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José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

José da Xã

Escrever mesmo que a mão me doa.

Saudade

Desbravo estas poucas palavras

Que elas matam as saudades de ti.

São folhas levadas pela brisa,

Repousando no teu terno regaço.

 

As tuas lembranças são-me tão caras

E os teus lábios sedosos tão fiéis.

Que os sinto quentes, fervorosos,

Como me tocassem neste instante.

 

Há no teu sorriso transparente

O fogo eterno da paixão bravia,

e do amor feroz que rasgámos,

em longas noites de lua cheia.

 

Quando sinto só, sei lembrar-te:

o olhar vivo, os lábios sedosos,

o corpo frágil, o cabelo em rebuliço

a vida envolta num pensamento.

 

Depois… depois quase feliz,

Respiro enfim, um ar perfumado…

É o vento que me traz o teu aroma…

A mar…e amar a terra fecunda…

Contos Breves - A Pedra Quente - III

    Maria Clementina ou Tininha como os mais chegados lhe gostavam de chamar era a mulher mais bonita da aldeia. Os seus longos cabelos negros caíam-lhe pelas costas como de um xaile se tratasse. Os olhos, duas azeitonas maduras e a tez morena da pele concorriam com uma qualquer cigana nómada. Por detrás do seu sorriso aberto e franco surgiam os dentes alvos e perfeitos. Adorava a vida do campo e sobretudo as ceifas. Porém era mulher para pegar na guincha e escavar toda a horta se isso fosse necessário.
    Uma viuvez precoce deixara Manuel Funcho com três filhos bem pequenos para criar e educar. A mais nova tinha apenas alguns meses de vida quando ficou órfã, sendo assim entregue pelo pai à avó materna que a criou como da própria filha se tratasse.
    Os anos correram com a rapidez da juventude, mas com imensas ralações para os avós da neta mais nova. Esta ainda muito jovem enamorou-se perdidamente por um morgado da vila. Homem mais velho e conhecedor da vida, dando ares de galã e sussurrando palavras quentes, em breve tomou a cachopa como sua mulher, numa cerimónia discreta.
    Contudo em breves meses de matrimónio, a bonita rapariga percebeu que o agora marido só a pretendera para sua esposa como se de uma cabeça de gado se tratasse e em breve passou a carregar para cima da jovem fidalga algum desdém e considerável indiferença. Mas a este fidalgo estava reservado uma impensável queda de um cavalo alazão e que lhe provocou a morte repentina e prematura. Assim de um momento para o outro Tininha passou a ser tratada por dona Clementina e as vastas terras do marido passaram para a sua posse.
    Nas veias da viúva corria, no entanto, sangue fervilhante de novas aventuras amorosas que rapidamente veio ao de cima. E um ano após o falecimento do marido, a fidalga casava novamente. Desta vez com o José Gaio, um quarentão solteiro, enquanto a noiva pouco mais tinha que vinte anos mas de um espírito bondoso e afável e sem saber como caíra de amores pela nobre e esbelta senhora.
    Porém o casamento da fidalga teve momentos impróprios para a ocasião. Esta, durante a cerimónia e duma formalidade indiscreta não desviou o olhar do padre, que era novo e galante, havendo arribado à aldeia poucas semanas antes. Todavia arrastava consigo a fama e o proveito de pecar na carne e rapidamente percebeu que a noiva o contemplava gulosamente. Assim, na primeira confissão à recém-casada aproveitou para demonstrar os seus dotes de mulherengo. E num ápice Clementina passou a visitar o novo padre com alguma frequência. Demasiado, segundo opinião de algumas mulheres mais velhas e beatas.
    Certo dia o marido, naturalmente admirado com as constantes saídas da esposa perguntou-lhe:
-    Onde vais, Maria?
-    Vou a casa do Prior, confessar-me – respondeu sem hesitar.
    Tininha era esperta e sabida. De tal forma que sempre que vinha do leito do padre e antes de chegar a casa, sentava-se numa pedra granítica estrategicamente posta à entrada do quintal e dessa maneira arrefecia as partes mais quentes para que o marido jamais desconfiasse das suas aventuras e acima de tudo da traição.
    Porém certa noite na taberna, quando o vinho falou mais que a cabeça, José Gaio foi avisado pelos amigos, que a sua mulher visitava com frequência a casa do Padre e que este tinha fama e proveito de garanhão.
    Alertado, o marido enganado, empreendeu a jornada de espiar a esposa para ter a certeza que esta o traía. E assim, uma manhã, comunicou à mulher:
-    Maria arranja-me aí um farnel que eu vou à vila comprar semente. Só devo chegar à noitinha.
