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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - O Filho do patrão - XVI

Bateram na velha porta de madeira duas vezes.

-          Entre! – Ordenaram de dentro.

-          Posso pai? – Solicitou o jovem, humildemente.

Os olhos do homem ergueram-se dos papéis e dirigiram-se no sentido do filho. Olhava-o agora por cima dos óculos graduados que o ajudavam a conferir as contas.

-          Tu? Por aqui? – Perguntou - Entra vá! – Concordou o pai sem esperar que o varão respondesse às duas perguntas.

O jovem carregava um tabuleiro, onde um bule fumegante acompanhava a respectiva chávena e dois pequenos bolos de leite. Era a costumada merenda. Chá sem açúcar e bolo.

-          Não te conhecia esse teu jeito para criado... – ironizou o pai.

-          Pois... – devolveu atrapalhado o filho - ... a Custódia estava para entrar e eu ajudei-a apenas a entregar a sua merenda.

-          Poisa aí em cima dessa mesa o tabuleiro e podes sair.

O rapaz largou a bandeja mas não saíu. O pai mirou-o uma vez mais e percebendo a imobilidade do filho Jorge, recostou-se no velho cadeirão, retirou os óculos pousou-os em cima da secretária repleta de papéis e de grandes livros de folhas amarelas e finalmente acedeu.

-          Bom, já entendi que queres falar comigo. Conta lá o que se passa.

O jovem sentiu o olhar pesado e austero do pai, cravado na sua face e reteve um leve estremecimento. Havia que dizer a verdade mesmo que isso custasse alguns amargos dissabores.

-          Pai... – respirou fundo para ganhar coragem e continuou – tenho de voltar para Coimbra.

-          Para Coimbra? Fazer o quê?

-          Tenho de acabar uma cadeira... – o suor escorria-lhe pelo vale das costas num sentimento de culpa.

-          Mas tu não acabaste o curso?

-          Assim pensei meu pai... Mas houve um professor que me disse uma nota mas depois reprovou-me... – desculpou-se sem convicção.

A verdade do curso inacabado estava em parte comunicada, faltava explicar as razões e a quantidade de cadeiras por terminar. E essas eram sem dúvida muito mais complicadas de esclarecer. Muitas tertúlias, noites mal dormidas e ausências às aulas seriam razões pouco aceitáveis para um pai duro e rigoroso.

-          Não percebi? – repisou o antecessor – Então tu não acabaste o curso?

A voz do pai era agora severa, seca, raiando a violência sonora. O estudante gaguejou mas respondeu:

-          Calculava que sim. Mas ainda não foi desta...

A face do pai enrubesceu e num acesso de mau génio, comum na pessoa, berrou a plenos pulmões:

-          Acabou-se, não pago nem mais um tostão. A partir de agora estás por tua conta. Vai trabalhar que eu também faço o mesmo. Sete anos em Coimbra e ainda não acabou... Sai daqui, malandro, sai!

O rapaz abandonou humilhado o escritório, vergado pelos gritos do pai. Certamente toda a casa havia escutado a reprimenda. O velho por sua vez, deu um murro violento na secretária enquanto exclamava para si:

-          Burro, parvo... Eu aqui a trabalhar e ele a mancar comigo. Mas já te mostro como se verga uma vara deste calibre...

Dirigiu-se à porta do enorme escritório e clamou com o seu potente vozeirão:

-          Custódia! Custódia!

Ao longe alguém respondeu:

-          Cá vou senhor Madeira, cá vou!

A empregada surgiu afogueada, após subir as escadas carregando em cima das pernas torneadas de varizes, as quase seis arrobas do seu corpo. Tentava apressadamente limpar as mãos num velho pano.

-          Faça favor de dizer...

-          Vai á fabrica e diz ao Correia para cá chegar. E depressa!

-          Sim senhor, vou já – acedeu a criada.

Meia hora depois o encarregado batia à porta do escritório. De dentro ouviu a autorização para entrar.

-          Boa tarde patrão! – cumprimentou -  Então que há?

O patrão foi directo ao assunto.

-          Recebi um pedido de um amigo de longa data. Este tem um filho mandrião e pouco dado aos estudos. Então perguntou-me se lhe dava emprego na nossa fábrica. Eu respondi-lhe logo que sim e portanto amanhã temos lá uma cara nova.

-          Com certeza patrão. E o que é que mando fazer?

-          Por onde começam os aprendizes?

O encarregado coçou a testa com ar preocupado mas respondeu:

-          Pela vassoura. Varrem a fábrica várias vezes ao dia.

-          Então é por aí que ele começa e nada de ser meigo. Aperta com ele como apertas com os outros. E quanto à féria, ele que venha aqui ao meu gabinete receber no final da semana,.

-          Sim senhor Madeira, assim farei – respondeu por fim o Correia.

-          Agora podes ir – ordenou secamente o velho.

Foi ao jantar que o viúvo decidiu surpreender o filho Jorge. Sentado ao lado da irmã mais nova, o jovem estava longe de imaginar o que o pai lhe reservara. Tentava em vão esboçar singelos sorrisos às palavras engraçadas da mana. Contudo notou que o antecessor jamais retirara os olhos de cima dele, durante a refeição. Por fim, o patriarca, tossiu e puxou do vozeirão para comunicar:

-          Jorge tenho algo para te dizer.

