Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Contos Breves - O Nome Pedro - VI

I

Em época de sementeiras ou de colheitas homens e mulheres estendiam-se pelos campos, venerando a terra num gesto repetido. Os garotos mais velhos ajudavam a mãe ou o pai, os mais novos ainda brincavam com uma lagartixa matreira, desvendada em cima dum marouço de pedras.

É neste ambiente rural de fadigas que vamos conhecer Teodolindo e Maria Otelinda. Ainda na flor da idade e sem filhos, o casal vivia do que a terra, quantas vezes ingrata, lhe oferecia. E tamanha dedicação à lavoura levara já a mulher a queixar-se ao marido:

- Ó homem de Deus tu ainda te matas a trabalhar.  Não aguentas uma vida assim de canseiras. Tens de arranjar quem te ajude...

Realmente o camponês consumia-se em labor. Ainda a madrugada não se vislumbrava no horizonte e era vê-lo já a caminho da horta. E transformava-se o entardecer em noite cerrada quando regressava, enfim, ao lar arrastando as botas sobre o peso da canseira diária. “Um moiro de trabalho” diziam uns, “trabalhador como o pai” comentavam outros. Todavia a maioria considerava-o um escravo da terra inclemente. Por outro lado, a mulher mantinha aceso o espírito com a mesma lamúria.

- Mas onde julgas tu que eu arranjo pessoal? Todos têm as suas fazendas para amanhar... - respondia o marido por vezes num tom de voz mais crispado do que era habitual.

- Vais às aldeias mais próximas e procuras quem queira trabalhar para ti – devolvia Otelinda sem rodeios.

Curiosamente aquele Inverno trouxera muita água. Dias e noites a chover. De tal forma, que as terras encharcadas e enlameadas jaziam impróprias para amanho. Foi nesta época de forçada acalmia agrícola que Teodolindo, dando por fim vazão às solicitações constantes da mulher, decidiu meter os pés ao caminho e foi procurar quem o ajudasse naquele seu afã permanente de manter as terras sempre amanhadas.

A esposa ficou à porta de casa, enquanto o marido arreava o burro lanzudo, enxugando as mãos num velho trapo. Depois o homem saltou para cima da albarda e partiu. Contudo, antes de abalar a mulher proferiu um desejo que quase parecia uma sentença:

- Não me tragas nenhum criado que se chame Pedro. Ouvi dizer que são de má têmpera. Ouviste o que eu te disse? Agora vê lá se te esqueces.

- Tá bem, tá bem! Deixa que não me esqueço.

As últimas palavras da companheira toldavam agora o pensamento de Teodolindo. Que ideia bizarra seria aquela de que alguém só por ter o nome de Pedro seria diferente dos outros. Entretanto mais valia não contrariar a mulher. A jornada iniciara-se bem cedo debaixo de um sol tímido e arrepiado, mas ao fim da manhã já tinha calcorreado um par de léguas.

Era quase noite quando avistou a primeira aldeia. Pensou pernoitar na povoação e buscou um lugar que o pudesse acolher. No largo principal do povoado achou então uma taberna onde à entrada um velho bêbado cantarolava uma ode, dedicada a um ramo de loureiro que se espraiava por cima da ombreira da porta:

Aqui te visito, ramo verde

Do vinho és alcoviteiro

Só não te visito mais vezes

por me faltar o dinheiro.

E concluía apontando desequilibradamente para o loureiro inocente:

Tu, tu e outros como tu

é que me fazem andar roto e nu.

Teodolindo entrou. Lá dentro pairava no ar um cheiro a vinho, nauseabundo e acre que trespassava as narinas. A luz ténue das candeias, que ardiam nos centros das mesas, dava ao estabelecimento um ar sombrio e triste.

Aproximou-se do balcão, onde um velho de barba branca enchia dois pequenos copos de aguardente:

-       Boa noite senhor – cumprimentou Teodolindo.

-       Boa noite, viajante. Que procura?

-       Onde dormir... Tem alguma coisa?

-       Lá atrás há um quarto. É pequeno, mas limpo.

-       Fico com ele. Também é só por esta noite.

-       Então venha por aqui – erguendo o balcão basculante.

Teodolindo seguiu o homem. O quarto era rudimentar e o mobiliário resumia-se à cama de ferro e uma cadeira na qual repousava a candeia de azeite que o taberneiro apressou em acender. Numa das paredes descobria-se com dificuldade uma pequena janela, por onde a lua penetrava timidamente. Deitou-se cansado e procurou o calor num velho cobertor que envolvia a enxerga.

