o que tinha em mente.

Chegado o dia dos anos de Zenóbio, a esposa preparou um pitéu deveras especial. Quando o homem já estava à mesa, disse-lhe:

-       Hoje vais comer uma coisa catita e que me ensinaram na casa onde servi. Só as pessoas ricas é que sabem apreciar esta comida.

-       Ó mulher traz-me então isso, que eu tenho uma destas fomes! – acrescentou enquanto esfregava as mãos de contentamento.

Então Clara retirou duma panela fumegante duas conchas de sopa. Mas, antes de entregar a sopa ao marido, despejou para dentro do caldo um copo de vinho branco, previamente azedado.

Quando Francisco engoliu a primeira colher, não disse nada. Mas depois comentou:

-       Eh, raio, esta sopa sabe mal... – e após uma pausa – sabe a vinagre.

-       A vinagre? Olha que as pessoas ricas comem-na sempre assim. E garanto-te que não pus nada de estranho na sopa.

Francisco contrariado, lá continuou a comer, mas notava-se-lhe na cara uma insatisfação total com o que estava a saborear. Depois veio o conduto, que era um saborosíssimo galo assado no velho forno de lenha. Novamente sem que o marido visse, Clara retirou o galo de um tacho diferente daquele que servira para si própria. Apresentou o prato ao marido que, desconfiado olhava-o com desdém. A mulher, vendo o marido assim inactivo perante o assado, perguntou-lhe:

-       Então home’? Não comes?

-       Não sei – respondeu de mau modo, o marido.

-       Olha que o galo está muito bom. Não tem nada de mal. Foi feito com muito carinho para este teu dia tão especial.

Vencido, mas não convencido, Francisco levou a primeira garfada à boca. Mastigou devagar, saboreando bem a comida. Momentos depois, o homem cuspia para o prato o que metera na boca.

-       Arre, qu’isto não se pode comer. Só sabe a vinho.

-       A vinho? Tu estás maluco! Então eu iria pôr alguma vez vinho na comida? Só se fosse para estragar. Sabes do que é isso? É do muito vinho que bebes e agora a comida só te sabe a isso.

Zenóbio não acreditou e riu-se:

-       Essa mulher também é bem caçada! Agora queres tu dizer que a comida só me sabe a vinho pelo que eu bebo? ‘Tás tonta cachopa!

Mas Clara não desistiu e respondeu-lhe:

-       Então hás-de perguntar à ti’Belmira o que é que aconteceu ao seu home’! E aqui nas redondezas há muitos casos assim...

Francisco escutava a mulher. Já lhe tinha chegado aos ouvidos uma conversa daquele teor, mas julgara que não passava de uma laracha. Entretanto, distraidamente, metera outra garfada à boca, mas logo voltou a cuspir.

Pegou então no copo que se encontrava cheio de vinho quando se lembrou do que a mulher acabara de dizer. Olhou para esta e enquanto Clara saboreava uma bela perna do galo, o marido olhava a comida gulosamente. Então poisou o copo e disse:

-       Clara, a partir de hoje não bebo mais vinho.

A mulher riu-se disfarçadamente e continuou a comer, enquanto o homem a via devorar com gosto a carne por ela preparada. E ele cheio de fome…

Hoje quando alguém aparece lá em casa a comer Francisco vai buscar à adega o seu melhor vinho que continuava a fazer das suas belas uvas, mas não bebe. Quando lhe perguntam porquê, apenas responde:

-        Já bebi a minha parte do “meu melhor legume”.


Contos Breves - O “Quatro-Vinténs” - IX

-         Ei Tenório, chega aqui depressa, se puderes!

O destinatário do chamamento passava no carreiro estreito ladeado por paredes de pedra e tufos de carrascos e medronheiros, e ao ouvir o seu nome acorreu lesto e desembaraçado. Saltou o pequeno portal e foi ao encontro de quem clamara pela sua presença.

-         Diga lá ti’ Brilhante – acudiu numa expressão alegre como era habitual.

-         Preciso que me vás buscar aquela chiba ali à ribeira – e apontou para o fundo do declive - Fugiu para lá, nem sei como. Está farta de berrar e eu não posso deixar o rebanho aqui sozinho. Fazes-me esse grande favor?

-         É pra já!

Desceu sem qualquer temor a encosta íngreme até ao ribeiro, que corria veloz com a força das chuvas invernosas. Corajoso e destemido entrou no leito todo vestido, agarrou a cabra pela coleira de cabedal que envolvia o pescoço, onde um chocalho bramia um som metálico e bem característico. Com força puxou o animal para si, arrastando-o depois para terra. Assim que o bicho se viu em chão duro, escalou com pujança a encosta e foi juntar-se ao resto do rebanho que pastava serenamente. Tenório saiu da água gelada com maior dificuldade do que calculara, mas não o reconheceu.