-          Sim meu pai! Faça o favor... – disse humildemente.

-          A partir de amanhã apresentas-te na fábrica, sem falta às oito horas. Durante este Verão vais ser mais um operário. Mas fica desde já aqui entendido uma coisa. Não dizes a ninguém que és meu filho. Livra-te...

Jorge abriu a boca numa expressão de espanto e medo. Após os primeiros momentos de choque conseguiu apenas balbuciar:

-          Mas... e o meu curso?

Ao contrário do que seria de supor o pai respondeu calmamente:

-          Estiveste um ror de anos em Coimbra e não conseguiste aproveitamento. A partir de agora estás por tua conta. Se faltares, desconto-te no salário como a qualquer outro. Não admito calões nesta casa.

Madalena olhava o irmão com os olhos rasos de lágrimas. Encheu-se de coragem e questionou o pai:

-          Mas paizinho o mano nunca trabalhou!

-          Isso sei eu... – e levantando-se de supetão da mesa, saiu da sala de jantar.

Nessa noite o Jorge deitou-se mais cedo do que era costume abandonando os amigos que o aguardavam para mais uma noite de farra e olhando o céu estrelado através da janela, aberta de par em par, deixou cair uma lágrima na almofada branca.

A manhã seguinte surgiu solarenga mas fresca. Levantou-se muito cedo. Dormira muito pouco. A noite fora de vigília involuntária, onde se recordou dos tempos de faculdade, da falecida mãe… O orgulho ferido deixara marcas profundas. Vestiu-se e foi então à cozinha onde Gertrudes, a cozinheira, lhe preparou o pequeno almoço. Comeu-o ali mesmo, não dando ouvidos aos diversos apelos da mulher:

-          Oh menino não coma aqui que pode parecer mal ao seu paizinho.

O jovem devorava em silêncio a refeição absorto nos seus pensamentos, porém a empregada da cozinha continuava:

-          Tenha paciência com o seu pai. A morte da sua mãe de quem ele tanto gostava ainda lhe dá volta ao miolo. Mas um destes dias, vai ver, tudo voltará ao que era dantes.

O moço revivia tal como durante a noite alguns momentos que passara com a mãe. Lembrava-se dela deitada na cama solicitando os seus beijos doces. E aquelas palavras ternas sempre ditas como de um sopro se tratasse. Olhou o relógio e dirigiu-se para a fábrica. Em toda a sua vida apenas entrara na empresa uma única vez.

Chegou ao portão onde vários homens de sacos a tiracolo falavam e riam sonoramente. Até que um reparou no moço.

-          Olha uma peça nova! Já tinha ouvido falar!...

Jorge tremeu por breves instantes mas aceitou as palavras com um sorriso. Os outros operários aproximaram-se e cumprimentaram-no:

-          Olá rapaz, como te chamas? – perguntou um.

-          Jorge.

-          Eu sou o Tonho, este aqui é o Jacinto e aquele o Fuças – e ía apontando cada um com o dedo sujo.

O portão abriu-se e os homens entraram. Jorge foi o último. Deu de caras com um homem alto, de compleição herculeana mas com um sorriso acolhedor.

-          És tu o novo empregado? – e mirou-o de cima a baixo. O corpo quase franzino do jovem dava poucas esperanças que viesse a tornar um bom operário e assim torceu o nariz duma forma simulada.

-          Sim... sim!

-          Sabes varrer o chão?

-          Talvez.

-          Então pega naquela ali e vem comigo!

Começou por varrer a oficina. Depois ajudou a descarregar algumas caixas e a carregar outras, foi dando uma mão aqui, outra ali. Tudo sem um queixume. Ao almoço foi a casa e sentou-se uma vez mais na cozinha. A Gertrudes retornou com a mesma lenga-lenga da manhã:

-          O menino não deve comer aqui.

-          Mas é aqui que comem os empregados desta casa!

-          E se o senhor seu pai aparece aqui à sua procura?

-          Não te preocupes que eu resolvo o problema.

Regressou ao trabalho da parte da tarde. O encarregado apertava com o jovem mas este continuava serenamente a responder como podia às solicitações. Jamais se negava a fazer algo. E tudo num silêncio quase religioso.

À tarde, quando tocou para sair, sentiu um enorme alívio. Doíam-lhe as costas e as mãos  do esforço pouco habitual, mas acima de tudo tinha a alma atormentada pela revolta.

À noite ao jantar, o pai não fez qualquer referência ao primeiro dia de trabalho do filho e este também não aflorou o assunto.

Durante as férias de Verão, o filho do Madeira trabalhou na fábrica como qualquer outro operário. No fim da primeira semana doía-lhe o corpo todo, mas conquanto passava o tempo aquele habituava-se ao esforço e as dores acabaram por desaparecer.