Quando acordou, já o sol havia nascido. Levantou-se num segundo e em breve estava na taberna. Pagou a estadia, procurou num cerrado contíguo à casa o seu companheiro de jornada, que pastava mansamente, arreou-o e retomou o caminho sem que antes perguntasse ao taberneiro se naquela aldeia haveria alguém disposto a trabalhar para ele. À resposta “...aqui todos tem as suas vidas...” Teodolindo acrescentou um sorriso e um encolher de ombros. A bucha que trouxera de casa estava no fim quando avistou nova povoação. À entrada do lugarejo um jovem sentado em cima de um tronco de eucalipto, talhava com uma velha faca um fino pau de marmeleiro.

- Então rapaz, hoje não se faz nada?

- Não há que fazer – respondeu o moço, enquanto retirava com perícia mais uma lasca da vara ainda verde.

- E que sabes tu do amanho da terra?

- Sei tudo. Aprendi com o meu falecido pai.

De súbito Teodolindo apercebeu-se que o moço podia servir os seus intentos. Mas faltava saber o nome.

- E como te chamas?

- Pedro...

Uma tristeza profunda invadiu o coração do agricultor. Por fim disse:

- Que pena! A minha Maria avisou-me que não queria ninguém com esse nome. Disseram-lhe que são demasiado astutos.

- Nem por isso – respondeu o rapaz com ar traquina.

- Pois és capaz de ter razão, mas não me serves por ora. Pode ser que um dia...

Agradeceu e seguiu o caminho em busca de outro homem, mas que não tivesse o malfadado desígnio. Enquanto um atravessava a aldeia quase deserta, Pedro largou a vara, despiu a camisola de lã que o aquecia do dia de sol, mas frio, correu por detrás das casas, por carreiros que ele conhecia até ao outro lado da aldeia. Aqui sentou-se numa parede e esperou de novo o viajante. Quando este se aproximou do rapaz não o reconheceu e lançou a mesma questão:

- Então hoje não se trabalha?

- Não tenho trabalho – explicou Pedro.

O homem continuava sem reconhecer o gaiato da vara e perguntou:

- E que sabes tu de lavoura?

- Oh! Sei tudo. Aprendi com o meu avô.

Nova esperança renasceu em Teodolindo. Faltavam as últimas perguntas:

- Gostarias de trabalhar para mim?... – e lembrou-se – e por acaso não te chamas Pedro?

- Por acaso não tenho esse nome – mentiu o moço à segunda questão – Porquê?

- Porque a minha mulher não quer lá em casa ninguém com esse nome. Cismou que são velhacos e ladinos. Então queres vir trabalhar para mim? Dou-te de comer e dormir e algumas moedas.

- Se achar que lhe convenho.

- Claro que convéns. Anda então.

- Preciso apenas de tempo para levar uma trouxa. Espere aqui por mim, que eu venho já.

 

II

 

As primeiras folhas castanhas de Outono tombavam já, quando certa noite Pedro, conhecido na casa por Moço, se apercebeu que a patroa Otelinda mirava o compadre Anastácio, homem novo e esbelto, sempre que ele aparecia em casa, dum jeito espianceiro e janota. O rapaz fingia muitas vezes dormitar encostado à pedra da lareira recebendo desta o bafo quente de um lume crepitante e acolhedor conseguindo assim de forma camuflada, perceber os velados jogos de olhares quentes e comprometidos entre a patroa e o compadre. O patrão não desconfiava do caso e recebia o Anastácio com grande hospitalidade e cerimónia.

Certa noite o assédio foi mais longe e a ama mesmo à frente do marido, mas sem que este notasse, conseguiu combinar um encontro furtivo com o amante. Anastácio marcou um atundimento para uma propriedade longe de casa, onde ele mantinha desde há algumas semanas uma quantidade de bois de raça em pastagem. Assim, na véspera do encontro, Maria matou o melhor galo da capoeira, cozeu-o e preparou-o com todos os condimentos para que saísse um cozinhado de categoria. Pedro que andara durante todo o dia a rachar lenha para a lareira precavendo uma invernia rigorosa apercebeu-se da invulgar azáfama da patroa. Ele sabia que todos aqueles acepipes tinham como destino o amante. Para o patrão e para ele, Otelinda geralmente preparava um repasto bem mais frugal. Teodolindo, naquele dia, andara folgado. Fora ao povo comprar algumas alfaias para substituir as que tinha e comentara, na taberna do ti’Adelino, com alguns amigos, que o Moço era bom rapaz e trabalhador. Vivaço e sempre de resposta pronta, acabava por ser divertido conviver com ele.

