Contos Breves - A Lição do Padre Cosme - II
Uma mão cheia de anos haviam-se já esfumado na interminável tábua da vida, desde que o Manuel Carriço e a Inácia Morgado exprimiram, perante o padre Cosme, o firme propósito de se amarem e respeitarem, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença e até que a morte os separasse. Fora uma boda de categoria onde nada faltara. Desde o borrego ao galo, do porco ao coelho, do tinto ao branco, tudo correra à farta. Havia ainda quem se lembrasse dessa festança de três dias.
- Nunca houve aqui nas redondezas boda com'a do Manel e da Inácia. Aquilo é que foi comer, buer e bailar até de manhã.
Porém nos últimos tempos era frequente o homem pernoitar fora de casa. A mulher na sua conjugal ingenuidade acreditava que algo deveras importante levava aquele a ausentar-se durante toda a noite. Mas certo dia já seriamente intrigada, questionou o marido de um modo que não admitia recurso:
- Olha lá home! Qu'é tu fazes de noite, que agora já nem vens dormir a casa?
Carriço desculpava-se:
- Na' vês que tenho de guardar as favas do raio dos coelhos? ‘Inda uma destas noites cacei dois...
- E o qu'é feito deles? - tornou a companheira, vincadamente desconfiada.
O homem sentiu-se por breves instantes embaraçado, mas logo de seguida respirou fundo e manifestando uma aparente tranquilidade, justificou-se:
- Sei lá, já não ma’lembra. Enterrei-os... Estavam doentes.
- E deves lá ter andado com alguma candeia? Assim de noite... – insistiu Inácia já descrente das desculpas apresentadas pelo Manuel..
Apertado pelo interrogatório, o marido desembaraçou-se mal da conversa:
- Ora deixa-me, que tenho que fazer.
Pela primeira vez, Inácia ficou ciente de que o marido lhe escondia qualquer coisa. Lançou-se então em busca da razão que obrigava o companheiro a dormir fora do lar tantas vezes. Uma pergunta inocente na loja, um olhar furtivo mas traidor na fonte, uma dúvida dissipada na horta e por fim a resposta indesejável e fatal: havia outra mulher. Era sabido que Manuel, quando moço, sempre fora dado a galantearias. Quase todas as raparigas solteiras do seu tempo haviam escutado da sua boca doces promessas de um amor eterno. Chegou mesmo ao atrevimento de pedir a filha do boticário em casamento quando aquela visitara o pai viúvo, por altura das férias grandes, vinda da cidade onde estudava. A resposta chegou como de costume célere através de uns pares de tabefes assentes pelo boticário, que era naturalmente, muito escrupuloso com a filha.
Entretanto o matrimónio precoce refreara-lhe de alguma forma as escapadas amorosas. Todavia foi sol de pouca dura, pois um par de anos mais tarde o lavrador retornou à conquista de novos romances e, segundo constava, com extraordinário sucesso.
A mulher, perante as recentes infidelidades e traições do marido, lançou-lhe um ataque cerrado e feroz:
- Com que então coelhos nas favas, meu grande patife! E à outra, hem? Que desculpa lhe dás quando ficas cá em casa?
O adúltero fez-se de novas, desentendeu:
- Outra? Qual outra? De qu'é que’tás praí a falar?
- Estou a falar daquela com quem passas as noites enquanto eu te julgo a guardar o faval dos inocentes dos coelhos.
O marido negava. Dizia que a mulher cismava sem razão que tudo não passava de uma enorme mentira. E com vozes alteradas e respostas rudes, azedava-se a conversa acabando em pranto e em cerrada bebedeira.
Incapaz de refrear as suas paixões e esgotado de consecutivas zangas e constantes lamúrias, o homem decidiu pôr termo às contínuas discussões conjugais, para ambos insustentáveis. Procurou por isso o padre Cosme para que este o ajudasse na resolução da demanda. Achou-o em casa, cuidando do pequeno jardim, onde as rosas vermelhas e amarelas tinham o seu paraíso. O pároco admirou-se com a visita inesperada do camponês, pouco dado às coisas da igreja pois nunca o vira numa missa e jamais lhe confessara qualquer pecado. Contudo, convidou-o a entrar. A tarde estava solarenga mas fria. Um vento sibilante de norte cortava as roupas e penetrava nos corpos, qual gume afiado de matador. Já sentado, perto da lareira onde ardia um fogo denso e acolhedor, o camponês começou:
- O Senhor prior sabe... – e calou-se enquanto coçava nervosamente a nuca ainda farta e em desalinho.
