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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - A Curiosa conclusão do Doutor Sampaio - VII

O mestre Albano Preto era o melhor alfaiate da região. Não havia fidalgo ao redor de dez léguas que não tivesse um fato, uma jaqueta ou umas singelas cardosas feitas pelas mãos habilidosas do mestre. Este era um homem de grande porte. Exibia sem esforço e naturalmente um rasgado sorriso, quase tão grande como o seu desajeitado corpanzil. Amigo do seu amigo estava sempre disposto a ajudar quem dele necessitasse. Dos pequenos retalhos que sobravam após as provas fazia belos fatos que oferecia a alguém mais pobre. Com ele trabalhavam dois ajudantes. O mais velho, o Abílio, tinha mais de vinte anos e já trabalhava na oficina havia perto de seis. Safara-se ao serviço militar devido aos favores de um primo que era sargento no exército. Na oficina conhecia todos os tecidos e as suas propriedades, mas faltava-lhe ainda, a imensa experiência do patrão. O outro aprendiz era ainda um moço e fora ali entregue pela comadre Maria Engrácia para que o gaiato aprendesse uma profissão. Chamava-se Malaquias e tinha somente catorze anos. Passava o dia a limpar a oficina das linhas e restos de tecido. Muito curioso, por tudo perguntava constantemente como se fazia, o que alegrava sobremaneira o patrão.

Bem perto da alfaiataria do mestre Albano vivia e trabalhava o seu melhor amigo: o Isidro. Este era sapateiro e ao contrário do amigo laborava sozinho numa divisão que suprimira à sua própria casa. A janela quando aberta denunciava uma montra de calçado pendurado pela sola com diversas formas e tamanhos.

Quando os dois amigos se juntavam à noite, na taberna do Carlos “o Francês”, para uma jogatana de damas, num já gasto tabuleiro onde algumas das velhas pedras de baquelite haviam sido substituídas por pequenos seixos de cor negra ou branca, era certo e sabido que ambos acabavam as partidas a discutir. E o curioso duelo na taberna já originara pequenos grupos de adeptos de Albano e de Isidro.

Todavia quando a noite caía e ambos regressavam a casa, a amizade vinha novamente ao de cima e aquele aperto de mão de despedida tinha sabor a reconciliação.

Certa manhã, Albano acordou cedo, muito cedo mesmo. Sentia-se indisposto e no ventre roía uma pequena dor que não sendo violenta incomodava-o solenemente. Levantou-se devagar tentando não acordar a mulher que dormia profundamente. Caminhou alguns minutos dentro de casa, bebeu um pouco de água e acabou por sair para as traseiras, onde uma pequena horta demonstrava cuidado e saber. Passeou por entre o cebolal e o couval respirando o ar puro e fresco da manhã mas nem mesmo assim a dor abrandou. Fez-se horas para abrir a oficina e Albano pontualmente franqueou as portas e pôs-se a trabalhar. Contudo a dor mantinha-se, agudizando-se talvez um pouco. À hora do almoço chegou a casa transparecendo na face lívida a dor que o acompanhava desde madrugada, de tal forma que a mulher observou:

-       O que é que se passa? Estás branco como a cal da parede.

-       Não me sinto muito bem. Já me levantei assim, mas sempre calculei que as coisas melhorassem com o dia. Mas nada, continuo na mesma.

-       E se chamasse cá o doutor Sampaio?...

-       Também já pensei nisso. Mas espero pela noite.

E assim foi. Quando ao fim da tarde Albano regressou finalmente a casa, vinha bem pior. As dores eram quase insuportáveis e só com um esforço titânico conseguiu manter-se em pé na alfaiataria. Pediu então à mulher que trouxesse o médico e deitando-se repousou.

O candeeiro a petróleo estava já aceso quando o doutor Sampaio bateu à porta. Otília correu a abrir.

-       Ó senhor doutor, muito boa noite.

-       Ora viva rapariga. Então onde está o nosso homem? - perguntou naquela voz sonora e bem timbrada que o caracterizava.

-       No quarto senhor doutor – respondeu a mulher apontando para uma porta semicerrada.

O médico era um homem já entrado na idade. Nascera longe daquela terra mas após anos em Coimbra onde se licenciara, fora deslocado para aquela pequena povoação. Gostou do que viu, das pessoas, do ar puro, da dona Fátima, hoje sua mulher, e por ali ficou. Não estava rico longe disso, mas nada lhe faltava. Entrou no quarto e falando em tom baixo foi questionando o alfaiate. Ao fim de um bom bocado, saiu carregando um ar preocupado.

-       Então doutor é muito grave? – Questionou logo a mulher, enquanto afagava a cabeça do rebento mais novo.

-       Nem sei o que lhe diga! Vou para casa consultar os livros e depois mando-lhe cá os remédios.

-       Ó doutor muito obrigada. E quanto lhe devo?

-       Logo me paga. No fim fazemos contas – acrescentou o médico.