À noite, patrão e empregado falaram sobre o trabalho que os aguardava no dia seguinte:

- Então patrão, amanhã para onde é que vamos?

- Ainda não sei rapaz. Diz lá tu o que é que achas?

- Eu, se fosse a si, ia acabar de amanhar aquela terra do fundo do pinhal, junto à Frágua do seu compadre Anastácio. Ainda há dias por lá passei e aquilo está a um vale de cães.

Otelinda levantou os olhos num repente e fulminou o empregado. Este preparava-se para lhe estragar a festa. Entretanto sem denunciar qualquer temor observou:

- Mas que ideia é essa de ir para tão longe quando há aqui perto tanta coisa por fazer?

Contudo Pedro não desarmou:

- Terá a patroa muita razão, mas o tempo está de feição e é necessário tratar aquela fazenda antes do Inverno. Se não após as chuvas a erva é tanta que não se consegue lá entrar.

A patroa tremia agora. A dúvida de que o empregado desconfiasse de alguma coisa era evidente. Ainda assim retornou:

- Pois é... para vocês é fácil, mas eu é que tenho de largar isto tudo e levar-vos a merenda. E daqui até lá ainda é quase uma légua de caminho. É um dia perdido!

Teodolindo abanava finalmente a cabeça concordando com a mulher. Decididamente o jovem pretendia complicar o romance à patroa adúltera. E assim atalhou:

- Pois, mas não fui eu que, no ano passado, me gabei na aldeia de ter tido o melhor chão de batatas das redondezas. E só lá se consegue esse ganho...

O patrão ficara enfim convencido, mas para Maria Otelinda havia que tentar uma maneira de ver o amante, sem que o marido soubesse. Faltava-lhe agora a serenidade para raciocinar. A noite aproximava-se e esta seria, certamente, boa conselheira.

De manhã a doméstica levantou-se cedo e bem disposta, preparada para o afã do dia que ora começava. Ataviou à pressa, como mata-bicho, uma pequena bucha para o marido e para o criado e quando os homens saíram a caminho da fazenda, ela anunciou prontamente com um sorriso rasgado:

- Ao meio-dia estou lá com o almoço.

Teodolindo e Pedro acenaram afirmativamente e saltaram para cima da carroça que os levaria longe de casa. Por mera coincidência depararam no caminho com o Anastácio a quem deram uma preciosa boleia.

- Então compadre para onde vai? – perguntou Teodolindo inocentemente.

- Vou até à Frágua – respondeu calmamente o compadre – é que tenho lá uns belos de uns animais e quero ver como está tudo. Eles têm lá água e de comer, que o pasto é grande. Mas nunca fiando. Há quem goste do alheio...

- Tem muita razão compadre... Quer uma boleia? Vou para lá perto!

- Já agora agradeço!

A tagarelice da viagem nasceu interessante, pois falou-se de quase tudo. As sementeiras, o tempo, o gado e até com alguma graça desta ou daquela moçoila. Pedro ouvia em silêncio, mas no seu espírito iam passando ideias fantásticas...

Chegados ao local Teodolindo parou a carroça e ofereceu:

- Ó compadre, quer que o leve lá a cima?

Respondeu Anastácio:

- Não vale a pena. Já foi um grande avanço ter vindo a cavalo na carroça. Até mais ver – E acenou com uma saudação simples.

Pedro deixou que o homem desaparecesse por completo por detrás do pinhal que cobria a pequena encosta e só então perguntou:

- Ó patrão, então deixou o homem ir embora e nem o convidou para vir cá almoçar. Olhe que eu não lhe vi nenhuma bucha.

Espantado com a perspicácia do criado, Teodolindo concordou:

- Tens razão Moço, vai lá dizer que o queremos cá para almoçar.

- Mas patrão, não será melhor ir logo mais à hora do meio-dia porque assim só faço uma viagem e perco menos tempo.

- Estás outra vez cheio de razão... Tu és esperto... Por acaso não te chamarás Pedro?

- Claro que não patrão – mentiu o rapaz.

