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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - O Nome Pedro - VI

I

Em época de sementeiras ou de colheitas homens e mulheres estendiam-se pelos campos, venerando a terra num gesto repetido. Os garotos mais velhos ajudavam a mãe ou o pai, os mais novos ainda brincavam com uma lagartixa matreira, desvendada em cima dum marouço de pedras.

É neste ambiente rural de fadigas que vamos conhecer Teodolindo e Maria Otelinda. Ainda na flor da idade e sem filhos, o casal vivia do que a terra, quantas vezes ingrata, lhe oferecia. E tamanha dedicação à lavoura levara já a mulher a queixar-se ao marido:

- Ó homem de Deus tu ainda te matas a trabalhar.  Não aguentas uma vida assim de canseiras. Tens de arranjar quem te ajude...

Realmente o camponês consumia-se em labor. Ainda a madrugada não se vislumbrava no horizonte e era vê-lo já a caminho da horta. E transformava-se o entardecer em noite cerrada quando regressava, enfim, ao lar arrastando as botas sobre o peso da canseira diária. “Um moiro de trabalho” diziam uns, “trabalhador como o pai” comentavam outros. Todavia a maioria considerava-o um escravo da terra inclemente. Por outro lado, a mulher mantinha aceso o espírito com a mesma lamúria.

- Mas onde julgas tu que eu arranjo pessoal? Todos têm as suas fazendas para amanhar... - respondia o marido por vezes num tom de voz mais crispado do que era habitual.

- Vais às aldeias mais próximas e procuras quem queira trabalhar para ti – devolvia Otelinda sem rodeios.

Curiosamente aquele Inverno trouxera muita água. Dias e noites a chover. De tal forma, que as terras encharcadas e enlameadas jaziam impróprias para amanho. Foi nesta época de forçada acalmia agrícola que Teodolindo, dando por fim vazão às solicitações constantes da mulher, decidiu meter os pés ao caminho e foi procurar quem o ajudasse naquele seu afã permanente de manter as terras sempre amanhadas.

A esposa ficou à porta de casa, enquanto o marido arreava o burro lanzudo, enxugando as mãos num velho trapo. Depois o homem saltou para cima da albarda e partiu. Contudo, antes de abalar a mulher proferiu um desejo que quase parecia uma sentença:

- Não me tragas nenhum criado que se chame Pedro. Ouvi dizer que são de má têmpera. Ouviste o que eu te disse? Agora vê lá se te esqueces.

- Tá bem, tá bem! Deixa que não me esqueço.

As últimas palavras da companheira toldavam agora o pensamento de Teodolindo. Que ideia bizarra seria aquela de que alguém só por ter o nome de Pedro seria diferente dos outros. Entretanto mais valia não contrariar a mulher. A jornada iniciara-se bem cedo debaixo de um sol tímido e arrepiado, mas ao fim da manhã já tinha calcorreado um par de léguas.

Era quase noite quando avistou a primeira aldeia. Pensou pernoitar na povoação e buscou um lugar que o pudesse acolher. No largo principal do povoado achou então uma taberna onde à entrada um velho bêbado cantarolava uma ode, dedicada a um ramo de loureiro que se espraiava por cima da ombreira da porta:

Aqui te visito, ramo verde

Do vinho és alcoviteiro

Só não te visito mais vezes

por me faltar o dinheiro.

E concluía apontando desequilibradamente para o loureiro inocente:

Tu, tu e outros como tu

é que me fazem andar roto e nu.

Teodolindo entrou. Lá dentro pairava no ar um cheiro a vinho, nauseabundo e acre que trespassava as narinas. A luz ténue das candeias, que ardiam nos centros das mesas, dava ao estabelecimento um ar sombrio e triste.

Aproximou-se do balcão, onde um velho de barba branca enchia dois pequenos copos de aguardente:

-       Boa noite senhor – cumprimentou Teodolindo.

-       Boa noite, viajante. Que procura?

-       Onde dormir... Tem alguma coisa?

-       Lá atrás há um quarto. É pequeno, mas limpo.

-       Fico com ele. Também é só por esta noite.

-       Então venha por aqui – erguendo o balcão basculante.