     A mulher preparou a merenda do homem num instante e entregou-a acompanhada de falsas palavras:
-    Homem vê se não vens tarde. É que eu tenho medo de ficar aqui sozinha.
-    Deixa, que eu venho, logo que me avie – devolveu José a mentira.
    Fez-se ao caminho, acompanhado de duas burras lanzudas. Quando o monte tapou a aldeia, José cortou repentinamente por uma vereda que seguia até uma propriedade que ficava por detrás do seu enorme quintal. Aí chegado após atravessar lameiros e hortas, saltar regueiras e muros, aproximou-se cuidadosamente das traseiras da sua casa e vigiou os futuros acontecimentos.
    Por volta da hora do almoço apercebeu-se de que a mulher saía, levando consigo um escrinho à cabeça. José, cautelosamente, seguiu-a à distância e asseverou que a esposa entrara na casa do padre. Este desfrutava duma pequena habitação rodeada por um jardim bem cuidado e de fácil acesso. O marido introduziu-se por fim no quintal de forma sorrateira e confirmou, para seu imenso desgosto, por entre cortinas de rendas, a traição da mulher. O primeiro impulso foi irromper pela casa dentro e apanhá-los em flagrante, mas naquele momento a cabeça foi mais serena, do que o coração alvoraçado pretendia e aguardou a altura certa para dar uma lição à traidora.
    Quando Maria Clementina regressou a casa e se sentou no seu costumado lugar reparou que as burras que o marido levara para a vila já pastavam pachorrentamente no lameiro. Apressou o passo e entrou em casa onde encontrou o marido à mesa tasquinhando um pouco de fogaça com um naco de queijo. Espantada com a rapidez da jornada do homem, perguntou:
-    Então Zé, o que é que aconteceu para vires tão cedo? Não chegaste a ir à vila? - o coração batia tão violentamente, com medo que o marido descobrisse a traição, que quase nem respirava.
-    Não fui, não. A meio do caminho encontrei o Manuel da Tia que regressava de lá e avisou-me que as sementes ainda não tinham chegado, só para a semana...
Acrescentou então, mentindo:
-    Mas só cheguei há pouco.
    A consorte respirou fundo e acalmou, finalmente. Nos dias seguintes reservou-se somente para o seu marido, fazendo a lida da casa, tratando da criação, bordando um lençol de linho branco, aquecendo a cama e o corpo do companheiro.
    Certo tarde estava José comendo um botelo bem temperado, quando ouviu uma voz na rua, cantarolando:
-    Passarinho trigueiro salta cá para fora...
    Clementina conheceu a voz, corou e escondeu a face não fosse o marido vê-la assim tão rubra. Gaio assomou à frente da casa e percebeu que as palavras tinham a mulher como destinatária. Após o almoço esta pareceu mais nervosa do que o costume. Até que arranjou forças e disse ao parceiro:
-    Homem! Não sei que diabo tenho hoje. Vou à capela rezar e se estiver o padre, vou-me confessar.
-    Sim, vai, vai. Está um frio danado e não me apetece sair. Vou ficar por aqui, ao lume.
    E assim Maria regressou aos seus encontros amorosos com o padre. Todavia, ao contrário do que havia dito, José foi ao quintal e com perícia retirou a pedra que servia de assento à mulher quando vinha do padre e levou-a para a lareira onde a deixou aquecer ao lume forte e intenso. Quando por entre as cortinas vislumbrou a silhueta feminina e esbelta da esposa, subindo o carreiro de acesso a casa, foi numa correria colocar a pedra perfeitamente aquecida no lugar devido. E de tal forma estava requentada que quando a mulher se sentou na pedra, deu um salto repentino gritando de dor. Num esforço quase titânico reprimiu mais gritos quando penetrou na cozinha. O marido continuava sentado ao lume, remexendo umas brasas com a tenaz negra, como se nada tivesse ouvido. Tininha olhou-o primeiro com raiva, depois com ódio e finalmente com doçura. Sentia dolorosamente na pele o preço da traição e percebeu que o marido conhecia as suas aventuras amorosas com o jovem clérigo. Finalmente acalmou e recolheu ao quarto, onde tentou curar as feridas.
    Dias depois regressou novamente a cantoria à porta de casa. O padre sem dar conta que José se encontrava por perto trovava com entoação:
-    Passarinho trigueiro salta cá para fora...
    Responde-lhe então, para grande espanto e atrapalhação do pároco, José Gaio, enquanto Clementina cortando umas rodelachas de cebola deixava que as lágrimas lhe corressem pela face morena, não sabendo, contudo, se eram do vegetal ou da alma:
-    Tem as nalgas esturradas, não pode ir agora...