Entretanto Jorge escrevera para alguns colegas de faculdade a quem contou as suas desventuras e estes inscreveram-no para novos exames. Sem que o pai soubesse o rapaz foi estudando e na véspera da prova chegou-se ao Correia e duma forma humilde comunicou-lhe:

-          Amanhã não venho!

-          Então porquê – quis saber o encarregado.

-          Tenho uns assuntos para tratar e tem de ser amanhã.

-          Mas eu desconto-te na féria.

-          Não faz mal!

E assim, Jorge partiu para Coimbra durante a noite onde pernoitou num quarto de um amigo. No dia seguinte apresentou-se a exame que decorreu duma forma soberba. Durante os anos que permanecera na cidade jamais fizera um exame como aquele.

Após a prova regressou a casa a tempo de jantar com o pai. No dia seguinte lá estava ele à entrada da fábrica pontualmente às oito horas.

As férias de Verão aproximavam-se do fim e o velho Madeira nada dizia ao filho sobre o futuro próximo. Este invariavelmente entrava na fábrica com todos os outros e trabalhava ao mesmo ritmo dos outros trabalhadores.

Uma noite, ao jantar, entrou a Custódia com um ar atrapalhado e dirigiu-se ao rapaz.

-          Mandaram-me entregar isto com urgência.

O jovem recebeu a missiva e abriu-a ali mesmo sem pedir a autorização devida. Leu-a em silêncio e um quase imperceptível sorriso aflorou aos lábios. Depois guardou a carta e agradeceu:

-          Obrigado Custódia, está entregue.

-          Boas novas? – perguntou a governanta curiosa.

-          Sim, são boas notícias! – e nada mais disse.

O pai ergueu os olhos para o filho e calculando adivinhar o que a carta dissera, questionou o descendente à laia de confirmação:

-          Então já fizeste a cadeira que faltava?

O filho estremeceu. Após a conversa no escritório jamais fizera qualquer observação em relação ao curso. Admirava-se pois que agora o pai manifestasse algum interesse. Por isso mentiu:

-          Não. Apenas me informam que posso ir este ano fazer a cadeira que me falta sem ir às aulas – respondeu secamente.

Desta vez foi o pai que tremeu. A informação que recebera  era de que o filho fizera o último exame com distinção, estava então errada. Orgulhoso o velho patriarca nunca mais perguntou  pela faculdade ao filho e este utilizava o mesmo estratagema. Era uma guerra inútil de personalidades.

Ao contrário daquilo que o patrão Madeira supunha e acima de tudo queria, o filho afeiçoara-se à fábrica de tal forma, que já operava com qualquer ferramenta e com o jeito inato que tinha para a mecânica, sempre que alguma máquina parava por avaria lá estava o rapaz a tentar consertar com invulgar sucesso. De tal forma que certo dia o Correia em conversa com o patrão frisou:

-          O Jorge, filho do seu amigo, é um operário de mão cheia. Interessa-se por tudo e nunca diz que não. Já o mudei de funções e em qualquer lugar faz óptimo trabalho.

-          Ainda bem para ele... – respondeu o patrão sem emoção.

Caíam as primeiras chuvas de Outubro quando o velho patrão entrou na cozinha. Só lá aparecia na véspera de Natal para dar as boas festas aos empregados, mas naquele dia quebrou a tradição. À mesa estava o Jorge que comia uma sopa. Trajava uma roupa velha e suja de operário fabril. Jamais vira o filho naquela figura e sentiu a voz da falecida mulher a falar:

-          És capaz de me explicar porque comes aqui?

-          Porque é aqui que comem os empregados desta casa.

-          Mas tu és meu filho – e o tom de voz começou a subir.

-          Só à noite... só à noite – e continuou a sorver a sopa com grande apetite.

O orgulho que ambos sentiam parecia agora querer morrer. Curiosamente era o pai que mais lutava para que isso acontecesse.

-          Mas posso falar contigo?

-          Claro, meu pai. Desde que não me atrase.

O pai respirou e perguntou então:

-          Não queres voltar a Coimbra?

O filho parou de comer, olhou o pai de frente e sem qualquer temor respondeu calmamente:

-          Foi o pai que me disse que eu estava agora por minha conta. Para que saiba eu já acabei o curso e consegui um estágio num escritório. Vou para Coimbra quando me chamarem.

-          Mas porque é que não me disseste nada?

-          Não valia a pena. Nunca me ouviria...

Interiormente o velho Manuel, esteio firma da família sabia que o filho falava verdade. Mas este também provara que tinha o seu sangue a correr nas veias, tal fora a tenacidade com que enfrentara os desafios apresentados na empresa.

-          Sei que tens feito um bom trabalho na fábrica – comentou o pai com doçura.

-          Faço o que posso. É para isso que me paga – respondeu secamente.

O industrial virou as costas ao filho duma forma humilde e abandonou a cozinha. Para Jorge este era um pai que ele nunca conhecera. Mais humano, mais triste ou talvez mesmo resignado.

O novo jurista regressou por fim a Coimbra para integrar um escritório de homens de leis. Mas antes de partir visitou a fábrica onde abraçou os antigos colegas.

-          Vou mas volto! No ano que vem pelas férias cá estarei.