Teodolindo seguiu o homem. O quarto era rudimentar e o mobiliário resumia-se à cama de ferro e uma cadeira na qual repousava a candeia de azeite que o taberneiro apressou em acender. Numa das paredes descobria-se com dificuldade uma pequena janela, por onde a lua penetrava timidamente. Deitou-se cansado e procurou o calor num velho cobertor que envolvia a enxerga.

Quando acordou, já o sol havia nascido. Levantou-se num segundo e em breve estava na taberna. Pagou a estadia, procurou num cerrado contíguo à casa o seu companheiro de jornada, que pastava mansamente, arreou-o e retomou o caminho sem que antes perguntasse ao taberneiro se naquela aldeia haveria alguém disposto a trabalhar para ele. À resposta “...aqui todos tem as suas vidas...” Teodolindo acrescentou um sorriso e um encolher de ombros. A bucha que trouxera de casa estava no fim quando avistou nova povoação. À entrada do lugarejo um jovem sentado em cima de um tronco de eucalipto, talhava com uma velha faca um fino pau de marmeleiro.

- Então rapaz, hoje não se faz nada?

- Não há que fazer – respondeu o moço, enquanto retirava com perícia mais uma lasca da vara ainda verde.

- E que sabes tu do amanho da terra?

- Sei tudo. Aprendi com o meu falecido pai.

De súbito Teodolindo apercebeu-se que o moço podia servir os seus intentos. Mas faltava saber o nome.

- E como te chamas?

- Pedro...

Uma tristeza profunda invadiu o coração do agricultor. Por fim disse:

- Que pena! A minha Maria avisou-me que não queria ninguém com esse nome. Disseram-lhe que são demasiado astutos.

- Nem por isso – respondeu o rapaz com ar traquina.

- Pois és capaz de ter razão, mas não me serves por ora. Pode ser que um dia...

Agradeceu e seguiu o caminho em busca de outro homem, mas que não tivesse o malfadado desígnio. Enquanto um atravessava a aldeia quase deserta, Pedro largou a vara, despiu a camisola de lã que o aquecia do dia de sol, mas frio, correu por detrás das casas, por carreiros que ele conhecia até ao outro lado da aldeia. Aqui sentou-se numa parede e esperou de novo o viajante. Quando este se aproximou do rapaz não o reconheceu e lançou a mesma questão:

- Então hoje não se trabalha?

- Não tenho trabalho – explicou Pedro.

O homem continuava sem reconhecer o gaiato da vara e perguntou:

- E que sabes tu de lavoura?

- Oh! Sei tudo. Aprendi com o meu avô.

Nova esperança renasceu em Teodolindo. Faltavam as últimas perguntas:

- Gostarias de trabalhar para mim?... – e lembrou-se – e por acaso não te chamas Pedro?

- Por acaso não tenho esse nome – mentiu o moço à segunda questão – Porquê?

- Porque a minha mulher não quer lá em casa ninguém com esse nome. Cismou que são velhacos e ladinos. Então queres vir trabalhar para mim? Dou-te de comer e dormir e algumas moedas.

- Se achar que lhe convenho.

- Claro que convéns. Anda então.

- Preciso apenas de tempo para levar uma trouxa. Espere aqui por mim, que eu venho já.

 

II

 

As primeiras folhas castanhas de Outono tombavam já, quando certa noite Pedro, conhecido na casa por Moço, se apercebeu que a patroa Otelinda mirava o compadre Anastácio, homem novo e esbelto, sempre que ele aparecia em casa, dum jeito espianceiro e janota. O rapaz fingia muitas vezes dormitar encostado à pedra da lareira recebendo desta o bafo quente de um lume crepitante e acolhedor conseguindo assim de forma camuflada, perceber os velados jogos de olhares quentes e comprometidos entre a patroa e o compadre. O patrão não desconfiava do caso e recebia o Anastácio com grande hospitalidade e cerimónia.