- Bem vamos ao trabalho que se faz tarde – concluiu Teodolindo. E agarrando na gadanha começou a cortar a erva alta que cobria o chão.

 

III

Ouviu-se ao longe o som do bater de um relógio. Tocou doze badaladas. Teodolindo chamou o criado e disse-lhe:

- É meio-dia. Vai chamar o meu compadre para almoçar. Enquanto vais e vens chega a patroa...

Pedro rapidamente pôs os pés a caminho. Escalou a encosta íngreme e enquanto subia maquinou uma partida para o casal adúltero. Chegado ao cume avistou ao longe um pequeno aglomerado de animais. Correu até lá e quando Anastácio o viu cumprimentou-o:

- Ora viva! Que fazes aqui?

- ‘Tá arranjado com o meu patrão! – ameaçou o rapaz logo de chofre.

- Porquê? – perguntou o outro sem ter tempo para pensar

- É que ele já sabe que vossemecê anda metido com a mulher dele e quer cá vir ajustar contas consigo. Eu, se fosse a si, ia já embora...

O homem assustou-se, mas logo de seguida respondeu:

- Mas isso é mentira. Ela é minha comadre...

- Que seja, mas diga-lhe isso é a ele. Eu só cá vim avisá-lo...

E da mesma maneira que chegou, partiu, deixando Anastácio sem saber o que fazer. Quando arribou junto do patrão, notou que a patroa ainda não chegara com o almoço e assim comunicou-lhe:

- Ó patrão, o seu compadre não quer vir. Diz que só vem se for lá vossemecê convidá-lo...

- Homessa! Então não querem lá ver que o homem endoideceu. Agora tenho de lá ir chamá-lo. Só a mim...

E lá foi Teodolindo encosta acima procurar o amigo traidor, resmungando palavras sem nexo. Ao mesmo tempo Maria Otelinda surgia ao longe no caminho. Trazia à cabeça uma cesta de verga divinalmente equilibrada em cima de uma rodilha. Assim que chegou junto a Pedro, logo lhe perguntou:

- Onde está o patrão?

- Se a patroa soubesse! – exclamou o rapaz.

- Se eu soubesse o quê? – insistiu Maria.

- É que o patrão já sabe que a patroa anda amantizada com o compadre Anastácio e foi lá ter com ele pedir explicações... E já saiu daqui há um bom bocado – alarmou Pedro.

Maria ficou petrificada. O sangue da vergonha aflorou-lhe às faces. Pensou em ir atrás do marido, mas isso era levá-la para a morte, que Teodolindo era boa pessoa, mas fervia em pouca água. Voltar para trás para a aldeia também não serviria de nada, pois mais tarde ou mais cedo o marido apanhá-la-ia. Optou por fugir em passo apressado, pelo caminho que seguia para a vila a cinco léguas de distância esbracejando e levando consigo uma cantilena:

- Ai que estou desgraçada... ai que estou desgraçada...

Por sua vez Teodolindo sem saber do que acontecia no vale atrás de si procurou o suposto amigo. Do cimo da encosta, viu-o de volta do gado e começou a chamar:

- Ó compadre, compadre! Venha cá!

Anastácio ainda meditava nas palavras que o rapaz lhe dissera quando ouviu o outro camponês a chamar pelo seu nome. Amedrontado e crendo que as palavras de Pedro eram verdadeiras, não esteve para mais delongas, deixou os animais e desatou a fugir pela charneca fora, enquanto o Teodolindo o perseguia clamando:

- Mas que é que se passa compadre! Venha que lhe quero falar...

Pedro por sua vez sentou-se num resto de tronco de uma giesta e adivinhando o desenrolar dos acontecimentos do outro lado do cabeço, riu a bom rir da partida que pregara enquanto abria a cesta da merenda e solenemente brindou a sua astúcia com um belo naco de galo corado e regado com um tinto de estalo, ambos destinados ao amante ora em fuga.

Contos Breves - Uma Noite do Diabo - V

A noite tépida e celeste amaciara a véspera assaz quente. Pela madrugada a leve brisa sopra no pinhal sobranceiro como de uma carícia se trate. O Estio neste ano ostenta-se longo e rigoroso. Há quem garanta que é tempo suão. Seja como for, a canícula obriga os corpos a buscar refúgio na sombra de uma azinheira ou debaixo de um frondoso pinheiro manso, de onde tombam pequenas e redondas pinhas meio abertas, espalhando pelo solo as sementes secas. Também o gado sofre com o excesso de calor e até os poucos queijos feitos por esta altura não têm o mesmo sabor.