 

 

 

Publicado a primeira vez em 1 de Agosto de 2001 no O Concelho de Vila Velha de Rodão

Publicado a segunda vez em 1 de Novembro de 2001 no O Arrife



Contos Breves - A Lição do Padre Cosme - II

Uma mão cheia de anos haviam-se já esfumado na interminável tábua da vida, desde que o Manuel Carriço e a Inácia Morgado exprimiram, perante o padre Cosme, o firme propósito de se amarem e respeitarem, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença e até que a morte os separasse. Fora uma boda de categoria onde nada faltara. Desde o borrego ao galo, do porco ao coelho, do tinto ao branco, tudo correra à farta. Havia ainda quem se lembrasse dessa festança de três dias.
- Nunca houve aqui nas redondezas boda com'a do Manel e da Inácia. Aquilo é que foi comer, buer e bailar até de manhã.
Porém nos últimos tempos era frequente o homem pernoitar fora de casa. A mulher na sua conjugal ingenuidade acreditava que algo deveras importante levava aquele a ausentar-se durante toda a noite. Mas certo dia já seriamente intrigada, questionou o marido de um modo que não admitia recurso:
- Olha lá home! Qu'é tu fazes de noite, que agora já nem vens dormir a casa?
Carriço desculpava-se:
- Na' vês que tenho de guardar as favas do raio dos coelhos? ‘Inda uma destas noites cacei dois...
- E o qu'é feito deles? - tornou a companheira, vincadamente desconfiada.