O rapaz caíra nas boas graças dos operários e estes nem imaginavam que o jovem era apenas e só o filho do patrão.

Quando o Verão regressou às encostas e às noites tépidas e com ele as férias, Jorge integrou, tal como prometera, a fábrica para grande admiração dos outros operários e respeito do encarregado. O jovem tinha queda para a coisa e mostrava-se cada vez mais empenhado na resolução de problemas da empresa. Jorge alternava agora com a sua profissão em Coimbra com a de operário da fábrica.

Entretanto Manuel Madeira adoecera com gravidade. Perdera o interesse pelos negócios, deixando nas mãos do encarregado toda a responsabilidade da gestão da empresa.

Uma noite o estado de saúde do patriarca piorou substancialmente de forma que foi levado para Coimbra onde o filho o internou num hospital onde trabalhavam já alguns dos seus antigos companheiros, não de curso mas de tertúlias e boémias. Regressou a casa algumas semanas mais tarde. Já no aconchego do lar o doente chamou os filhos à sua presença e comunicou:

-          Sei que com a morte da vossa mãe, nunca mais fui o mesmo. Fui severo, duro, talvez demais. Mas não o fiz por mal. Fi-lo por amor a vocês, meus filhos.

A mão fraca segurava como podia a de Madalena, mas o olhar estava preso no filho:

-          Jorge, chama-me o Correia.

-          Oh pai, deixe-se disso – respondeu o filho.

-          Maria Lúcia!

-          Sim meu pai – respondeu a filha mais velha

-          Sei que o teu irmão é tão orgulhoso quanto eu... – e tossiu.

-          Acalme-se pai – pedia a filha, enquanto olhava para o irmão em tom de reprovação.

-          Diz ao Correia que a partir de agora o responsável pela fábrica é o Jorge.

A filha mais velha emigrara para Angola com o marido, havia uns anos em busca de fortuna. E parecia que a vida lhe corria a contento. Todavia sem filhos, regressara assim que soubera da gravidade da doença do pai. Respondeu então:

-          Sim pai, farei o que me pede. Mas agora repouse.

Nessa tarde o fiel mestre da fábrica, foi chamado uma vez mais ao escritório do patrão. Bateu à porta e ouviu de dentro uma voz feminina.

-          Entre! – Autorizou Maria Lúcia.

-          Dá-me licença, menina.

-          Entra, entra!

-          Então como está o seu paizinho?

-          Oh, assim assim, obrigado.

-          E o que me deseja?

-          Bem, como calculas, o meu pai não está em condições de assegurar o bom funcionamento da fábrica. Assim, pediu-me que entregasse nas mãos do meu irmão essa responsabilidade.

-          Mas o seu irmão não entende nada do negócio… – observou admirado com a nova nomeação.

-          Talvez. Há quanto tempo não vês o meu irmão?

-          Não sei menina. Para lá de 20 anos... ou mais.

-          Tens a certeza? – e com a pergunta os lábios abriram-se num sorriso matreiro que escapou ao encarregado.

-          Olá se tenho! A sua falecida mãe é que foi lá com ele quando ainda era gaiato, veja lá ao tempo que foi.

De súbito abriu-se uma porta. Era a que dava acesso do escritório ao quarto do velho Madeira. De lá saiu alguém que Correia conhecia e estimava.

-          Maria, o pai está a repousar. Falem um pouco mais baixo – e sem notar deu finalmente de caras com o encarregado.

O mestre da fábrica quase caiu do seu metro e noventa. No pensamento do homem apenas passavam momentos ao lado daquele rapaz que mais não era que o filho do patrão. Finalmente respirou fundo e observou:

-          Mas tu... – mas logo emendou – o menino Jorge?

-          Pois! Mas trata-me como sempre o fizeste. Não sou outra pessoa.

-          Mas o senhor... o menino, é filho... – gaguejou.

O outro nem deixou terminar:

-          Já te pedi para me chamares pelo meu nome, como sempre o fizeste.

O homem nem queria acreditar. Suava por todos os poros e tremia. Nem sabia se de espanto ou de alegria.

-          E agora o pessoal? Tanto mal que disseram do seu paizinho... à sua frente

-          E tinham razão! A partir de agora vou ser eu a tomar conta da fábrica, por ordem do meu pai. Mas ao contrário dele eu vou lá estar, contigo. E os problemas, quando os houver, serão resolvidos por todos.

Um sorriso cresceu na face de Correia, que logo pediu para sair e foi em passo de corrida comunicar aos operários quem era o novo patrão.

O velho Manuel Madeira finou-se duas semanas mais tarde. Partiu descansado com o futuro da fábrica que construíra e em paz com os filhos.

Contos Breves - A Maldição - XV


Ilídio entrou em casa e logo ali descarregou as seis arrobas em cima de um velho cadeirão. Este, rangeu ao peso abrupto do corpanzil mas manteve-se aparentemente incólume sem mais agrura. O homem retirou a boina surrada e suja, deixando antever pequenos tufos de cabelo suado cor de neve e que tentavam ingloriamente esconder uma evidente calva. A mulher lavava ainda a loiça do almoço e esperou que o marido dissesse algo. E não demorou:

-       Comprei a azeitona da Quinta da Trindade - disse com ar triunfante.