Zeferino Bogas acorda e levanta-se muito cedo. Retira do curral as ovelhas para ordenha e deixa alguns dos borregos mais crescidos escapar para o lameiro no fundo da horta onde medra erva fresca e suculenta que cresce à custa de regas quase diárias. Enquanto a Maria Lucinda prepara numa cafeteira escarvoada o café da manhã, o campesino vai mugindo as ovelhas com a habitual perícia e rapidez.

O dia vai despontando e com ele aviva-se o calor. Um mata-bicho rápido constituído por um naco de broa e outro de presunto, acompanhado pelo negro líquido, desaparece de um trago. Na trempe a água já ferve para a sopa do almoço enquanto a mulher escolhe as verduras colhidas ainda há pouco na horta. O homem vai à eira, olha o monte, levanta a boina surrada, coça a calva com a unha exageradamente comprida e suja do dedo mindinho, e murmura:

-       Tenho de limpar este moio...

E decide:

-       Não passa de hoje!

Após o almoço atrela a junta de vacas castanhas ao trilho. A Cabana e a Bonita caminham pachorrentamente debaixo de um sol abrasador para a eirada. À chegada aproveitam para abocanhar à socapa um punhado de palha com uma fava à mistura. O trilho salta por cima do colmo encrespado por tardes bravias de calor. A aragem é mansa mas suficiente para limpar a semente já despida da vagem. Na infusa que repousa debaixo duma velha oliveira, a água do poço há muito que deixou de ser fresca. Mas mesmo assim escorre pela goela sedenta. Bastam meia dúzia de sacas para recolherem por fim o produto de umas horas de trabalho. No horizonte pendura-se finalmente uma cor escarlate anunciando um futuro dia de calor.

Zeferino descarrega os sacos para dentro da loja fresca quando aparece a mulher trazendo numa pequena cesta um rosário de ovos. Pergunta-lhe o homem:

-       Maria, já deste de comer aos porcos? Lembra-te que a marrã está prenha..

-       Oh home’. Não te preocupes que eu tratei-os logo de manhã pela fresca e até já pus o caldeiro com a água para amanhã ao pé da janela do nosso quarto. Se lá fores, à cortelha leva-o que aquilo já pesa.

Mas aquele não leva o caldeiro com a água. Esquece-se...

A noite vai tombando sobre o lugar singelo. Bule por entre as copas ressequidas das árvores um vento que traz mais calor. Zeferino cansado deita-se, trajando unicamente umas velhas ceroulas de linho. Na cama não procura cobertor, nem lençol, busca sim a Maria Lucinda. Esta recebe-o como de costume, sem emoção. A brisa que penetra pela janela, embala um fresco cortinado de pano cru. E assim o casal vai adormecendo numa calma própria de quem viveu mais um dia de canseiras.

Já a noite está a meio quando de súbito Bogas acorda assustado. Parece-lhe ouvir um ruído estranho. Maneia um pouco a cabeça de forma a escutar melhor. Na verdade há qualquer coisa lá fora que subitamente atemoriza o homem. Primeiro o arrastar de um objecto metálico como de uma corrente se trate, depois o caminhar lento mas decidido pelo carreiro de terra batida, que ele tão bem conhece e que dá acesso à casa. Zeferino recosta-se na cama para confirmar o que ouve. Não sabe nem imagina o que é, mas treme violentamente. Pelo pensamento do homem perpassam agora, à velocidade de um raio, um ror de histórias tenebrosas e macabras ouvidas dos antigos, onde o Diabo era quase sempre a personagem principal.  Ao seu lado Maria Lucinda ronca profundamente:

-       Mulher, oh mulher... – chama-a, sacudindo o corpo inerte e adormecido.

-       Hã, qui’é home... – acorda estremunhada.

-       Anda por aí uma alma penada – sussurra o homem.

-       Oh desgraçado cala-te... – e benzendo-se, continua – tu estás maluco. Olha que com isso não se brinca...

-       Ai estou a brincar. Então cala-te e escuta... – E silencia-se para que a mulher possa também sentir o ruído que se aproxima.

O som está cada vez mais próximo. Parece estar agora ali por detrás da janela aberta. Maria atemorizada mas lúcida, aconselha:

-       Fecha a janela, depressa!