O homem sentiu-se por breves instantes embaraçado, mas logo de seguida respirou fundo e manifestando uma aparente tranquilidade, justificou-se:
- Sei lá, já não ma’lembra. Enterrei-os... Estavam doentes.
- E deves lá ter andado com alguma candeia? Assim de noite... – insistiu Inácia já descrente das desculpas apresentadas pelo Manuel..
Apertado pelo interrogatório, o marido desembaraçou-se mal da conversa:
- Ora deixa-me, que tenho que fazer.
Pela primeira vez, Inácia ficou ciente de que o marido lhe escondia qualquer coisa. Lançou-se então em busca da razão que obrigava o companheiro a dormir fora do lar tantas vezes. Uma pergunta inocente na loja, um olhar furtivo mas traidor na fonte, uma dúvida dissipada na horta e por fim a resposta indesejável e fatal: havia outra mulher. Era sabido que Manuel, quando moço, sempre fora dado a galantearias. Quase todas as raparigas solteiras do seu tempo haviam escutado da sua boca doces promessas de um amor eterno. Chegou mesmo ao atrevimento de pedir a filha do boticário em casamento quando aquela visitara o pai viúvo, por altura das férias grandes, vinda da cidade onde estudava. A resposta chegou como de costume célere através de uns pares de tabefes assentes pelo boticário, que era naturalmente, muito escrupuloso com a filha.
Entretanto o matrimónio precoce refreara-lhe de alguma forma as escapadas amorosas. Todavia foi sol de pouca dura, pois um par de anos mais tarde o lavrador retornou à conquista de novos romances e, segundo constava, com extraordinário sucesso.
A mulher, perante as recentes infidelidades e traições do marido, lançou-lhe um ataque cerrado e feroz:
- Com que então coelhos nas favas, meu grande patife! E à outra, hem? Que desculpa lhe dás quando ficas cá em casa?
O adúltero fez-se de novas, desentendeu:
- Outra? Qual outra? De qu'é que’tás praí a falar?
- Estou a falar daquela com quem passas as noites enquanto eu te julgo a guardar o faval dos inocentes dos coelhos.
O marido negava. Dizia que a mulher cismava sem razão que tudo não passava de uma enorme mentira. E com vozes alteradas e respostas rudes, azedava-se a conversa acabando em pranto e em cerrada bebedeira.
Incapaz de refrear as suas paixões e esgotado de consecutivas zangas e constantes lamúrias, o homem decidiu pôr termo às contínuas discussões conjugais, para ambos insustentáveis. Procurou por isso o padre Cosme para que este o ajudasse na resolução da demanda. Achou-o em casa, cuidando do pequeno jardim, onde as rosas vermelhas e amarelas tinham o seu paraíso. O pároco admirou-se com a visita inesperada do camponês, pouco dado às coisas da igreja pois nunca o vira numa missa e jamais lhe confessara qualquer pecado. Contudo, convidou-o a entrar. A tarde estava solarenga mas fria. Um vento sibilante de norte cortava as roupas e penetrava nos corpos, qual gume afiado de matador. Já sentado, perto da lareira onde ardia um fogo denso e acolhedor, o camponês começou:
- O Senhor prior sabe... – e calou-se enquanto coçava nervosamente a nuca ainda farta e em desalinho.
Após uma extensa pausa, o padre atalhou:
- Ó homem, desembucha!
- Bom, lá vai. Eu casei vai para mais de dez anos, como vossemecê sabe e agora queria... queria... – gaguejou e a medo lá foi desabafando - ...descasar.
- Querias o quê, homem? - perguntou, surpreendido o pároco.
- Queria descasar...
- Descasar? Mas que conversa é essa? – insistiu o cura.
- Pois, descasar, separar-me - reafirmou o Manuel agora mais à vontade - é que nos últimos tempos eu e a minha mulher temo-nos desavindo todos os dias. Ela anda lá com umas desconfianças e eu já não a posso ouvir. Todos os dias me azucrina os ouvidos.
O padre tentou amenizar a contenda:
- Mas num casal novo como vocês é perfeitamente natural que hajam desentendimentos. Mas isso não é razão para ficares nesse estado.
Um silêncio profundo invadiu a sala. Finalmente:
- E provavelmente ela terá alguma razão nas desconfianças – lembrou o padre, bem conhecedor do espírito vadio do camponês.
- O senhor prior pode ter muita razão naquilo que diz, mas eu quero descasar e pronto... - teimou.
- Mas ó criatura de Deus, isso agora é impossível - interrompeu o padre.
- Impossível porquê? E só dar o dito por não dito ...
- Porque o que Deus uniu, jamais pode ser separado. Só a morte...
- Mas não foi Deus que me casou. Foi vossemecê.
Nada a fazer. O peralta tinha fama de teimoso que nem asno e quando cismava numa ideia, não desistia enquanto não a via concretizada. Nem justificações fundamentadas nem apelos humildes conseguiam contrariar o pensamento do Manuel, que batalhava:
- Mas ó senhor prior, arranje lá isso com Deus e separe-nos antes qu'eu dê cabo da mulher. É um favor que me faz.
 A estas frontais ameaças o pároco acabou por aceder e respondeu:
- Bem, bem, já que as coisas estão nesse ponto, o melhor é eu mesmo ir à cidade falar ao senhor bispo para saber como vou resolver este teu problema. Mas demoro-me para aí uma semana. Ir e vir...
O Manuel assentiu finalmente na proposta do padre e regressou a casa bem mais contente. Nessa noite nem saiu.