Um silêncio incrédulo pairou no ar antes que o homem voltasse à carga:

-       ... Pois foi... Comprei aquele olival...

Parecia uma criança a quem deram um brinquedo novo. Um sorriso sincero rasgava-lhe a face morena. Finalmente a Mércia devolveu num tom pouco apaziguador:

-       Mas tu endoideceste, homem? Deves ter pago uma fortuna! Quero saber onde vais arranjar o dinheiro para pagar ao dono.

O homem parecia que adivinhara a pergunta pois logo retorquiu:

-       Mas tu não sabes quanto é que eu paguei! E mais... Só pago quando vender o azeite.

Céptica das afirmações categóricas do marido, carregou ainda:

-       Mas tu viste o olival? Olha que às vezes a azeitona engana.

-       Esta é certinha, não falha. Basta que o tempo corra a jeito e este ano temos boas filhós pelo Natal.

-       E o pessoal para a apanha? Não sei se arranjas... – inquiriu numa permanente dúvida.

-       Hei-de arranjar. Ou não me chame Ilídio - respondeu de forma convicta.

Da lareira a meio metro do chão da cozinha, saiu uma voz que penetrou na conversa como agoiro.

-       Nem um bago lá apanhas...

O camponês apercebendo-se que era a sogra que falava, logo devolveu com arrogância:

-       Eh lá! Vire para lá essa boca. Vossemecê diz cada uma!

-       Nem um bago ... Aquela terra está amaldiçoada - insistia a velha enquanto, com a ajuda de um pequeno funil enchia as tripas secas de carne, de vermelho temperada.

O genro nem acreditava no que ouvia. Certo era que se contavam histórias acerca da Quinta da Trindade, mas ele fora ao olival e as árvores quase vinham abaixo com tanto carrego. Mesmo que caísse alguma, ainda havia que fazer por umas semanas. Ora agora nem um bago... podia lá ser? Havia azeitona até, até...

Todavia o tom sinistro com que a sogra falara, acabara por assustar o pobre homem. Entre o crente e o céptico logo pretendeu saber a coisa a fundo.

-       Então ti'Cândida, explique-me lá essa história... – enquanto um esgar velhaco lhe assomava aos lábios.

A idosa poisou o trabalho, limpou as mãos a um pano velho e retirou do bolso do avental um terço. Velho como a dona, companheiro dos bons e maus momentos, era o refúgio permanente da crente. Passando as contas pelos dedos a Cândida começou o seu relato:

-       Há muitos anos viveu na Quinta um homem bom. Fidalgo de grandes e boas famílias - havia mesmo quem afirmasse que era ainda aparentado ao Rei – ainda jovem ficou só no mundo. Só mas rico. Muito rico. Como único herdeiro de toda a fortuna da família depressa surgiram candidatas a noivas. Mas D. Bartolomeu recusou-as a todas. Haveria :finalmente por casar com a Germana, rapariga ainda do meu tempo, filha de um ferrador. Mas a tristeza haveria de povoar novamente a vida do fidalgo, pois ao fim de um ano de casado, perde a mulher e o filho na mesma hora.

-       Logo os dois, mãe - comentou a filha com amargura.

-       Pois foi. Mas D. Bartolomeu era um homem temente a Deus e resignou-se à sua sorte. Jurou nunca mais casar e dedicou-se de alma e coração à Quinta. Esta que já era enorme e fértil ainda cresceu mais. Quase todos os homens das redondezas trabalharam na propriedade. Era uma terra abençoada. Lembro-me de uma vez só se ter colhido mais de dez carros de bois de milho num pequeno leirão perto ao lameiro de baixo. O lagar de azeite já foi feito por ele! E começava a trabalhar por altura dos Santos e no Entrudo ainda fazia azeite. O fidalgo era um homem valente e determinado. Infelizmente só mostrou essas qualidades enquanto a seu lado trabalhou o velho Barbosa.

-       A mãe conheceu esse homem? - interrompeu a filha.

-       Muito bem. Para além de capataz era acima de tudo um bom e dedicado amigo. E o fidalgo nunca decidia nada sem o consultar. Mas a idade não perdoa e o mestre Barbosa, também ele partiu, numa viagem sem regresso.

A Mércia escutava a mãe com a atenção devida, sentada no banco corrido de madeira. O marido coçava a pequena calva tentando adivinhar o fim da história. Vivia assim sentimentos entra a descrença de todo um desfecho, talvez inverosímil e o receio de uma verdade absoluta.

A Cândida continuava a desfiar o terço por entre os dedos lavrados dos anos e olhando o casal voltou ao relato:

-       Para substituir o antigo caseiro, D. Bartolomeu contratou um outro homem vindo de longe e que todos vocês conhecem: é o Esménio. Porém logo se percebeu que este capataz mostrava modos bem diferentes de lidar com o pessoal. Pouco simpático, arrogante mas eficiente, depressa criou na quinta um ambiente soturno e triste. E o pior é que a D. Bartolomeu nunca chagava qualquer informação que denunciasse as actividades pouco simpáticas do seu agora braço direito.