-       Boa ideia – responde. E num salto sai da cama de ferro, herança dos pais, e chega-se à abertura.

Mas algo de bizarro acontece então. Quando cuidadosamente se aproxima da fresta, outro vulto faz o mesmo, mas do lado de fora. A noite está de lua nova e a luz nocturna é muito ténue e assim assustam-se mutuamente. A figura de fora enfia então a cabeça no aro do caldeiro com água, que Zeferino havia esquecido, levanta-o com força e arremessa-o contra a parede de fora do quarto aspergindo a água ao redor. Assustado com a turbulência do momento, foge levando atrás de si uma miríade de ruídos e objectos tombados. Por seu lado Zeferino, após a molha salta num pulo para a cama. Treme como varas verdes e mesmo molhado tapa-se com o único lençol que tem, deixando por sua vez a mulher destapada. Esta, amedrontada com a frenética sequência de acontecimentos e vendo-se sem lençol, vai puxando para si a cobertura. Esta foge agora do marido e durante breves instantes o casal briga por um pedaço de linho. Ora puxa para cá, ora puxa para lá... Finalmente serenam enquanto escutam as correntes a serem arrastadas, cada vez mais longe. A noite sossega por fim, mas os corações crentes dos aldeões ainda vibram de terror e é com dificuldade que voltam a adormecer.

No dia seguinte o patrão levanta-se muito mais tarde do que é usual. O medo da noite ainda enubla o seu coração. Serenamente durante o dia a calma regressa ao espírito do lar. Entre marido e mulher nenhuma palavra é trocada sobre os últimos acontecimentos. Paira na atmosfera caseira um acordo que ninguém pretende quebrar.

Após o almoço Zeferino vai cortar um pouco de feno para o gado junto a uma pequena barragem, quando lhe aparece, puxando um velho jerico, o Chico do Canal.

-       Viva lá home’...

-       Eh lá rapaz... – responde o outro, sem vontade para imensos diálogos.

Chico pára para dois dedos de conversa. É conhecido na aldeia pela sua tagarelice. E assim:

-       Sabe ti’Bogas, ando há horas à procura deste animal. Soltou-se ontem à tarde na minha Giesteira e fui achá-lo naquilo que é do Inácio Costa. Ainda trazia a corrente atrás. Deve ter-se solto durante a noite, foi o que foi.

O Zeferino enrubesce. Primeiro de espanto, depois de raiva e finalmente esboça um sorriso. Então a alma penada que tanto amedrontara o casal não fora mais que um simpático asno.

Logo que se liberta do Chico, regressa a casa num passo estugado. Toda a sequência de acontecimentos passa agora pela sua mente e a única coisa que é capaz de fazer é rir.

Quando Lucinda dá de caras com o marido, logo lhe nota um ar alegre quase feliz. Prontamente questiona:

-       Qu’é que se passa home’? Já pregaste alguma. Com essa cara só pode ser.

Finalmente conta a história do burro que se desprendera e que tanto os assustara naquela noite. A mulher nem quer crer. Senta-se na borda duma velha pia que agora serve de canteiro floral, cruza os braços no regaço e ri, ri, ri...

Prosa/Poema para um fim de tarde

Daqui deste alto, tão alto que quase toco as estrelas,

Vejo ao fundo a linha de horizonte, ténue

Onde singelos pontos brancos tocam o céu.

 

Daqui deste alto, tão alto, que quase abraço a Lua,

Vejo alvas e serenas almofadas,

onde o sol, por fim, irá repousar.


Daqui deste alto, tão alto que quase me sinto voar

Vejo o condor, que em voos brandos e fatais,

Mira a sua presa perfeita e ingénua.


Daqui deste alto, tão alto que quase agarro o vento,

Vejo o verde da planície recortado por plúmbeos traços,

Alagar o vale de esperança primaveril.


Daqui deste alto, tão alto, há quem veja o mar,

Pode ser que sim…

Mas eu também não sei o que é o mar!