Durante uns dias as circunstâncias mantiveram-se sem alteração e o médico, que visitava Albano diariamente exprimia já um ar de profunda preocupação. Nem dietas rigorosas, nem novas drogas que o doutor Sampaio buscara da cidade pareciam fazer efeito. E o estado de saúde do alfaiate definhava a olhos vistos. O clínico até já consultara outros colegas de forma a diagnosticar a estranha doença.

Certa noite o médico foi chamado de urgência, novamente, a casa do Albano. Este por qualquer motivo anormal voltara piorara substancialmente. Desta vez o doutor Sampaio correu quanto as pernas e a idade deixavam encontrando o seu doente num estado claramente mais grave do que da última vez que o vira. Mal respirava e o coração batia de forma arrítmica. Auscultou-o com todo o cuidado e após uns longos momentos saiu do quarto chamando de mansinho a mulher do enfermo:

-       Otília, ó Otília...

-       Cá vou senhor doutor... Então que há? – perguntou ansiosa.

-       Rapariga, eu tenho de te confessar uma coisa. Ele não está nada bem e não consigo descobrir o que ele tem. Prepara-te para o pior... Custa-me dize-lo, mas é verdade. E se eventualmente ele pedir algo para comer, dá-lhe o que ele quiser.

Otília caiu nos braços do doutor num pranto silencioso. Sabia que não devia chorar em frente do marido e por isso após a partida do médico, enxugou a face molhada, respirou fundo e entrou no quarto.

-       Então homem que queres para comer? Como estás melhor, acabou-se a dieta – mentiu a esposa.

O homem mexeu-se um pouco na cama e solicitou a comida, com a voz trémula e quase apagada:

-       Não quero nada…

-       Mas tens de comer homem de Deus… - insistia a mulher – diz o que queres que eu faço.

Perante tamanha insistência o enfermo lá foi respondendo:

 -     Traz-me um bocadinho de bacalhau cozido com couves da nossa horta… é o que me basta.

Como Otília sabia das preferências do marido foi sem espanto que ela recebeu aquele pedido. Assim preparou com todos os ingredientes um belo repasto.

O homem comeu devagar, saboreando cada pedaço de bacalhau, cada folha de couve, cada quadrícula de batata. Bebeu um simples copo do seu vinho. Quando acabou o jantar estava ofegante. Assim recolheu-se para trás e descansou até que admorceu.

Na manhã seguinte Albano acordou pelo alvorecer e logo se apercebeu que a agrura que o acompanhara, havia algumas semanas, tinha diminuído. Assim como um travo amargo que sempre lhe aflorara à boca, também ele assemelhava-se a um leve torpor. Tentou içar o corpo mole e descansado da cama, conseguindo-o com algum esforço. Andava trôpego, mas ainda assim encaminhou-se para o quintal. O dia começava a despontar ao longe. Regressou à velha cozinha onde ainda fumegava um pequeno brasido e espreitou uma vez mais pela janela a aurora. Sentiu-se fatigado, mas bem disposto. Poisou o braço direito na mesa de castanho e a ele encostou a cabeça. Dormitou um pouco, pois quando acordou já um raio de sol invadia a cozinha dando a esta uma luminosidade incomum. De súbito ouviu a mulher chamá-lo de forma desesperada:

-       Albano, Albano, onde estás?

-       Aqui na cozinha – respondeu o marido numa voz serena.

A mulher entrou de supetão, ainda trajando uma coçada camisa de dormir e logo perguntou:

-       Que fazes aqui homem? O que é que te aconteceu? ‘Inda agora saíste da cama…

Só que Albano, levantando-se calmamente respondeu:

-       Não sei como, mas já não me dói nada. E tenho cá uma fome...

A mulher abria a boca de espanto. Ainda doze horas não eram passadas sobre a notícia do estado do seu marido, e que originara uma noite quase de insónia, só adormecendo pela madrugada e agora ali estava ele sentado como se nada tivesse acontecido. Um milagre... As preces a Nossa Senhora dos Remédios haviam sido ouvidas. Entretanto comeu com costumado apetite, antes da enfermidade, a sua refeição matinal. Vestiu-se, não sem antes rapar a barba de dias. E sentenciou:

-       Vou trabalhar!

-       ‘Tás tonto homem. Sabes há quanto tempo que estás enfermo? – e respondeu pelo marido – vai para três semanas. E queres ir já para a rua só porque acordas melhor. Nem penses nisso!

-       Sim, sim... – assentou o marido, mas foi saindo.

A caminho da alfaiataria, Albano passou pelo doutor Sampaio. Pretendia agradecer-lhe a maneira sempre diligente como tratara da sua doença. Este encontrava-se em consulta, mas quando saiu do gabinete para solicitar uma ficha à empregada Dolores, quase caiu de costas ao ver o mestre alfaiate.

-       Mas... mas... que faz aqui? – Gaguejou. E continuando – Ainda ontem estava quase a morrer... – e arrependeu-se da sentença franca.