Por sua vez o pároco cerrou portas e janelas e partiu então para a cidade, não em busca do bispo mas de alguns amigos que o ajudariam na ideia que nele germinava, tentando colocar um fim nos azedumes conjugais e limpar da cabeça do marido infiel, o desejo de acabar com o casamento de uma década.
Ao fim de quase uma semana o vigário reapareceu. Procurou sem delongas o gaiteiro, encontrando-o de enxada na mão, ferindo a terra com vigor. Aproximou-se devagar sem que o outro se apercebesse da presença do cura, tão absorto estava na sua labuta. Já perto, cumprimentou, finalmente:
- Bom dia!
- Olha o senhor prior! Muito bom dia! - e, chegando-se para junto do padre, saudou-o efusivamente, requerendo:
- A sua benção...
- Que Deus te abençoe, meu filho. Então rapaz ainda pensas em separar-te da tua mulher?
- Claro! Logo que vossemecê consentir.
- Então vamos lá a saber quando é que podes aparecer na igreja com ela?
- Agora mesmo, senhor prior – disse, entusiasmado, o lavrador.
- Hoje não, que preciso de repousar da jornada, mas amanhã bem pela fresca apareçam na igreja que depois conversamos com calma, de jeito a resolvermos a contento de todos, essa demanada.
- Com certeza...
No dia seguinte a manhã nasceu muito fria mas de céu anilado. Pairava no ar um cheiro a terra fresca e das folhas côncavas escorriam cristalinas gotas de água, ténues restos de uma noite chuvosa. Aqui e além os cães ladravam, respondendo a alguns companheiros mais distantes. Dois vultos surgiram então no fundo da calçada que desembocava no largo da Igreja. O casal desavindo galgava a rua em passos desembaraçados, surdos a qualquer som da aldeia.
A meio da subida cruzaram-se com o Zé da Mouca que puxava pacientemente pela arreata uma vaca leiteira com destino ao lameiro de fora.
- Bom dia – cumprimentou.
- Bom dia - respondeu o outro sem se deter.
O bom do Zé olhou ainda para trás, admirado com a indiferença do amigo, mas após um breve encolher de ombros recolheu aos seus pensamentos e ao caminho.
Ao chegar à porta da igreja o casal estancou. Manuel julgou-a ainda encerrada mas quando se aproximou para bater esta rangeu, deixando entrever o padre que, de paramentos vestidos, os convidou a entrar. O camponês tirou a boina e persignou-se antes de penetrar naquele ambiente soturno de igreja. Durante toda a sua vida, raras haviam sido as vezes que ultrapassara aquele portal e curiosamente a última que se recordava fora no seu próprio casamento. Inácia seguiu o marido num passo pequeno e silencioso repetindo o gesto cristão do seu homem. Perto do altar pararam.
-    Aqui estamos, senhor prior - disse o homem numa voz tão baixa que mal se percebia. Nas mãos, a boina velha e surrada era nervosamente enrodilhada.
-    Ora muito bem. Ajoelhem-se por favor e dêem as mãos – ordenou o padre Cosme.
    O Manuel e a Inácia assim fizeram, obedecendo ao pedido.
    De fundo da capela, por detrás dos círios apagados, surgiram então dois vultos desconhecidos que se aproximaram do casal. O padre avançou:
-    Estão aqui entre nós dois homens da minha inteira confiança e que eu trouxe da cidade para testemunhar este acontecimento.
E continuou:
-    Preciso agora que me prometam uma coisa.
-    Tudo o que o senhor quiser – atalhou logo o camponês.
-    Aconteça o que acontecer nunca vos podeis mexer. Prometem cumprir este meu desejo?
- Prometemos – respondeu o casal num coro perfeito sem, contudo entender muito bem a exigência.
Após a promessa o padre abriu uma Bíblia de capa negra e começou a ler um excerto do Evangelho. A determinada altura parou e, olhando para os dois homens que ladeavam o par, teceu um sinal quase imperceptível. Inesperadamente, os homens cascaram duas valentes pauladas nas costas do casal. O camponês levantou-se lesto para se fazer pagar da cacetada mas o padre interveio com autoridade:
-    Lembra-te do que prometeste.
-    Sim, senhor prior. Mas levar assim tareia não é justo – e voltou-se a ajoelhar ao lado da mulher. Esta chorava já. Não sabia se por vergonha ou por dor.
-    Meu filho, há que cumprir o que se promete, custe o que custar.
-    Sim senhor prior – aquiesceu o aldeão.
    Retomando o padre a leitura, nova paragem veio a suceder. Novo sinal e mais duas pauladas se abateram sobre os corpos do casal. Desta feita não houve qualquer reacção. A cena repetiu-se. Uma, duas, três, dez vezes, até que o lavrador ergueu a cabeça bem dorida e perguntou:
-    Ó senhor prior, quando é que acaba a cacetada? Já começo a estar farto de levar tareia. Não acha que é demais?
-    Este castigo só termina quando um de vocês morrer.
    Manuel apercebeu-se, finalmente, da artimanha arquitectada pelo padre e concluiu que nada podia fazer contra o casamento. Pegou bruscamente na mão da mulher e arrastou-a para fora da igreja, mas antes rematou uma decisão final:
-    Se só a morte me livra do casamento, antes vivo com a mulher com quem casei que defunto de pancada.
    Na igreja, o padre e os dois homens, ficaram a rir do final do enredo. O aldeão por sua vez aprendeu a lição e nunca mais ponderou o desejo de descasar e muito menos em desencantar novos romances.
    Viveu suficiente para ser pai e avô. E a todos relatou a sua história.