-         Já está! Foi fácil!

O pastor levou então a mão ao bolso e retirou de lá umas moedas que entregou ao rapaz:

-         Toma é para ti!

O outro recebeu o dinheiro e feliz agradeceu com sinceridade:

-         Bem-haja.

Era amplamente sabido o exemplo de Tenório Gouveia, mais conhecido pelo “Quatro-vinténs”. A cegueira que este demonstrava pelo vil metal era tão doentia, que muitos se aproveitavam da sua fraca cabeça, desfecho evidente de uma meningite mal curada, para angariar serviços por um parco número de moedas.

O único que defendia Tenório era o seu único irmão Bernardo, que tentava em vão introduzir alguma sensatez naquele cérebro claramente deficitário. Mas a sua luta não se cingia ao irmão. Perante o rude povo aldeão tentava semear a ideia que o rapazola era muito útil, afável e muito esperto. E tanto vincava aquelas ideias, que um ano conseguiu mesmo que aceitassem nomear o mano como festeiro no evento que se realizaria por altura das cerejas.

Chegada a véspera da romaria lá surgiu o nosso homem pronto para aquilo que fosse necessário. “Quatro-vinténs” fazia um pouco de tudo: carregava os postes para as bandeiras, levava os estrados para fazer o palco para a banda, subia às araucárias donde cortava largas folhas com as quais cobriam o recinto da festa. Bastava pedir qualquer coisa e lá ia o Tenório a correr disposto a dar conta do recado. O ambiente compunha-se. Na aldeia as pequenas bandeiras multicolores espalhavam-se como um vírus pelas ruas estreitas dando um ar muito festivo ao povoado.

Aproximou-se o grande dia. Bernardo comprou uma camisa ao irmão, para ele a estrear no dia da procissão. O fato emprestar-lhe-ia um seu. O pior seria com os sapatos que Tenório de todo não apreciava.

As raparigas solteiras, ultimavam as fogaças, tentando requintá-las com os melhores acepipes. As que tinham o coração preso, esmeravam-se ainda mais, pois sabiam de antemão que os futuros fariam o possível para adquirir o tabuleiro da sua amada. E como tudo era a leilão, havia quem pagasse uma pequena fortuna para ficar senhor dos petiscos, que o coração, esse, já fora conquistado.

Mas no povo havia sempre quem nunca pretendesse fazer parte da comissão de festas, propondo-se unicamente como grande senhor da verdade e crítico corrosivo dos trabalhos que decorriam pelo povo. Era o caso do Eurico Mendes, para quem tudo estava mal feito, deficientemente organizado e incorrectamente preparado. Geralmente o desprezo a que o pópulo o votava era evidente e justamente avalizado.

-         Um destes dias vou aos fagotes do Mendes. Aquele pulha, que não merece outro nome, nunca fez nada cá pelo povo, e está sempre com a faca espetada. Ai dou-lhe, dou-lhe – ameaçou certo dia o responsável mor pelo acontecimento, já cansado de tanto sarcasmo e contestação.

-         Eh pá, aguenta aí. Deixa-oem paz. Eleé parvo mas já ninguém lhe liga. É um pobre diabo… - apaziguou outro, sabedor do espírito “esturrado” do juiz da festa.

-         Eu digo-te se é pobre. Ele que diga mais alguma e vai ver o que lhe acontece. Leva tamanha cachaporrada que lhe fica de emenda.

Porém o Mendes continuava na sua cruzada contra os festejos. Azar! O mestre das comemorações ouviu-o e sem nada dizer enfiou-lhe dois valentes sopapos, que deixaram o outro sem reacção.

-         Se voltas a dizer mal da festa, dou-te com um alferce que te racho ao meio. Tens a mania que és esperto mas eu dou-te que fazer…

O antagonista nem tugiu nem mugiu. Retirou-se da taberna onde tudo acontecera e dirigiu-se para casa em passo lesto. Prometeu a si próprio não aparecer até acabarem as festividades. Dedicar-se-ia exclusivamente ao amanho da terra e à guarda de meia dúzia de cabras. Só a Hermínia iria à missa no Domingo da procissão. Mas acordou consigo mesmo vingança futura.