-       A morrer? Eu? – Perguntou o mestre – Estou óptimo. Vim aqui de propósito agradecer os seus remédios...

E estendendo a mão, agarrou a do médico e sacudiu-a num cumprimento sincero. O médico estava atónito, sem reacção. Nos perto de quarenta anos de carreira ao serviço da Medicina nunca assistira a um caso assim. O alfaiate entrou finalmente na sua loja, bem mais tarde do que lhe era habitual e foi efusivamente abraçado pelos dois aprendizes.

A meio da manhã o doutor Sampaio procurou a casa de Albano e perguntou à mulher:

-       Diz-me lá, rapariga, o que é que fizeste ao teu marido? Ainda ontem à noite não dava nada por ele e hoje de manhã já foi para a loja?

-       Eu só fiz aquilo que o senhor me mandou...

-       ... E que foi? – O clínico esperava por algo estranho, que ele sabia não ter receitado.

-       Dar-lhe de comer aquilo que ele quisesse. E assim fiz. Ele pediu-me bacalhau cozido com couves. Eu ainda lhe juntei uma batata que ele também comeu.

-       Só isso?

-       Só! Bem... Não. – Confessou a mulher – Também bebeu meio copo do nosso vinho...

-       Estranho, muito estranho! Antes assim. Fico feliz por ele estar melhor. Obrigado pela informação e até amanhã – e saiu tão depressa quanto chegara.

-       Até amanhã senhor doutor.

E o esculápio lá regressou à sua azáfama questionando-se sobre os últimos acontecimentos. Por seu lado Albano manteve o seu trabalho de alfaiate devidamente acompanhado pelos seus aprendizes. As partidas de damas mantiveram o mesmo fervor de outras semanas com o seu rival mas amigo e compadre Isidro, que saudou com a imensa alegria o regresso do seu costumado e renhido adversário.

Tempos passados, numa noite muito fria, o doutor foi chamado a casa do sapateiro. Este contorcia-se com dores, rebolava na cama, gemia, uma tristeza. Quando viu o médico Sampaio logo clamou:

-       Ai senhor doutor, livre-me destas dores, por amor de Deus. Pela sua rica saúde livre-me deste martírio.

Aquele aproximou-se do doente e com as mãos sábias apalpou o ventre do sapateiro, depois auscultou-o, fez um ror de perguntas. Este esforçava-se por responder o melhor que sabia e podia enquanto continha os gemidos de dor. Após uns minutos de silêncio forçado Isidro voltou à mesma ladainha.

-       Bem, não sei o que se passa com o seu marido – acabou por confessar o doutor Sampaio para a mulher do Isidro – mas tendo em conta um caso semelhante, que foi a do mestre da tesoura e dos alinhavos, vosso compadre, penso que o melhor é fazer como fez a mulher do Alfredo: coze umas batatas com bacalhau e couves à mistura e um copinho de vinho ao jantar e amanhã estará como novo.

A mulher olhava o médico com surpresa e alguma angústia. E assim perguntou:

-       E o senhor doutor acredita que isso curará o meu homem?

-       Claro que acredito! – respondeu esfuziante

E assim a esposa lá preparou a refeição e obrigou o marido a comer. Foi uma luta quase titânica para que o sapateiro ingerisse parte do repasto.

No dia seguinte pela manhã, enquanto abria a loja Albano ouviu o sino da capela a tocar a dobrar e perguntou para si próprio:

-       Quem será que morreu? Pelo toque é um homem.

De súbito surgiu o seu filho numa correria desenfreada. Quando chegou ofegante, mal conseguiu falar e só ao fim de alguns instantes conseguiu dizer:

-       Pai, pai... Sabes quem morreu?

-       Eu não, mas tu sabes!

-       Sei, foi o meu padrinho!

-       O teu padrinho? O Isidro? Estás a brincar com coisas sérias e isso é muito feio – avisou o pai.

-       Não estou a brincar. É mesmo verdade...

O alfaiate olhou o filho de frente e notou-lhe uma pequena lágrima no canto do olho. Logo percebeu que o seu benjamim infelizmente não lhe mentira. Largou tudo e correu a casa do compadre Isidro. A porta estava aberta e algumas mulheres carpiam já algumas lágrimas. Albano irrompeu pela casa e procurou o quarto do seu falecido amigo. Encontrou-o frio, mas já vestido com um fato que ele próprio fizera para o baptizado do seu rapaz.

No consultório o doutor Sampaio, que confirmara o óbito do sapateiro, actualizava as pequenas fichas dos doentes. Uma constipação aqui, um torcicolo ali, uma febre acolá. No íntimo daquele clínico ferviam ainda umas quantas perguntas para as quais ele não conhecia qualquer resposta. Contudo nos apontamentos sobre doenças escreveu uma curiosa conclusão:

 

Para doença bizarra, plena de aflição

Se alfaiate: bacalhau, couve e batata.

Mas seja o enfermo  mestre remendão,

Não é de dar o pitéu que o mata.