Após uma muito breve pausa para retomar fôlego, continuou:

-       Os anos passaram com a rapidez dos velhos e a lentidão dos novos, até que foi a vez do fidalgo deixar o mundo. Na altura foi um funeral, até... até... Veio gente de todo o lado e a capela da quinta foi pequena para albergar tantas pessoas.

Para além de outros defeitos o Esménio era também muito ambicioso e com a ajuda de um homem de leis pouco escrupuloso, forjou um testamento onde ele surgia como único herdeiro, quando se sabia que era outro o desejo do fidalgo e que incluía quase todos os empregados da quinta. E é aqui que tudo começa!

-       Mas foi o Esménio que me vendeu a azeitona. Ele está velho, sim senhor, mas sempre pensei que a Quinta era mesmo dele.

-       Pois é Ilídio. Desde que ele tomou conta da Quinta esta nunca mais foi a mesma. Há quem oiça durante a noite as galgas do lagar a trabalhar e sem ninguém lá estar. Na eira quando o milho está para descamisar é frequente aparecer estragado. O vinho azeda, o trigo grela e até alguns animais morrem sem razão. A Maria Clara foi lá chamada para afugentar os maus espíritos e até o Padre Carlos já abençoou a casa e nem mesmo assim as coisas correram melhor.

-       E o que será, mãe? - Pergunta a filha.

-       Ninguém sabe. Mas acredita-se que é o espírito de D. Bartolomeu que vagueia pela Quinta e enquanto Esménio não cumprir o que o fidalgo deixou realmente escrito, nada se modificará. E é por isso que digo que não apanhas um bago. A Quinta está amaldiçoada.

Ilídio finalmente preocupava-se. Nem quer crer que fora aldrabado. E pensou logo em negar-se ao negócio. A expressão feliz com que entrara em casa fora naturalmente substituída por um sobrolho carregado.

Mas o destino é fértil em acontecimentos bizarros, pois nesse mesmo dia em que conhecera o mistério da Quinta da Trindade o velho capataz morreria aos cornos de um bonito vitelo contudo demasiado bravio para o dono. A notícia da morte do velho fuinha correu as aldeias limítrofes como de fumo se tratasse..

Dias mais tarde, o filho mais velho do defunto descobre no meio dos papéis do pai um velho testamento. Nele podia ler-se todos os desejos e vontades de D. Bartolomeu. Assim coube ao herdeiro de Esménio fazer cumprir as últimas vontades do bom fidalgo.

Ilídio colheu nesse ano a azeitona da Quinta que surgia bonita, sã, muita. E as filhós nesse Natal tiveram mais azeite e mais açúcar.