Certa noite o assédio foi mais longe e a ama mesmo à frente do marido, mas sem que este notasse, conseguiu combinar um encontro furtivo com o amante. Anastácio marcou um atundimento para uma propriedade longe de casa, onde ele mantinha desde há algumas semanas uma quantidade de bois de raça em pastagem. Assim, na véspera do encontro, Maria matou o melhor galo da capoeira, cozeu-o e preparou-o com todos os condimentos para que saísse um cozinhado de categoria. Pedro que andara durante todo o dia a rachar lenha para a lareira precavendo uma invernia rigorosa apercebeu-se da invulgar azáfama da patroa. Ele sabia que todos aqueles acepipes tinham como destino o amante. Para o patrão e para ele, Otelinda geralmente preparava um repasto bem mais frugal. Teodolindo, naquele dia, andara folgado. Fora ao povo comprar algumas alfaias para substituir as que tinha e comentara, na taberna do ti’Adelino, com alguns amigos, que o Moço era bom rapaz e trabalhador. Vivaço e sempre de resposta pronta, acabava por ser divertido conviver com ele.

À noite, patrão e empregado falaram sobre o trabalho que os aguardava no dia seguinte:

- Então patrão, amanhã para onde é que vamos?

- Ainda não sei rapaz. Diz lá tu o que é que achas?

- Eu, se fosse a si, ia acabar de amanhar aquela terra do fundo do pinhal, junto à Frágua do seu compadre Anastácio. Ainda há dias por lá passei e aquilo está a um vale de cães.

Otelinda levantou os olhos num repente e fulminou o empregado. Este preparava-se para lhe estragar a festa. Entretanto sem denunciar qualquer temor observou:

- Mas que ideia é essa de ir para tão longe quando há aqui perto tanta coisa por fazer?

Contudo Pedro não desarmou:

- Terá a patroa muita razão, mas o tempo está de feição e é necessário tratar aquela fazenda antes do Inverno. Se não após as chuvas a erva é tanta que não se consegue lá entrar.

A patroa tremia agora. A dúvida de que o empregado desconfiasse de alguma coisa era evidente. Ainda assim retornou:

- Pois é... para vocês é fácil, mas eu é que tenho de largar isto tudo e levar-vos a merenda. E daqui até lá ainda é quase uma légua de caminho. É um dia perdido!

Teodolindo abanava finalmente a cabeça concordando com a mulher. Decididamente o jovem pretendia complicar o romance à patroa adúltera. E assim atalhou:

- Pois, mas não fui eu que, no ano passado, me gabei na aldeia de ter tido o melhor chão de batatas das redondezas. E só lá se consegue esse ganho...

O patrão ficara enfim convencido, mas para Maria Otelinda havia que tentar uma maneira de ver o amante, sem que o marido soubesse. Faltava-lhe agora a serenidade para raciocinar. A noite aproximava-se e esta seria, certamente, boa conselheira.

De manhã a doméstica levantou-se cedo e bem disposta, preparada para o afã do dia que ora começava. Ataviou à pressa, como mata-bicho, uma pequena bucha para o marido e para o criado e quando os homens saíram a caminho da fazenda, ela anunciou prontamente com um sorriso rasgado:

- Ao meio-dia estou lá com o almoço.

Teodolindo e Pedro acenaram afirmativamente e saltaram para cima da carroça que os levaria longe de casa. Por mera coincidência depararam no caminho com o Anastácio a quem deram uma preciosa boleia.

- Então compadre para onde vai? – perguntou Teodolindo inocentemente.

- Vou até à Frágua – respondeu calmamente o compadre – é que tenho lá uns belos de uns animais e quero ver como está tudo. Eles têm lá água e de comer, que o pasto é grande. Mas nunca fiando. Há quem goste do alheio...

- Tem muita razão compadre... Quer uma boleia? Vou para lá perto!

- Já agora agradeço!

A tagarelice da viagem nasceu interessante, pois falou-se de quase tudo. As sementeiras, o tempo, o gado e até com alguma graça desta ou daquela moçoila. Pedro ouvia em silêncio, mas no seu espírito iam passando ideias fantásticas...

Chegados ao local Teodolindo parou a carroça e ofereceu:

- Ó compadre, quer que o leve lá a cima?

Respondeu Anastácio:

- Não vale a pena. Já foi um grande avanço ter vindo a cavalo na carroça. Até mais ver – E acenou com uma saudação simples.

Pedro deixou que o homem desaparecesse por completo por detrás do pinhal que cobria a pequena encosta e só então perguntou:

- Ó patrão, então deixou o homem ir embora e nem o convidou para vir cá almoçar. Olhe que eu não lhe vi nenhuma bucha.