Após uma extensa pausa, o padre atalhou:
- Ó homem, desembucha!
- Bom, lá vai. Eu casei vai para mais de dez anos, como vossemecê sabe e agora queria... queria... – gaguejou e a medo lá foi desabafando - ...descasar.
- Querias o quê, homem? - perguntou, surpreendido o pároco.
- Queria descasar...
- Descasar? Mas que conversa é essa? – insistiu o cura.
- Pois, descasar, separar-me - reafirmou o Manuel agora mais à vontade - é que nos últimos tempos eu e a minha mulher temo-nos desavindo todos os dias. Ela anda lá com umas desconfianças e eu já não a posso ouvir. Todos os dias me azucrina os ouvidos.
O padre tentou amenizar a contenda:
- Mas num casal novo como vocês é perfeitamente natural que hajam desentendimentos. Mas isso não é razão para ficares nesse estado.
Um silêncio profundo invadiu a sala. Finalmente:
- E provavelmente ela terá alguma razão nas desconfianças – lembrou o padre, bem conhecedor do espírito vadio do camponês.
- O senhor prior pode ter muita razão naquilo que diz, mas eu quero descasar e pronto... - teimou.
- Mas ó criatura de Deus, isso agora é impossível - interrompeu o padre.
- Impossível porquê? E só dar o dito por não dito ...
- Porque o que Deus uniu, jamais pode ser separado. Só a morte...
- Mas não foi Deus que me casou. Foi vossemecê.
Nada a fazer. O peralta tinha fama de teimoso que nem asno e quando cismava numa ideia, não desistia enquanto não a via concretizada. Nem justificações fundamentadas nem apelos humildes conseguiam contrariar o pensamento do Manuel, que batalhava:
- Mas ó senhor prior, arranje lá isso com Deus e separe-nos antes qu'eu dê cabo da mulher. É um favor que me faz.
A estas frontais ameaças o pároco acabou por aceder e respondeu:
- Bem, bem, já que as coisas estão nesse ponto, o melhor é eu mesmo ir à cidade falar ao senhor bispo para saber como vou resolver este teu problema. Mas demoro-me para aí uma semana. Ir e vir...
O Manuel assentiu finalmente na proposta do padre e regressou a casa bem mais contente. Nessa noite nem saiu.
Por sua vez o pároco cerrou portas e janelas e partiu então para a cidade, não em busca do bispo mas de alguns amigos que o ajudariam na ideia que nele germinava, tentando colocar um fim nos azedumes conjugais e limpar da cabeça do marido infiel, o desejo de acabar com o casamento de uma década.
Ao fim de quase uma semana o vigário reapareceu. Procurou sem delongas o gaiteiro, encontrando-o de enxada na mão, ferindo a terra com vigor. Aproximou-se devagar sem que o outro se apercebesse da presença do cura, tão absorto estava na sua labuta. Já perto, cumprimentou, finalmente:
- Bom dia!
- Olha o senhor prior! Muito bom dia! - e, chegando-se para junto do padre, saudou-o efusivamente, requerendo:
- A sua benção...
- Que Deus te abençoe, meu filho. Então rapaz ainda pensas em separar-te da tua mulher?
- Claro! Logo que vossemecê consentir.
- Então vamos lá a saber quando é que podes aparecer na igreja com ela?
- Agora mesmo, senhor prior – disse, entusiasmado, o lavrador.
- Hoje não, que preciso de repousar da jornada, mas amanhã bem pela fresca apareçam na igreja que depois conversamos com calma, de jeito a resolvermos a contento de todos, essa demanada.
- Com certeza...
No dia seguinte a manhã nasceu muito fria mas de céu anilado. Pairava no ar um cheiro a terra fresca e das folhas côncavas escorriam cristalinas gotas de água, ténues restos de uma noite chuvosa. Aqui e além os cães ladravam, respondendo a alguns companheiros mais distantes. Dois vultos surgiram então no fundo da calçada que desembocava no largo da Igreja. O casal desavindo galgava a rua em passos desembaraçados, surdos a qualquer som da aldeia.