 

 

Publicado a primeira vez em 28/02/1986, no Espaço Vivo suplemento do Jornal de Almada, com o título "A Lição"

Publicado a segunda vez em 1/07/2002, no jornal O Concelho de Vila Velha de Rodão, sob o título actual

Contos Breves - Cinco Sentidos - I

Cheira a pão acabado de cozer.

A aurora estival abrandada por uma aragem leve qual sussurro, vai espreguiçando a luz de um novo dia por entre as oliveiras velhas de troncos esventrados por séculos de azeitonas. O sol doirado como a seara de trigo que balança melancolicamente em ondas serenas, surge silenciosamente por detrás da serra imponente e imperturbável. A passarada inicia o frenético corrupio em busca de comida para alimentar as bocas insaciáveis que povoam os ninhos, encravados entre os ramos de um velho sobreiro ou debaixo dos telhados centenários.

O povo, pacato e trabalhador de mãos gravadas de calos e peles rasgadas por anos de fadigas, vai abandonando o mundo caseiro, envolto em paredes de pedra e cal crua e fresca. Cada um marcado pelo seu destino, todos invariavelmente diferentes. É a terra que pretende charrua funda, o trigo que necessita de ceifa, o gado que deseja pasto novo e saboroso.

Por entre as pedras que o astro já aquece, serpenteiam répteis numa perseguição estranha e quantas vezes mortal. À sombra fresca de um imenso carrasco, uma coelha deita-se na cama atapetada de palha seca e macia e pare com à-vontade uma ninhada de láparos pequenos e indefesos. No topo duma parede de um antigo curral, destruída pela intempérie de anos, há um ninho de pintassilgo onde as novas crias traquinas, barulhentas e desatentas, lutam por um naco de comida, trazida pelos pais ciosos. Uma cobra castanha e matreira aguarda a oportunidade para vitimar os pequenos pássaros e assim saciar a fome. Porém pai e mãe numa chilraria constante conseguem corajosamente afugentar a serpente.

O sol cai agora quase a pique. No horizonte longínquo o ar quente cresce da terra como se esta fervesse. Os rodados das carroças que cruzam o casario num movimento repetido, rangem ao peso das cargas. Os cães ladram com vigor. Clamam pelo dono para a habitual carícia a que os habituou. Os gatos preguiçam molemente à sombra duma parede, após uma furtiva e rápida caça aos ratos. A osga, sempre atenta ao mundo que a rodeia, passeia-se no cimo de um marouço de pedras quentes. Uma aranha escala a teia há muito armada. Uma mosca distraída caiu no redil armadilhado e tenta energicamente fugir da renda harmoniosa e malevolamente tecida.

No chão as formigas formam singelos carreiros de ligeiros toques. Mostram-se irrequietas e operárias nunca parando na sua constante azáfama. A galeria subterrânea ainda não está repleta de mantimentos para o Inverno que se aproxima. A brisa fresca da manhã, foi rendida por um abafo quente penoso de respirar. Um burro preso a uma laranjeira de folhas enroladas de tamanha sede, espoja-se no chão tisnado. Patas ferradas para o ar, agita-se freneticamente enquanto contorce o resto do corpo. Tenta assim libertar-se de um número infindável de parasitas que o atentam. Uma nuvem de pó cor de terra eleva-se no ar. Uma vaca socorre-se da pia de pedra, escavada à força de ponteiro para matar a sede que lhe queima as entranhas.