Entretanto Tenório continuava na sua imensa labuta, tentando chegar a todo o lado. Nada o atemorizava e enfrentava todos os desafios com o mesmo à-vontade com que fosse fazer a coisa mais singela ou corriqueira. Faltava-lhe o normal bom-senso para ter consciência do perigo e denotava dificuldades para destrinçar o bem do mal.

Na sexta-feira, primeiro dia de arraial, os foguetes saltaram das mãos do entendido dando assim alarido e alegria ao povo. Com a noite chegaram os forasteiros enquanto a banda filarmónica testava os primeiros acordes.

As sardinhas, os couratos e as entremeadas davam cheiro e sabor ao recinto, quando a banda iniciou finalmente a tocar. O som espalhava-se por toda a aldeia ajudada pela encosta íngreme. De quando em vez ribombava, nos céus negros da noite entretanto caída, com natural estrondo, mais um foguete.

No recinto Tenório estava de serviço às mesas. Fazia a encomenda para a grelha e servia as pessoas. Porém as contas eram os companheiros que as faziam. Um grupo barulhento de jovens ia entretanto atazanando o pobre festeiro:

-         Ouve lá! Queres? E mostravam-lhe uma moeda.

Os olhos abriram-se-lhe então numa alegria evidente:

-         Quero, quero! – e estendia a mão, qual pedinte em dia de feira.

Mas os outros velhacos e malandros escondiam num ápice o dinheiro para grande desanimo de Tenório. Este reagia como uma criança, baixando a cabeça triste e acabrunhado. Os outros aproveitavam-se da situação para larachar com o rapaz:

-         Então “Quatro-vinténs” hoje não ganhas nada? Pobre de ti… Tadinho…

E riam sonoramente.

Batiam as sete da manhã no campanário da centenária igreja quando estoirou pelo vale o primeiro foguete anunciando a alvorada. Os cães ladraram com violência. Durante uma hora ninguém descansou com o foguetório consecutivo e barulhento. Era Domingo, dia de missa e procissão. Os santos padroeiros sairiam à rua e as moças solteiras arcariam com esforço os pesados cestos por elas preparados. Bernardo acordou cedo o irmão e após um banho anormalmente grande deu-lhe a camisa nova que ele vestiu com alegria e vaidade. Aperaltou-se como podia deixando no entanto a gravata à banda. Lá surgiu o irmão que o ajeitou com verdadeiro carinho fraterno.

Depois deu dois passos atrás e mirou-o de alto a baixo, dando então um assobio de concordância com o que via:

-         Estás um senhor! As raparigas esta noite não te vão largar. Ainda por cima vais carregar com o andor de Santo António que é o santo casamenteiro. Não tarde estás casado – animava o mano.

Um sonho que Tenório um dia lhe confidenciara:

-         Eu gostava de ter uma namorada. E casar…

Era meio-dia. Principiara a missa solene. O padre compenetrado na sua divina missão, seguiu todos os preceitos até que deu início à procissão. Tenório excitado acorreu para junto do andor do santo de Lisboa e aguardou. Atiraram-lhe para as mãos a opa vermelha que ele vestiu imitando os companheiros.

Finalmente alguém ordenou:

-         ‘Bora Quatro-vinténs, pega aí do teu lado. Mas devagar…

O rapaz, solenemente meteu as mãos por baixo e ergueu com facilidade o andor. Colocou-o em cima do ombro direito, previamente atapetado com uma pequena almofada e logo sentiu o peso.

A procissão saiu à rua. O rapaz não resistiu a uma quase gargalhada, quando no adro da igreja, à frente de todos percebeu o irmão, que dissimuladamente cerrou o punho num gesto amigo e de apoio. Devagar e solenemente seguindo os da frente, as figuras santas deslizavam num suave bailado. A fanfarra tocava, os foguetes estalavam no firmamento azul, os cães continuavam a ladrar, os peregrinos oravam numa fé abnegada. Das varandas pequenas, trabalhadas a ferro fundido, pendiam bonitas colchas multicolores, arrancadas à cânfora das enormes arcas que as guardavam apenas para se mostrarem naquele momento. A maioria do povo acompanhava a procissão, mas havia quem aguardasse pela passagem dos santos devotos. No largo da feira o mesmo grupo de rapazolas foliões e gozadores da noite anterior esperavam a procissão. Quando Tenório passou junto deles e conhecendo-os sorriu-lhes na sua natural inocência. Mas estes, abrilhantados por um espírito de malvadez e sabendo da cegueira de “Quatro-vinténs” pelo terrível metal, atiraram para a frente do rapaz uma boa moeda.

-         Toma, é para ti.