Contos Breves - O Natal de António - IV


António adorava os aromas do Natal. As fragrâncias que vagueavam pelas ruas frias e estreitas da aldeia apaziguavam-lhe o espírito rebelde, pois evocavam memórias da mãe já falecida e que por aquela época sempre arrancava à labuta da lida da casa uns momentos para preparar uns doces. As filhós e as rabanadas eram os seus favoritos. Mas as velhoses e arroz-doce também tinham a honra de pertencerem a uma consoada austera.
Porém todas essas essências não passavam de uma ténue referência a um tempo pobre mas feliz, em que o pai não se embebedava nem lhe batia. Recordava-se dos irmãos que brigavam ruidosamente junto à cortelha dos porcos, obrigando a mãe a constantes ralhetes. Vinha-lhe à ideia um grande cão, de nome Tejo, que ladrava constantemente e um burro que zurrava com fome. Lembrava-se da cama compartilhada com dois irmãos mais velhos e das noites de temporal em que ninguém dormia porque a água da chuva caía a rodos no interior do quarto.
Após a morte da mãe, ainda rapazola, saiu de casa fugindo assim aos assomos violentos dum pai que se tornara demasiado bêbado. Encontrou guarida no solar do Monte Penedo, onde a dona Inocência, senhora de boas famílias o recebeu de braços abertos. Mas o gaiato também aqui não assentou arraiais e procurou refúgio na casa da irmã mais velha. Esta, por sua vez, sofria já as agruras de cinco filhos e depressa o expulsou do lar. Acabou, finalmente, por ir parar ao Casal Grande onde se apresentou como pastor. O patrão, homem rude e de maneiras pouco polidas mas de coração aberto, aceitou o moço como guardador de gado e entregou-lhe um pequeno rebanho de trinta cabeças que ele cumpriu com competência, ajudado por dois fiéis rafeiros.
Durante uma dúzia de anos o rapaz cresceu e viu crescer muitas cabeças de gado. Calcorreava dias a fio os caminhos de montes e charnecas e conhecia agora como ninguém todos os perfumes do campo.
Todavia, de todos o que mais gostava era o da aldeia em época de Natal. Deitava-se no monte de feno que lhe servia de esteira e iluminado pela lua que, por entre duas telhas partidas invadia o casebre, sentia o balir acolhedor do rebanho. Semicerrava os olhos e tentava adivinhar, nos cheiros que pairavam no ar, o sabor real das iguarias.
Mas o seu Natal não era só feito de guloseimas que nunca verdadeiramente saboreara. O seu espírito deambulava pelas encostas à procura de novas essências. O cheiro a terra molhada após uma chuva bem forte, o travo da lenha de oliveira velha que ardia num fogo crepitante. O aroma de uma adega, onde no local mais escuro dormitava o mais alegre dos espíritos. O odor de um borrego assado pela tia Tonha naquele forno antigo. O agrado de uns grelos mais cozidos pela geada que pelo próprio lume. O perfume perfeito do pão acabado de cozer. O azeite, o eucalipto, o medronho, o alecrim, o pinheiro, os figos, todos emanavam fragrâncias diferentes que António distinguia como ninguém. E o leite que ele ordenhava das ovelhas com a perícia de muitos anos tinha também a doçura quente de vida.
Por altura do Natal o jovem pastor costumava cruzar o povo. Durante o restante ano fugia do centro evitando assim perguntas e olhares inquiridores. Mas em vésperas de festa natalícia, não resistia... Atravessava a ponte velha e o casario, num passo calmo e sereno, absorvendo assim os imensos aromas festivos.
Certo dia cruzou-se na rua com o Lourenço Fontinha, regedor da aldeia havia muitos anos. Quando reparou no moço, guardador de gado, mirou-o de cima a baixo e reconhecendo o filho do seu já falecido grande amigo João Cebola, saudou-o:
-    Viva António! Como estás? – e estendeu-lhe a mão para um cumprimento.
    O pastor olhou a mão alva, comparou-a com a sua e descobrindo a diferença, encolheu o braço para trás como que por receio, dizendo entre dentes:
-    B’tarde...
    O Regedor não retirou a mão e insistiu:
-    Aperta aí, que eu não tenho pejo em te cumprimentar. As tuas mãos podem estar sujas e calejadas mas são honradas.
    António não resistiu mais e estendeu, ainda que a medo, a mão ainda jovem mas bem vincada pelo cajado de castanho feito. A do Regedor estava fria e macia como o próprio dia. Contudo o aperto fora firme e franco.
-    Que tens feito, rapaz? – Perguntou o Fontinha.
-    Ando pro’í... – respondeu envergonhado o pastor, procurando no chão a resposta.