A meio da subida cruzaram-se com o Zé da Mouca que puxava pacientemente pela arreata uma vaca leiteira com destino ao lameiro de fora.
- Bom dia – cumprimentou.
- Bom dia - respondeu o outro sem se deter.
O bom do Zé olhou ainda para trás, admirado com a indiferença do amigo, mas após um breve encolher de ombros recolheu aos seus pensamentos e ao caminho.
Ao chegar à porta da igreja o casal estancou. Manuel julgou-a ainda encerrada mas quando se aproximou para bater esta rangeu, deixando entrever o padre que, de paramentos vestidos, os convidou a entrar. O camponês tirou a boina e persignou-se antes de penetrar naquele ambiente soturno de igreja. Durante toda a sua vida, raras haviam sido as vezes que ultrapassara aquele portal e curiosamente a última que se recordava fora no seu próprio casamento. Inácia seguiu o marido num passo pequeno e silencioso repetindo o gesto cristão do seu homem. Perto do altar pararam.
- Aqui estamos, senhor prior - disse o homem numa voz tão baixa que mal se percebia. Nas mãos, a boina velha e surrada era nervosamente enrodilhada.
- Ora muito bem. Ajoelhem-se por favor e dêem as mãos – ordenou o padre Cosme.
O Manuel e a Inácia assim fizeram, obedecendo ao pedido.
De fundo da capela, por detrás dos círios apagados, surgiram então dois vultos desconhecidos que se aproximaram do casal. O padre avançou:
- Estão aqui entre nós dois homens da minha inteira confiança e que eu trouxe da cidade para testemunhar este acontecimento.
E continuou:
- Preciso agora que me prometam uma coisa.
- Tudo o que o senhor quiser – atalhou logo o camponês.
- Aconteça o que acontecer nunca vos podeis mexer. Prometem cumprir este meu desejo?
- Prometemos – respondeu o casal num coro perfeito sem, contudo entender muito bem a exigência.
Após a promessa o padre abriu uma Bíblia de capa negra e começou a ler um excerto do Evangelho. A determinada altura parou e, olhando para os dois homens que ladeavam o par, teceu um sinal quase imperceptível. Inesperadamente, os homens cascaram duas valentes pauladas nas costas do casal. O camponês levantou-se lesto para se fazer pagar da cacetada mas o padre interveio com autoridade:
- Lembra-te do que prometeste.
- Sim, senhor prior. Mas levar assim tareia não é justo – e voltou-se a ajoelhar ao lado da mulher. Esta chorava já. Não sabia se por vergonha ou por dor.
- Meu filho, há que cumprir o que se promete, custe o que custar.
- Sim senhor prior – aquiesceu o aldeão.
Retomando o padre a leitura, nova paragem veio a suceder. Novo sinal e mais duas pauladas se abateram sobre os corpos do casal. Desta feita não houve qualquer reacção. A cena repetiu-se. Uma, duas, três, dez vezes, até que o lavrador ergueu a cabeça bem dorida e perguntou:
- Ó senhor prior, quando é que acaba a cacetada? Já começo a estar farto de levar tareia. Não acha que é demais?
- Este castigo só termina quando um de vocês morrer.
Manuel apercebeu-se, finalmente, da artimanha arquitectada pelo padre e concluiu que nada podia fazer contra o casamento. Pegou bruscamente na mão da mulher e arrastou-a para fora da igreja, mas antes rematou uma decisão final:
- Se só a morte me livra do casamento, antes vivo com a mulher com quem casei que defunto de pancada.
Na igreja, o padre e os dois homens, ficaram a rir do final do enredo. O aldeão por sua vez aprendeu a lição e nunca mais ponderou o desejo de descasar e muito menos em desencantar novos romances.
Viveu suficiente para ser pai e avô. E a todos relatou a sua história.
Publicado a primeira vez em 28/02/1986, no Espaço Vivo suplemento do Jornal de Almada, com o título "A Lição"
Publicado a segunda vez em 1/07/2002, no jornal O Concelho de Vila Velha de Rodão, sob o título actual