O dinheiro caiu mesmo à frente de Tenório rodopiando devagar na calçada. Este jamais se lembrou onde estava e o que carregava. Largou o estrado e baixou-se de supetão para agarrar o erário.

Foi a confusão total! Desequilibrado, o andor tombou para a frente e o santo escorregou do seu lugar. Um alarido do povo acompanhante fez o moço olhar para trás. O que viu foi somente a figura castanha de Santo António com um menino ao colo dirigir-se no seu sentido como se o quisesse agarrar numa queda imparável. Naquele instante porém, apenas perguntou inconsciente da sua fraqueza e acima de tudo das palavras:

-         Ah também viste a moeda?

Para logo responder:

-         Mas apanhei-a eu primeiro!

Contos Breves - A Dúvida de José Lucas - VIII


Poucos anos após o nascimento de José Lucas, logo se percebeu que a criança não era como os restantes irmãos. Fisicamente perfeito, contudo facilmente se descobria que o rapaz tinha notáveis dificuldades em falar. Mas acima de tudo evidenciava pouca capacidade de concentração e de raciocínio. O pai, agricultor de profissão, empenhou-se para levar o miúdo aos melhores médicos da capital, donde regressou com a resposta de que apenas o tempo e o convívio com outras pessoas faria melhorar o filho deficiente, mas jamais ficaria como os demais irmãos.

O tempo da escola chegou e com ele maiores foram as dificuldades demonstradas pelo catraio. A professora Odete até o ajudava sempre que podia, mas mesmo assim era patente o custo de aprendizagem. José acabou por abandonar a escola meia dúzia de anos mais tarde e ainda assim pouco mais sabia do que escrever – e mal – o seu próprio nome. Quanto a contas os resultados eram evidentemente piores. Conhecia os números, mas demorava uma eternidade para fazer uma simples conta.

Logo que deixou a escola, foi trabalhar na lavoura. De boa compleição física, rapidamente se tornou um elemento fundamental no ganha pão familiar. De tudo fazia e a todos ajudava, fosse a que horas fosse, sábado ou domingo, simples feriado ou dia santo. Nas sortes ficou isento do serviço militar, para desgosto do próprio, que adorava fardas. Era vê-lo embasbacado quando a banda passava pelas ruas da aldeia em dia de procissão. Com o decorrer do tempo a fala acabou quase por normalizar, denotando apenas embaraço no raciocínio. Confiava, por isso, em demasia nos outros mas sabia reconhecer quando era alvo de alguma chacota e demonstrava facilmente o seu desagrado.

Porém, José era já um homem feito quando aconteceu algo que jamais alguém conseguira prever. Ora, certo dia, o rapaz abordou o seu amigo Inácio ”o canhoto” e confessou-lhe na sua voz meio fanhosa:

-       Inácio, ontem vi-a...

-       Viste quem? – perguntou o outro intrigado.

-       A que vive ali... - e com um gesto apontou a casa.

-       Quem?

-       A menina...

-       A Genoveva? Mas o que é que aconteceu? – retorquiu preocupado.

-       Vi-a...

-       Vista-a e depois?

-       É bonita!

-       Pois é. Mas o que é que se passa?... – de súbito Inácio entendeu o amigo. Não obstante a sua natural deficiência José era acima de tudo um homem. E claro embeiçara-se pela extravagante rapariga.

O que ele não sabia era que Genoveva era uma moça demasiado conhecedora da vida. Contava-se até, que em tempos fugira para Lisboa atrás de um amor. Por lá andou três meses e quando regressou, não vinha a mesma. Mas a rapariga, bonita como era, continuava a destroçar os corações dos rapazes das aldeias ao redor. Mal sonhava ela que o seu vizinho, fora também picado pela paixão. Serenamente José foi-se aproximando da rapariga. Esta ao contrário do que seria de prever foi dando troco aos sinais de Lucas. E por isso, foi com grande espanto que um dia o rapaz chegou perto do pai e da mãe e comunicou que iria casar. Incrédulos os pais perguntaram com quem. Ao nome de Genoveva, o pai não se conteve:

-       Grande cabra! Andou por aí com uns e com outros e agora quer enganar o pobre do meu filho.

Mas José não ouvia o pai e andava feliz. Trabalhava agora mais do que nunca para fazer face às futuras despesas conforme opinião da noiva, que mantinha, todavia, uma vida mais calma, sem deixar escapar uma aventura sempre que surgia a oportunidade. O que importava é que o futuro marido não desconfiasse.

O Inverno estava quase terminado quando o casal deu o nó. Os pais do noivo foram à igreja, mas não à boda, para grande tristeza do jovem marido. Alguns amigos avisaram o rapaz para ter cuidado com a fogosa mulher, mas aquele respondia sempre com as mesmas e invariáveis palavras.