A encosta íngreme, parcamente atapetada por um manto verde de erva, deixa-se invadir pelas borboletas e abelhas que volteiam ao redor das poucas flores ainda viçosas, num bailado tão invulgar quanto belo. Os pardais voam em bandos compactos e apoderam-se sempre que podem da eira, onde ainda brilham ao sol pequenos bagos de trigo e centeio ali em tempo debulhados.

Das chaminés negras e altaneiras exalam fumos de uma refeição bem temperada e regada com vinho acabado de sair do pipo, ainda fervilhante e espumoso. Para quebrar o silêncio, o grilo e a cigarra cantam ao desafio melodias distintas mas harmoniosas. No quintal amplo as galinhas cacarejam em costumada algazarra. Os patos acompanham-nas num grasnar rouco. Apenas o galo consegue impor algum respeito através do seu estridente vozeirão.

Dois cães bulham agora por uma cadela saída. Zaragata sem vítimas, com um vencido, que com a cauda entre as pernas, ganindo baixinho, parte em busca de outra companheira. Na terra de restolho do trigo já ceifado correm como doidos pequenos ratos. Procuram as aberturas dos seus covis, perdidas no meio do imenso chão.

Um rasgão natural e pouco profundo atravessa a aldeia. No meio, um fio de água nascida na serra vem serpenteando por entre pedras cinzentas e roliças. Uma rã coaxa à sombra de enormes freixos que ladeiam as margens da ribeira quase seca. Num silvado enorme, as amoras negras dão sabor às tartes. As papoilas rubras de calor prestam vida e cor à paisagem crestada. Debaixo de um pinheiro manso, semeiam-se pinhas secas e abertas. De quando em vez desprende-se mais uma que cai pesada no chão macio por caruma de muitos anos. O dia caminha para o seu fim, dando oportunidade à noite pacata. Talvez!

Todavia na amoreira gigantesca, os pardais recolhem-se num conclave nocturno. A chilreada é infernal. As abelhas regressam aos enxames e colmeias. Tudo o que foi movimento durante o dia quente, pretende agora o merecido descanso. No ninho, os pais pintassilgos salvaram mais uma vez as crias. Provavelmente no dia seguinte nova batalha surgirá.

A noite cai enfim numa enganadora pacatez. É a vez dos pirilampos darem luz aos caminhos sinuosos. A Lua surge tristonha, tímida. Ouvem-se ralos, cigarras e grilos novamente ao despique. Parece que nada pára ao redor do casario adormecido. Um jumento zurra, ladra um cão logo seguido por outro em resposta. Umcuco ouve-se ao longe, parecendo querer acordar demasiado cedo os corpos fustigados. É a vez da raposa manhosa e sabida descer ao lugarejo. Conhece de sobra as capoeiras, geralmente cerradas. Mas a sorte dá-lhe acesso a uma, onde silenciosamente penetra e rouba. com incrível destreza, uma galinha adormecida.

Pelas janelas de cantarias coloridas, as luzes vão-se extinguindo devagar. Parece que finalmente todo o povo já dorme em paz o sono dos justos.

Cheira a pão acabado de cozer.

Apresentação

Nem sei como começar...

Este nome apareceu quase como uma brincadeira, faz mais de trinta anos.

Serenamente fui mantendo este pseudónimo (que todos os meus amigos conhecem) durante todos estes anos.

Quero com este blog dar a conhecer um pouco da minha escrita de contos, poemas ou crónicas.

Escrever é para mim um prazer e quase uma terapia de fim de dia. Há quem vá para o ginásio ou pratique natação. Eu prefiro a escrita.

A qualidade dos meus textos é claramente muuuuito duvidosa, mas tenho muito prazer no que escrevo. E isso, neste momento, é o que me importa.

Os primeiros escritos serão contos de ficção, de cariz muito rural e que compilei faz tempo num só livro, a que dei o nome de "Contos Breves".

Intervalarei com alguma poesia e outros inéditos.

Os comentários, se os houver, serão sempre bem vindos mesmo que sejam para dizer mal...

Esta é a minha casa da escrita. E aqui vos recebo de abraços abertos!

Bem-hajam.