-    Já percebi, não gostas de falar! Pronto, vai à tua vida que eu não te quero empatar. Mas se alguma vez precisares de mim sabes onde moro, está bem! – Convidou o regedor.
-    Sim s’hor... – e maneou humildemente a cabeça como de uma vénia se tratasse.
-    Então fica combinado! – Assentiu o Regedor.
    O moço partiu então em passo apressado em busca do gado, que fora caminhando pachorrentamente a caminho do velho curral. Descobriu que aquele amigo do seu pai também exalava um aroma. Cheirava a algo distinto das plantas serranas ou dos fumos da aldeia. Nem se aproximava aos odores dos lavradores que após um dia a cavar de sol a sol, destilavam.
    Bem perto do dia de Natal, António voltou a romper pelo interior da aldeia. Desta vez não havia alternativa. Nos últimos dias chovera abundantemente e a corrente da ribeira levava demasiada força para se poder atravessar a vau.
    O dia, que fora tempestuoso, lançava finalmente sobre os corpos arrepiados, um pouco de luz e cor. O vento acalmara, mas em contrapartida o frio regressara. Ao longe ouvia-se o som metálico dos chocalhos das ovelhas e havia quem à porta da taberna previsse.
-    Vem aí o Tó Cebola. Este rapaz parece um bicho. Não se dá com ninguém...
    Mas o pastor não ouvia os comentários e seguia o seu destino aproveitando para absorver o mais possível os cheiros exuberantes da aldeia.
    Inesperadamente uma porta abriu-se, dando passagem a uma linda rapariga, de longos cabelos dourados e olhos cor de esmeralda. Assustada mas não intimidada com o rebanho que não contava, quase tombou no terreno granítico. Sentindo a presença do rapaz depressa se recompôs e ajeitando o vestido cor-de-rosa que lhe caía perfeitamente no corpo formoso, olhou de frente o pastor e cumprimentou:
-    Boa tarde!
    A sua voz era cristalina. Assemelhava-se ao marulhar melancólico das águas da ribeira. António jamais observara em toda a sua vida, rapariga tão bonita e esbelta. Lembrou-se de um livro que vira certa vez em casa da D. Inocência onde numa iluminura surgia uma figura com uma fisionomia semelhante. Educadamente respondeu entre dentes:
-    B’tarde... – respondeu António.
    E enquanto a menina seguia com enlevo o seu caminho, o pastor olhou-a de trás e fixou outro aroma. Pairava agora um perfume invulgar entre o doce e o acre. Assemelhava-se a um jardim de rosas. Curiosamente o aroma nem lhe surgia estranho... Regressou ao caminho procurando na sua fértil memória discernir aquela fragrância. A fragrância pura de uma mulher...
    Os dias escoaram como de água na palma das mãos e com eles o Natal chegou e partiu, tal como o Ano Bom. António convidado para cear na noite de consoada em casa do patrão recusou, preferindo levar um naco de broa e de presunto e alguns doces, acompanhado de uma garrafa de vinho, para o seu monte de feno e aí celebrar a festa natalícia.
    Mãos entrelaçadas na nuca e tendo os dois fiéis amigos a seu lado, António revolveu a sua memória em busca dos cheiros dos últimos dias. A ti’Belmira fritara rabanadas, a ti’Leonor optara por filhós e assara um pouco de lombo, em casa da família Teodósio havia borrego, de certeza... Como ele admirava este jogo quase infantil que ele próprio concebera...
    Perdurava ainda aquela essência da jovem bonita que ele não conseguia apagar nem esquecer. Donde seria que conhecia aquele aroma? A dúvida era tão inquietante e irritante que nem dormia... Havia algumas semanas que vivia aquele martírio.
    A aurora surgia no horizonte rasgada em tons laranja, por detrás da encosta verdejante salpicada aqui e ali por tufos de carrascos e medronheiros. António ergueu-se da costumada esteira, onde apenas algumas velhas mantas serviam do coberta, dirigiu-se à ribeira que serpenteava ao fundo da fazenda, lavar as mãos e o rosto, pois estava na hora de comer uma bucha e da ordenha. A manhã estava muito fria e perto da corrente agachava-se um pouco de neblina alva. O pastor lavou as mãos encieiradas pelo frio e pela água gelada e passou-as pela cara mal barbeada. Quando os seus olhos repousaram novamente nas mãos ora límpidas, mirou-as com surpresa e num ápice fez-se luz no seu espírito conturbado. Adivinhara finalmente donde conhecia a essência que tanto o atormentava...
    ... Era a mesma do Regedor.