-       Ela gosta de mim!

Passou algum tempo. José notou que Genoveva estava mais gorda, mas nunca perguntou a razão. O mês de Maio estava no fim e as cerejas principiavam a inundar as casas, quando durante a noite a mulher acordou o marido que dormia a seu lado:

-       Zé, ó Zé... Acorda homem...

-       Hum... Que foi? – perguntou estremunhado.

-       Zé vai buscar a minha mãe, depressa...

-       Mas que foi que aconteceu? – Insistiu aflito o rapaz.

-       Deixa-te de perguntas e faz o que te peço. Vá anda, depressa – ordenou a mulher.

E lá foi o homem buscar a sogra. Esta quando chegou e se apercebeu do estado da filha logo gritou ao genro:

-       Homem, vai a casa da ti’Arminda e diz-lhe para vir depressa.

Novamente correu o José em busca da tal senhora. Para a sua pobre cabeça esta movimentação nocturna não tinha explicação. Até que se fez dia José não voltou a casa. Só regressou quando viu a sogra sair acompanhada pela comadre. Quando, finalmente entrou no lar foi ao quarto e para seu espanto na cama encontrou mais alguém. Ao lado de Genoveva dormia uma criança ainda rubra.

-       Mas... mas o que é isto? – gaguejando e apontado para o inocente.

-       Isto é o nosso filho... – respondeu a mulher.

-       Filho?... Eu tenho um filho... – e de súbito como se acordasse, renovou - Eu tenho um filho.

Saiu de casa em passo apressado em direcção da taberna. Aí chegado, gritou a plenos pulmões.

-       Eu tenho um filho!

Alguns homens abordaram logo o José e duma forma célere cumprimentaram-no. Outros, porém, ficaram a olhar entre si. Finalmente o Inácio que também estava presente, levantou-se e passando um braço à volta dos ombros do amigo disse-lhe:

-       Ó Zé, anda cá comigo, que eu tenho de te explicar umas coisas.

-       Que coisas? – receou o outro.

-       Sabes que as mulheres e as vacas são parecidas?

-       Em quê?

-       Demoram nove meses para parir uma cria.

-       Então e depois?

-       Depois é que, se casaste em princípios de Março não podes ser pai em finais de Maio. Esse filho não é teu!

-       Não é meu?

-       Não?

-       Então de quem é?

-       Não sei. Pergunta à tua mulher...

O José tinha dificuldades em pensar como devia ser e só ao fim de alguns dias, naturalmente acicatado pelo amigo Inácio, decidiu pôr em pratos limpos a dúvida da paternidade do filho. Perante a mulher, que na altura amamentava o novo rebento, questionou:

-       Andam por aí a dizer que o filho não é meu? Dizem que só passaram três meses desde que casámos.

A mulher assustou-se com a pergunta, mas rapidamente se recompôs e respondeu assim, contando pelos dedos:

-       Ora vamos lá contar. Casámos em Março, não é verdade? – Lucas respondeu com um aceno – Ora Março, macagarço e o mês de Março são três, Abril, magail e o mês de Abril são seis, Maio, macagaio e o mês de Maio são nove.

Acrescenta então José Lucas feliz e descansado, à laia de conclusão:

-       Então, sempre o filho é nosso...

Contos Breves - A Curiosa conclusão do Doutor Sampaio - VII

O mestre Albano Preto era o melhor alfaiate da região. Não havia fidalgo ao redor de dez léguas que não tivesse um fato, uma jaqueta ou umas singelas cardosas feitas pelas mãos habilidosas do mestre. Este era um homem de grande porte. Exibia sem esforço e naturalmente um rasgado sorriso, quase tão grande como o seu desajeitado corpanzil. Amigo do seu amigo estava sempre disposto a ajudar quem dele necessitasse. Dos pequenos retalhos que sobravam após as provas fazia belos fatos que oferecia a alguém mais pobre. Com ele trabalhavam dois ajudantes. O mais velho, o Abílio, tinha mais de vinte anos e já trabalhava na oficina havia perto de seis. Safara-se ao serviço militar devido aos favores de um primo que era sargento no exército. Na oficina conhecia todos os tecidos e as suas propriedades, mas faltava-lhe ainda, a imensa experiência do patrão. O outro aprendiz era ainda um moço e fora ali entregue pela comadre Maria Engrácia para que o gaiato aprendesse uma profissão. Chamava-se Malaquias e tinha somente catorze anos. Passava o dia a limpar a oficina das linhas e restos de tecido. Muito curioso, por tudo perguntava constantemente como se fazia, o que alegrava sobremaneira o patrão.