Contos Breves - Sílvio Agreste - XXXIX

Quinze anos, espigados e imberbes; cabelo curto como restolho, olhos castanhos, vivazes e atentos; boca grande denunciando dentes negros e mal tratados, tez morena. Assim era Sílvio, nascido e criado numa aldeia beirã embutida na serra pedregosa e fria nas invernias que tombavam serra abaixo e demasiado quente no Estio impossível de respirar, espraiando-se a seus pés planícies e charnecas férteis, cruzadas por ribeiros que encharcavam os lameiros sempre que a torrente vinda da encosta assim o exigia.
O rapazola, aos olhos do povo mordaz e cruel, tornara-se num gaiato bizarro. Não tinha amigos, não falava com ninguém, apenas breves e imperceptíveis saudações por quem passava, desaparecendo dias inteiros só surgindo véspera fora.
A mãe ralhava-lhe num discurso que sabia de cor e já nem ouvia. As irmãs, raladas umas, outras nem tanto, dividiam-se entre o incondicional apoio à mãe ou ao mano rebelde:
- Sílvio por onde andaste? – Perguntava Auzenda em tom azedo e ríspido como era seu timbre, sempre que a vítima era o varão, enquanto enxugava as mãos sapudas e molhadas num pano negro.
O costumado silêncio enfurecia-a:
- Estou farta deste traste. Nem escola, nem trabalho, nada… É um valdevinos…
- Oh mãe, não diga isso. Sempre que precisa dele, ele está por aí – desculpava-o a mana mais nova, enquanto afagava a barriga volumosa do fim duma gravidez indesejada e acidental.
A escola para Sílvio fora uma aventura da qual não guardara boas memórias. Nos bancos puídos de madeira de castanho sentara-se pouquíssimas vezes, preferindo o cuidado com um ninho de pintassilgo ou com a toca profunda de um coelho. Após uma breve passagem por uma escola das redondezas, não fosse a professora da terra exigente demais, acabou por desistir e apenas aprendeu a escrever o seu nome com dificuldade.
Os seus verdadeiros amigos eram por isso os animais, especialmente as cabras e os pombos, que ele criava com carinho e ralação. As gaiolas permanentemente abertas permitiam que as aves columbinas durante todo o dia voassem numa liberdade que ele jamais privara. À noite retornavam ao poleiro aguardando que Sílvio lhes trouxesse a costumada dose de farelos com milho e pão duro previamente demolhado. O tratador conhecia-os a todos e a cada um deles dedicara um nome: Farrusco, Farelo; Bico Torto… Quanto às cabras dominava-as como poucos e nem a irreverência natural dos animais lhe fazia frente. Bastava um assobio e os caprinos largavam o pasto e acorriam com ligeireza para perto do jovem pastor. Saía de casa sempre cedo, muitas das vezes nem o Sol despontara e já ordenhava as cabras sem crias ou carregava a manjedoura de feno e favas. Depois largava na cozinha, negra e suja, o tarro repleto e partia em busca do seu mundo. Seguia-o um cão, o qual tratava por Baixinho por ser minúsculo e rafeiro, de cor cinza, aqui e ali salpicado de preto. Mais um amigo incondicional e atento. E fiel…
O pai de Sílvio era carpinteiro de profissão e partia todos os anos assim que a Primavera surgia para terras de Espanha. Por lá andava aos meses, deixando na mão da Maria Auzenda a responsabilidade de tomar conta da casa e educar o descendente. Quando regressava, fugindo às intempéries castelhanas, adorava ver o seu rapaz cada vez mais crescido, quase um homem.
Juntos percorriam caminhos e carreiros ao redor do povoado durante todo o dia. O eucalipto da Ribeira Nova tombara finalmente, as oliveiras vergavam ao peso da azeitona quase madura, o chão da coxa fora vendido a alguém de fora; ou então nada diziam e caminhavam durante tempos infinitos em silêncio, gozando cada um a presença do outro. Uma simbiose quase perfeita que Auzenda não colhia mas invejava.
O Inverno chegara mais cedo. Primeiro viera o frio que penetrava na pouca roupa e arrefecia os corpos magros. Depois o vento que sacudia a aldeia com rajadas sucessivas quase sempre acompanhadas por chuva forte que tombava em revoadas diluvianas. Finalmente arribou a neve branca em flocos, que descia do céu negro como por magia.
Nascia uma dessas manhãs bravias de frio e chuva. Sílvio levantou-se madrugador e despachado. Vestiu a velha e surrada camisa, entrou nas calças de surrobeco rijo e pobre, alcançou a jaqueta e enfiou a boina na cabeça quase rapada.
Na cozinha procurou na arca costumada, um naco de pão duro e da gaveta da mesa retirou o resto de chouriço. Devorou tudo com gosto e prazer, partindo então em busca dos seus companheiros.
Abriu a gaiola dos pombos mas estes mantiveram-se imóveis. A madrugada ainda não clareara e o jovem não os brindara com a habitual refeição matutina. Alvoraçou-se a gaiola assim que o moço surgiu com os comedouros.
Depois foi a vez das cabras que se ajeitavam ao som dos passos do tratador. Manjedoura cheia, pias repletas, num ápice os animais tratavam de limpar a comida.
O dia queria despontar por detrás da serra mas as nuvens escuras encastelavam-se e teimavam em cobrir o sol arrepiado. A noite fora de temporal. Fios de água corriam pelos beirais até ao chão onde juntando-se a outros cresciam em pequenas levadas.
Libertadas da cerca, as cabras ocuparam o caminho sabendo qual a direcção a tomar. O soar metálico dos chocalhos deixava-se ouvir por todo o pópulo. Uma vara de marmeleiro e o costumado companheiro canino seguiram à distância o rebanho irrequieto. Duas corridas e chegou-se mais perto controlando as diabruras de cabras e filhos.
Sílvio afastou-se do povoado como era seu hábito. Palmilhou os carreiros com à-vontade. Sempre que uma cabra fugia do rebanho lá soava um assobio que a colocava junto às outras. Naquela manhã o jovem escolhera o Bosque das Luzes para pastar o gado. Aquele situava-se num vale pequeno, aconchegado pelas serranias. Havia mesmo quem contasse histórias mirabolantes desse local. Mas o rapaz pouco crente, nada temia e nada entendia. Ali chegado logo procurou um poiso onde pudesse sentar e descansar não olvidando a visão sobre o prado onde o gado já pastava em sossego. O Baixinho dormitava a seu lado mas de orelha sempre atenta, não fosse o dono necessitar dos seus préstimos.
O jovem sentou-se numa pedra que colocara junto ao pé de um imponente pinheiro e recostou-se ao tronco. Cerrou os olhos e deixou-se embalar pelos chocalhos das cabras. Era daqueles momentos que Sílvio gostava. Um torpor lento invadiu o corpo e em breve dormia serenamente.
Acordou ao som de um assobio. Admirado e incrédulo no que ouvira, procurou o gado e vendo-o demasiado longe ordenou ao canito:
- Vai buscá-las, anda!
O cão entendeu a ordem e correu encosta abaixo a cumprir o mando. Por seu lado o rapaz manteve-se atento aos sons da floresta. Como nunca mais ouvisse qualquer ruído estranho, pensou que tudo não tivesse passado de um sonho. Porém novo assobio soou. Desta vez o jovem teve a certeza do que ouvira. E vinha do interior do bosque. As cabras aproximavam-se em passo lento aproveitando a erva viçosa. Assim que chegaram perto Sílvio ordenou novamente ao seu companheiro.
- Não as deixes sair daqui. Eu vou ali dentro e já volto.
Como sempre o cão entendeu a ordem e deu um latido, compenetrado na sua função de guarda.
O jovem penetrou então no bosque sem receios. Conforme caminhava a mata adensava-se com as giestas a tomarem conta do espaço entre os pinheiros, sobreiros e alguns eucaliptos. Andou algumas centenas de metros até que ouviu uma vez mais o silvo. Agora muito mais próximo. Continuou a deambular pelo bosque até que lhe pareceu vislumbrar por entre uma folhagem uma pequena clareira. E foi aí que reparou na figura formosa que dançava no meio do pasto verde. Os cabelos cor de fogo, longos e fartos. Um longo vestido branco aqui e ali pintalgado de pequenas flores coloridas, davam-lhe um ar gaiato mas ao mesmo tempo selvagem.
Sílvio escondeu-se por detrás de um enorme penedo que fazia fronteira entre a clareira e o bosque. Saltitando e rodopiando a jovem iniciou uma cantiga:

Quando eu não te conhecia
De ti nada se me dava
Sem tormentos vivia
Sem cuidados acordava

Ora vira ao norte, vira ao norte,
Vira ao sul
Quando vira ao norte
Fica o céu azul

O jovem estava estarrecido. Em silêncio aproximou-se devagar da orla do prado, enfeitiçado pela voz da menina. Sentia-se tocado, como se alguém tivesse entrado na sua alma. Um arrepio atravessou-lhe a espinha e ganhando coragem deu força à curiosidade e apresentou-se à cachopa. Só que ela antecipou-se, quiçá adivinhando a intenção e cumprimentou apenas:
- Olá Sílvio.
Um tanto titubeante foi dizendo, meio a gaguejar, surpreendido pela facilidade da miúda:
- O… olá!
A seguir roído pela curiosidade que nunca tivera, perguntou de rajada:
- Quem és tu? Como sabes o meu nome?
Notando-lhe um sorriso meio trocista na face alva, continuou:
- Eu não te conheço…
A voz feminina surgiu como uma melodia:
- Conheço-te bem e aos teus pombos e às cabras que estão à entrada da floresta.
- Mas quem és tu?
- Eu sou a Cecília…
Rapidamente comentou:
- Não conheço. Quem é a tua mãe?
Na aldeia quando não se conhecia uma pessoa, pergunta-se pelo pai, mãe ou avó. Todos têm alguém que se conhece:
- A minha mãe é a Lua.
_ Hem?
- O meu pai é o Sol e sou neta do vento da tarde e da brisa matinal.
Para o jovem esta conversa criava-lhe muita confusão. Lua, Sol, vento e brisa eram coisas que ele conhecia de sobra, mas não havia ninguém com aqueles nomes na aldeia, pelo menos que ele soubesse:
- Oh, tás a mancar comigo…
E virou-se para entrar na floresta. Preocupava-o o gado. Mas numa corrida Cecília colocou-se à sua frente barrando-lhe o caminho.
- Já vais?
- Já!
- Porquê?
- Porque tás a brincar comigo…
- Sílvio, não estou a brincar. Já te disse como me chamo.
- Sim, mas o sol, Lua, brisa, vento?
- Sim é a minha família.
O rapaz olhou-a de frente como jamais fizera a alguém e viu então no seu olhar o azul do céu. Pela primeira vez Sílvio teve medo. Não sabia o que dizer e as coisas que ouvira toldavam-lhe o pensamento como uma nuvem plúmbea. Finalmente recompôs-se e voltou ao questionário:
- Mas onde vives?
- Vivo na mata, rodeada pelos coelhos, lebres, algumas cobras, sapos, rãs, corujas, melros, cucos…
A conversa agradava-lhe agora. Entrou no jogo.
- Eu também gosto de bichos. No ouriço é que não pego, pica que se farta.
- Pois pica – confirmou a miúda – E o lacrau?
- Vi um debaixo de um molho de feno e por pouco não me mordeu…
E ali ficaram os dois a conversar dos animais que conheciam e que mais gostavam. Sílvio nem deu pelo tempo passar, só reparou que o sol se escondia por detrás da Colina da Louca. Finalmente decidiu:
- Tenho de ir. Faz-se noite daqui a poucochinho. Mas gostei de falar contigo.
- Eu também.
- E amanhã estarás cá?
- Não sei, talvez…
O rapaz ia a entrar na floresta, quando de repente virou-se para a amiga e perguntou-lhe de supetão:
- Quem és tu?
- Eu? Sou uma fada…
E adivinhando a perplexidade, acrescentou:
- Não acreditas?
E perante o silêncio, concluiu:
- Sou a fada das Luzes!
Sílvio partiu por fim. Já fora da floresta regressou com as cabras e o Baixinho a casa enquanto comentava baixinho:
- Fada das Luzes? È tonta a cachopa…
Pela primeira vez o jovem pastor entrou em casa a cantarolar:

Quando eu não te conhecia...

 

 

 

 

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