Espantado com a perspicácia do criado, Teodolindo concordou:

- Tens razão Moço, vai lá dizer que o queremos cá para almoçar.

- Mas patrão, não será melhor ir logo mais à hora do meio-dia porque assim só faço uma viagem e perco menos tempo.

- Estás outra vez cheio de razão... Tu és esperto... Por acaso não te chamarás Pedro?

- Claro que não patrão – mentiu o rapaz.

- Bem vamos ao trabalho que se faz tarde – concluiu Teodolindo. E agarrando na gadanha começou a cortar a erva alta que cobria o chão.

 

III

Ouviu-se ao longe o som do bater de um relógio. Tocou doze badaladas. Teodolindo chamou o criado e disse-lhe:

- É meio-dia. Vai chamar o meu compadre para almoçar. Enquanto vais e vens chega a patroa...

Pedro rapidamente pôs os pés a caminho. Escalou a encosta íngreme e enquanto subia maquinou uma partida para o casal adúltero. Chegado ao cume avistou ao longe um pequeno aglomerado de animais. Correu até lá e quando Anastácio o viu cumprimentou-o:

- Ora viva! Que fazes aqui?

- ‘Tá arranjado com o meu patrão! – ameaçou o rapaz logo de chofre.

- Porquê? – perguntou o outro sem ter tempo para pensar

- É que ele já sabe que vossemecê anda metido com a mulher dele e quer cá vir ajustar contas consigo. Eu, se fosse a si, ia já embora...

O homem assustou-se, mas logo de seguida respondeu:

- Mas isso é mentira. Ela é minha comadre...

- Que seja, mas diga-lhe isso é a ele. Eu só cá vim avisá-lo...

E da mesma maneira que chegou, partiu, deixando Anastácio sem saber o que fazer. Quando arribou junto do patrão, notou que a patroa ainda não chegara com o almoço e assim comunicou-lhe:

- Ó patrão, o seu compadre não quer vir. Diz que só vem se for lá vossemecê convidá-lo...

- Homessa! Então não querem lá ver que o homem endoideceu. Agora tenho de lá ir chamá-lo. Só a mim...

E lá foi Teodolindo encosta acima procurar o amigo traidor, resmungando palavras sem nexo. Ao mesmo tempo Maria Otelinda surgia ao longe no caminho. Trazia à cabeça uma cesta de verga divinalmente equilibrada em cima de uma rodilha. Assim que chegou junto a Pedro, logo lhe perguntou:

- Onde está o patrão?

- Se a patroa soubesse! – exclamou o rapaz.

- Se eu soubesse o quê? – insistiu Maria.

- É que o patrão já sabe que a patroa anda amantizada com o compadre Anastácio e foi lá ter com ele pedir explicações... E já saiu daqui há um bom bocado – alarmou Pedro.

Maria ficou petrificada. O sangue da vergonha aflorou-lhe às faces. Pensou em ir atrás do marido, mas isso era levá-la para a morte, que Teodolindo era boa pessoa, mas fervia em pouca água. Voltar para trás para a aldeia também não serviria de nada, pois mais tarde ou mais cedo o marido apanhá-la-ia. Optou por fugir em passo apressado, pelo caminho que seguia para a vila a cinco léguas de distância esbracejando e levando consigo uma cantilena:

- Ai que estou desgraçada... ai que estou desgraçada...

Por sua vez Teodolindo sem saber do que acontecia no vale atrás de si procurou o suposto amigo. Do cimo da encosta, viu-o de volta do gado e começou a chamar:

- Ó compadre, compadre! Venha cá!

Anastácio ainda meditava nas palavras que o rapaz lhe dissera quando ouviu o outro camponês a chamar pelo seu nome. Amedrontado e crendo que as palavras de Pedro eram verdadeiras, não esteve para mais delongas, deixou os animais e desatou a fugir pela charneca fora, enquanto o Teodolindo o perseguia clamando:

- Mas que é que se passa compadre! Venha que lhe quero falar...

Pedro por sua vez sentou-se num resto de tronco de uma giesta e adivinhando o desenrolar dos acontecimentos do outro lado do cabeço, riu a bom rir da partida que pregara enquanto abria a cesta da merenda e solenemente brindou a sua astúcia com um belo naco de galo corado e regado com um tinto de estalo, ambos destinados ao amante ora em fuga.