Bem perto da alfaiataria do mestre Albano vivia e trabalhava o seu melhor amigo: o Isidro. Este era sapateiro e ao contrário do amigo laborava sozinho numa divisão que suprimira à sua própria casa. A janela quando aberta denunciava uma montra de calçado pendurado pela sola com diversas formas e tamanhos.

Quando os dois amigos se juntavam à noite, na taberna do Carlos “o Francês”, para uma jogatana de damas, num já gasto tabuleiro onde algumas das velhas pedras de baquelite haviam sido substituídas por pequenos seixos de cor negra ou branca, era certo e sabido que ambos acabavam as partidas a discutir. E o curioso duelo na taberna já originara pequenos grupos de adeptos de Albano e de Isidro.

Todavia quando a noite caía e ambos regressavam a casa, a amizade vinha novamente ao de cima e aquele aperto de mão de despedida tinha sabor a reconciliação.

Certa manhã, Albano acordou cedo, muito cedo mesmo. Sentia-se indisposto e no ventre roía uma pequena dor que não sendo violenta incomodava-o solenemente. Levantou-se devagar tentando não acordar a mulher que dormia profundamente. Caminhou alguns minutos dentro de casa, bebeu um pouco de água e acabou por sair para as traseiras, onde uma pequena horta demonstrava cuidado e saber. Passeou por entre o cebolal e o couval respirando o ar puro e fresco da manhã mas nem mesmo assim a dor abrandou. Fez-se horas para abrir a oficina e Albano pontualmente franqueou as portas e pôs-se a trabalhar. Contudo a dor mantinha-se, agudizando-se talvez um pouco. À hora do almoço chegou a casa transparecendo na face lívida a dor que o acompanhava desde madrugada, de tal forma que a mulher observou:

-       O que é que se passa? Estás branco como a cal da parede.

-       Não me sinto muito bem. Já me levantei assim, mas sempre calculei que as coisas melhorassem com o dia. Mas nada, continuo na mesma.

-       E se chamasse cá o doutor Sampaio?...

-       Também já pensei nisso. Mas espero pela noite.

E assim foi. Quando ao fim da tarde Albano regressou finalmente a casa, vinha bem pior. As dores eram quase insuportáveis e só com um esforço titânico conseguiu manter-se em pé na alfaiataria. Pediu então à mulher que trouxesse o médico e deitando-se repousou.

O candeeiro a petróleo estava já aceso quando o doutor Sampaio bateu à porta. Otília correu a abrir.

-       Ó senhor doutor, muito boa noite.

-       Ora viva rapariga. Então onde está o nosso homem? - perguntou naquela voz sonora e bem timbrada que o caracterizava.

-       No quarto senhor doutor – respondeu a mulher apontando para uma porta semicerrada.

O médico era um homem já entrado na idade. Nascera longe daquela terra mas após anos em Coimbra onde se licenciara, fora deslocado para aquela pequena povoação. Gostou do que viu, das pessoas, do ar puro, da dona Fátima, hoje sua mulher, e por ali ficou. Não estava rico longe disso, mas nada lhe faltava. Entrou no quarto e falando em tom baixo foi questionando o alfaiate. Ao fim de um bom bocado, saiu carregando um ar preocupado.

-       Então doutor é muito grave? – Questionou logo a mulher, enquanto afagava a cabeça do rebento mais novo.

-       Nem sei o que lhe diga! Vou para casa consultar os livros e depois mando-lhe cá os remédios.

-       Ó doutor muito obrigada. E quanto lhe devo?

-       Logo me paga. No fim fazemos contas – acrescentou o médico.

Durante uns dias as circunstâncias mantiveram-se sem alteração e o médico, que visitava Albano diariamente exprimia já um ar de profunda preocupação. Nem dietas rigorosas, nem novas drogas que o doutor Sampaio buscara da cidade pareciam fazer efeito. E o estado de saúde do alfaiate definhava a olhos vistos. O clínico até já consultara outros colegas de forma a diagnosticar a estranha doença.

Certa noite o médico foi chamado de urgência, novamente, a casa do Albano. Este por qualquer motivo anormal voltara piorara substancialmente. Desta vez o doutor Sampaio correu quanto as pernas e a idade deixavam encontrando o seu doente num estado claramente mais grave do que da última vez que o vira. Mal respirava e o coração batia de forma arrítmica. Auscultou-o com todo o cuidado e após uns longos momentos saiu do quarto chamando de mansinho a mulher do enfermo:

-       Otília, ó Otília...

-       Cá vou senhor doutor... Então que há? – perguntou ansiosa.

-       Rapariga, eu tenho de te confessar uma coisa. Ele não está nada bem e não consigo descobrir o que ele tem. Prepara-te para o pior... Custa-me dize-lo, mas é verdade. E se eventualmente ele pedir algo para comer, dá-lhe o que ele quiser.

Otília caiu nos braços do doutor num pranto silencioso. Sabia que não devia chorar em frente do marido e por isso após a partida do médico, enxugou a face molhada, respirou fundo e entrou no quarto.

-       Então homem que queres para comer? Como estás melhor, acabou-se a dieta – mentiu a esposa.

O homem mexeu-se um pouco na cama e solicitou a comida, com a voz trémula e quase apagada:

-       Não quero nada…

-       Mas tens de comer homem de Deus… - insistia a mulher – diz o que queres que eu faço.

Perante tamanha insistência o enfermo lá foi respondendo:

 -     Traz-me um bocadinho de bacalhau cozido com couves da nossa horta… é o que me basta.

Como Otília sabia das preferências do marido foi sem espanto que ela recebeu aquele pedido. Assim preparou com todos os ingredientes um belo repasto.

O homem comeu devagar, saboreando cada pedaço de bacalhau, cada folha de couve, cada quadrícula de batata. Bebeu um simples copo do seu vinho. Quando acabou o jantar estava ofegante. Assim recolheu-se para trás e descansou até que admorceu.

Na manhã seguinte Albano acordou pelo alvorecer e logo se apercebeu que a agrura que o acompanhara, havia algumas semanas, tinha diminuído. Assim como um travo amargo que sempre lhe aflorara à boca, também ele assemelhava-se a um leve torpor. Tentou içar o corpo mole e descansado da cama, conseguindo-o com algum esforço. Andava trôpego, mas ainda assim encaminhou-se para o quintal. O dia começava a despontar ao longe. Regressou à velha cozinha onde ainda fumegava um pequeno brasido e espreitou uma vez mais pela janela a aurora. Sentiu-se fatigado, mas bem disposto. Poisou o braço direito na mesa de castanho e a ele encostou a cabeça. Dormitou um pouco, pois quando acordou já um raio de sol invadia a cozinha dando a esta uma luminosidade incomum. De súbito ouviu a mulher chamá-lo de forma desesperada:

-       Albano, Albano, onde estás?

-       Aqui na cozinha – respondeu o marido numa voz serena.

A mulher entrou de supetão, ainda trajando uma coçada camisa de dormir e logo perguntou:

-       Que fazes aqui homem? O que é que te aconteceu? ‘Inda agora saíste da cama…

Só que Albano, levantando-se calmamente respondeu:

-       Não sei como, mas já não me dói nada. E tenho cá uma fome...

A mulher abria a boca de espanto. Ainda doze horas não eram passadas sobre a notícia do estado do seu marido, e que originara uma noite quase de insónia, só adormecendo pela madrugada e agora ali estava ele sentado como se nada tivesse acontecido. Um milagre... As preces a Nossa Senhora dos Remédios haviam sido ouvidas. Entretanto comeu com costumado apetite, antes da enfermidade, a sua refeição matinal. Vestiu-se, não sem antes rapar a barba de dias. E sentenciou:

-       Vou trabalhar!

-       ‘Tás tonto homem. Sabes há quanto tempo que estás enfermo? – e respondeu pelo marido – vai para três semanas. E queres ir já para a rua só porque acordas melhor. Nem penses nisso!

-       Sim, sim... – assentou o marido, mas foi saindo.

A caminho da alfaiataria, Albano passou pelo doutor Sampaio. Pretendia agradecer-lhe a maneira sempre diligente como tratara da sua doença. Este encontrava-se em consulta, mas quando saiu do gabinete para solicitar uma ficha à empregada Dolores, quase caiu de costas ao ver o mestre alfaiate.

-       Mas... mas... que faz aqui? – Gaguejou. E continuando – Ainda ontem estava quase a morrer... – e arrependeu-se da sentença franca.

-       A morrer? Eu? – Perguntou o mestre – Estou óptimo. Vim aqui de propósito agradecer os seus remédios...

E estendendo a mão, agarrou a do médico e sacudiu-a num cumprimento sincero. O médico estava atónito, sem reacção. Nos perto de quarenta anos de carreira ao serviço da Medicina nunca assistira a um caso assim. O alfaiate entrou finalmente na sua loja, bem mais tarde do que lhe era habitual e foi efusivamente abraçado pelos dois aprendizes.

A meio da manhã o doutor Sampaio procurou a casa de Albano e perguntou à mulher:

-       Diz-me lá, rapariga, o que é que fizeste ao teu marido? Ainda ontem à noite não dava nada por ele e hoje de manhã já foi para a loja?

-       Eu só fiz aquilo que o senhor me mandou...

-       ... E que foi? – O clínico esperava por algo estranho, que ele sabia não ter receitado.

-       Dar-lhe de comer aquilo que ele quisesse. E assim fiz. Ele pediu-me bacalhau cozido com couves. Eu ainda lhe juntei uma batata que ele também comeu.

-       Só isso?

-       Só! Bem... Não. – Confessou a mulher – Também bebeu meio copo do nosso vinho...

-       Estranho, muito estranho! Antes assim. Fico feliz por ele estar melhor. Obrigado pela informação e até amanhã – e saiu tão depressa quanto chegara.

-       Até amanhã senhor doutor.

E o esculápio lá regressou à sua azáfama questionando-se sobre os últimos acontecimentos. Por seu lado Albano manteve o seu trabalho de alfaiate devidamente acompanhado pelos seus aprendizes. As partidas de damas mantiveram o mesmo fervor de outras semanas com o seu rival mas amigo e compadre Isidro, que saudou com a imensa alegria o regresso do seu costumado e renhido adversário.

Tempos passados, numa noite muito fria, o doutor foi chamado a casa do sapateiro. Este contorcia-se com dores, rebolava na cama, gemia, uma tristeza. Quando viu o médico Sampaio logo clamou:

-       Ai senhor doutor, livre-me destas dores, por amor de Deus. Pela sua rica saúde livre-me deste martírio.

Aquele aproximou-se do doente e com as mãos sábias apalpou o ventre do sapateiro, depois auscultou-o, fez um ror de perguntas. Este esforçava-se por responder o melhor que sabia e podia enquanto continha os gemidos de dor. Após uns minutos de silêncio forçado Isidro voltou à mesma ladainha.

-       Bem, não sei o que se passa com o seu marido – acabou por confessar o doutor Sampaio para a mulher do Isidro – mas tendo em conta um caso semelhante, que foi a do mestre da tesoura e dos alinhavos, vosso compadre, penso que o melhor é fazer como fez a mulher do Alfredo: coze umas batatas com bacalhau e couves à mistura e um copinho de vinho ao jantar e amanhã estará como novo.

A mulher olhava o médico com surpresa e alguma angústia. E assim perguntou:

-       E o senhor doutor acredita que isso curará o meu homem?

-       Claro que acredito! – respondeu esfuziante

E assim a esposa lá preparou a refeição e obrigou o marido a comer. Foi uma luta quase titânica para que o sapateiro ingerisse parte do repasto.

No dia seguinte pela manhã, enquanto abria a loja Albano ouviu o sino da capela a tocar a dobrar e perguntou para si próprio:

-       Quem será que morreu? Pelo toque é um homem.

De súbito surgiu o seu filho numa correria desenfreada. Quando chegou ofegante, mal conseguiu falar e só ao fim de alguns instantes conseguiu dizer:

-       Pai, pai... Sabes quem morreu?

-       Eu não, mas tu sabes!

-       Sei, foi o meu padrinho!

-       O teu padrinho? O Isidro? Estás a brincar com coisas sérias e isso é muito feio – avisou o pai.

-       Não estou a brincar. É mesmo verdade...

O alfaiate olhou o filho de frente e notou-lhe uma pequena lágrima no canto do olho. Logo percebeu que o seu benjamim infelizmente não lhe mentira. Largou tudo e correu a casa do compadre Isidro. A porta estava aberta e algumas mulheres carpiam já algumas lágrimas. Albano irrompeu pela casa e procurou o quarto do seu falecido amigo. Encontrou-o frio, mas já vestido com um fato que ele próprio fizera para o baptizado do seu rapaz.

No consultório o doutor Sampaio, que confirmara o óbito do sapateiro, actualizava as pequenas fichas dos doentes. Uma constipação aqui, um torcicolo ali, uma febre acolá. No íntimo daquele clínico ferviam ainda umas quantas perguntas para as quais ele não conhecia qualquer resposta. Contudo nos apontamentos sobre doenças escreveu uma curiosa conclusão:

 

Para doença bizarra, plena de aflição

Se alfaiate: bacalhau, couve e batata.

Mas seja o enfermo  mestre remendão,

Não é de dar o pitéu que o mata.

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